A Festa da Menina Morta,
de Matheus Nachtergaele (Brasil, 2008)
por Paulo Santos Lima

Na perdição das escolhas estilísticas

A Festa da Menina Morta parece trazer uma vontade bastante pessoal de Matheus Nachtergaele em levar para o cinema algo que lhe é de caríssimo interesse. Ele fala sempre sobre a importância daquela cultura ribeirinha do rio Amazonas, tão desconhecida para nós. Mas, finda a projeção, surgem perguntas. O que Matheus queria precisamente falar: de um modo de vida ou do misticismo? E como ele se posiciona sobre a dinâmica desse grupo social que é reproduzido, em princípio, de uma matriz real? São perguntas sem respostas afiadas, lançadas ao vento, que têm seu retorno garantido para colocarem em xeque certos procedimentos adotados pelo diretor, que acabam por culminar sobre um dilema terrível ao filme: onde se coloca o ponto-de-vista do narrador-cineasta.

Nachtergaele parte de um evento real para assim compor os traços ficcionais que se voltam ao ponto de partida: uma procissão-festa que celebra o milagre brotado da morte de uma menina, num verdadeiro culto-relicário de suas roupinhas rasgadas entre músicas, comilanças e bebedeiras festeiras, que o ator conheceu quando atuava em O Auto da Compadecida (o que deixa claro, mais uma vez, as intenções nobres de alguém que cruzou semestres com projeto firme na cabeça). Na verdade, o filme parte desse extrato real para sobrevoar em círculos o personagem de Santinho (Daniel de Oliveira), que ganhou o status que seu nome indica há 20 anos, quando recebeu de um cão os trapos da menina no mesmo instante em que sua mãe se suicidava. Virou milagreiro, mas o que o filme nos mostra é que aqui está um violento sujeito, vulcanizado a explosões de humor, pequenas violências domésticas (como tabefes no cocuruto das empregadas). É um líder sob crise titã, carregando o peso da coroa e arruinado nos seus ânimos.

O filme, parece, é sobre ele – portanto, está fiel à performance do seu ator, à cena. Mas o avião dirigido por Nachtergaele voa fazendo rodopios, passeando inicialmente pelo pequeno painel humano dando impressão de cunhar um registro documental e sociológico daquela comunidade quando, na verdade, está se encaminhando para os conflitos pessoais. Alude-se por uma idéia de decadência naquele sistema, mas o filme ensaia tal discussão que acaba por não sair do chão. O plano de vôo parece mais desenhado quando vemos a relação incestuosa do pai com Santinho, ou quando o filme fica ao seu lado, sem ninguém perto. Ele é o norte, ainda que este norte seja movediço; ainda que haja vez e outra uma aparição de rostos comuns. Uma mescla estranha de recriação com ação, de supernatural com natural, de overacting com naturalismo.

Daí que a atenção dada ao protagonista recruta os planos-sequência a observar o seu ator – que, de fato, está numa composição magnífica, algo histérico e afetuoso, feminino e transmutado à la Norman Bates travestido de mãe. Se a ausência de corte se justifica pela performance (o que não necessariamente determine um prazer na experiência de se assistir a esse potente teatro de atuação), o mesmo não ocorre quando a câmera sai dos espaços ou se mantém em continuidade sobre uma determinada ação. Porque o sequencialismo não cria um efeito direto ao que se está sendo falado. Se, por exemplo, pode ser para mostrar a dormência daquele grupo, a figura de Santinho e todo o desfecho desmentem isso. Porque, se não é o tempo discorrido e nem a morte de um costume que estão em jogo, mas sim o dilema de um homem, por que adotar a extensão do tempo? Se for pela dor de Santinho, então está certo que não é uma experiência agradável. Nessa fidelidade da câmera a Santinho, abre-se uma incerteza sobre o quanto o filme está ao lado deste déspota. Parece irrelevante, mas essa é uma questão crucial sobre o caráter de A Festa da Menina Morta. Qual o tom que o filme adota para nos mostrar essa comunidade cegada em seu misticismo, que crê santo milagreiro o mais ignóbil e arrogante dos moradores dali?

