Feliz
Natal, de Selton Mello (Brasil, 2008) por Eduardo
Valente Por
um cinema da performance
A estréia de Selton Mello
na direção de longas-metragens não deixa margem para dúvidas quanto à filiação
do Selton diretor frente a dois filmes onde o Selton ator foi parte importante
da criação: Lavoura Arcaica, de Luis Fernando Carvalho; e O Cheiro do
Ralo, de Heitor Dhalia. De Lavoura, vêm a fotografia e a trilha sonora
hiper-presentes como elementos de sobresignificação e de desejo construção de
um universo essencialmente cinematográfico, além do ambiente da família e seus
traumas como elemento catalisador dos dramas em cena (além da presença na tela
de Leonardo Medeiros como protagonista, claro). Já de Cheiro do Ralo vêm
uma estrutura dramática calcada nos jogos de poder e violência entre os personagens,
sempre no sentido de um esgarçamento das relações, além de uma construção de cena
que pensa cada cena como um pequeno palco para a performance dos atores. Esta
listagem acima não é exaustiva (não só das formas de reverberações dos filmes
nesta obra, nem mesmo das influências do filme de Selton como um todo – há um
tanto de Cassavetes, de Lucrecia Martel, de Paul Thomas Anderson no filme), nem
quer ser servir como instância redutora do trabalho, como se este fosse apenas
uma junção dos universos alheios (inclusive porque é apenas natural que um ator
que sempre teve vários projetos e uma presença marcante na criação dos filmes
leve muito do que vivenciou de mais pregnante como parte do seu trabalho). Serve
apenas como uma introdução para começar a entender e penetrar na lógica que rege
este Feliz Natal. O
filme começa com alguns planos rápidos e hiperaproximados de corpos que se esfregam,
além de uma grua elegante que esquadrinha o espaço de um ferro-velho. Logo, o
personagem de Leonardo Medeiros, que havíamos visto no ferro-velho, chega a uma
festa de Natal, onde aos poucos vamos entendendo as relações. A festa é filmada
com uma câmera nervosa e expressivamente próxima dos corpos, usando de uma montagem
cheia de picotes entrecortados. Vamos tendo acesso a pedaços de situações apenas,
a diálogos que se referenciam a um passado de ressentimentos generalizados e que
sinalizam um estado de perversão latente (a proximidade dos corpos de mãe e filho,
o olhar dele para a sobrinha, as relações extra-conjugais somente subentendidas).
Logo, porém, na medida em que a festa se aproxima de um final bombástico, os cortes
rápidos são substituídos por um longo plano-sequência que em grande parte acompanha
Darlene Glória no papel de uma mãe de família completamente entregue aos barbitúricos
e álcool, quase fora da realidade. Tanto
num primeiro momento como no outro, Feliz Natal expõe de saída seu funcionamento
estrutural: ele se propõe como exemplar de um cinema da performance. Performance
dos atores, pois praticamente todos têm um momento para solar em cena, momentos
que funcionam como se quase tudo parasse para que assistamos a um discurso de
Darlene Glória, a uma réplica de Lúcio Mauro, a uma dança de Cláudio Mendes, a
um surto de Thelmo Fernandes, a uma intervenção inteligente e/ou fofa das crianças.
Mas também performance dos elementos artísticos do filme: a câmera que chama a
atenção