O filme ensaia uma ruptura que não acontece ao final. Pelo contrário: faz de uma extrema força a profecia de Santinho sobre a dor reger os novos tempos. O filme mantém a humanidade do seu santo para, ao final, ressacralizá-lo. Não adianta, portanto, repetir o plano dele e de seu pai pelados na cama, dormindo. A imagem anterior prospecta melhor nos nossos sentidos, porque após o narcoléptico desenvolvimento dramático, são dramaticamente fortes os gritos que Santinho dá para sua multidão, quase como num renascimento que desatola a pasmaceira abjeta de seu protagonista, numa cena que faz apagar da lembrança o punhado de humilhações e ignorâncias junto aos personagens secundários. E é aqui, também, que o caráter “documental” casa-se muito bem com o ficcional, alternando planos gerais com os colados ao rosto de Daniel de Oliveira. Após uma série de conflitos e disfunções dentro daquele espaço social representado pelo pequeno punhado de personagens, a festa da menina santa se faz libertadora, despressuriza as tensões. Voltamos ao plano final dos pelados: Santinho, como seu pai ali, dorme o sono dos justos.

Essa estrutura desquadrinhada do filme entre dar cabo de um “real” e também criar carne para revesti-lo foi montada com peças de um outro cinema, o de Cláudio Assis. Isso é justificado, em dados, pelo convite a dois colaboradores de Assis: pela direção de fotografia por Lula Carvalho (câmera dos filmes de Cláudio Assis, fotografados pelo seu pai, Walter) e pela co-escritura do roteiro por Hilton Lacerda. A dupla cede seu material (em geral, extraordinário, diga-se) para que o contratante faça uso dele. Matheus, decerto, perdeu-se na utilização dos ingredientes. Assim, sabe-se que os dois longas de Cláudio Assis são marcadamente diferentes quanto à construção das cenas, do tempo dos planos e do posicionamento que o diretor faz diante do mundo – em Amarelo Manga, trabalha-se no dinamismo entre os planos (de duração mais curta) e uma pulsão de vida vulcânica; em Baixio das Bestas, opta-se pelos planos mais longos, por uma bidimensionalidade que estanca os deslocamentos dos atores nos espaços, que os coloca num estado mortem.

Assim, incorporando uma mesma “marca” nas imagens e, também, na própria dramaturgia, Nachtergaele opta por planos colados aos rostos dos personagens, a uma certa animalização gestual-existencial de boa parte do elenco, impondo um “estado orgânico” para compor esses personagens. A relação entre os seres, extremamente venal, vem dos dois longas de Assis, também. O plano alongado que traduzia morte em O Baixo das Bestas talvez tenha parecido melhor opção para o diretor deste A Festa da Menina Morta, o que se justificaria sob alguns aspectos tratados pelo filme, se essa duração larga não estivesse junto a uma carga visual e dramática extremamente carregada, ou seja, num barroquismo que cansa os olhos e torna o tempo da cena algo próximo do insuportável, por vezes. A intenção de Matheus não parece ter sido essa.

Por isso é mais estranha ainda a escolha do diretor em animalizar seus seres em certas passagens. É uma gramática que tem muito a ver com Cláudio Assis, mas que não respeita o material humano que ele constrói para a tela (ainda que não deixe de ser notável, sobretudo ao não desabilitar certas potências individuais de seus personagens, que rebelam-se e buscam mudanças selvagens). Nachtergaele, mesmo com ferramentas de primeira, parece utilizá-las como um aprendiz. Um destemido aprendiz, não haja dúvida, aplicado já desde sua primeira direção cinematográfica. Mas vale seguir a lição da mesma escola da qual Matheus recorreu: o melhor do cinema de Cláudio Assis, apoiado aos talentos de Hilton Lacerda, Walter Carvalho e seu filho Lula, é a força com a qual ele se coloca no mundo, com a qual ele deixa claro em que lado está e onde o seu filme se coloca junto ao discurso. Matheus Nachtergaele, talvez pela timidez iniciante e certa candura de olhar sobre as coisas de um mundo chamado Brasil, acabou penumbrando o local onde seu discurso fílmico se coloca. Resta, contudo, pela expressividade do projeto escolhido para ser seu début, a imagem de um criador dando passos para se instalar como diretor.

Outubro de 2008

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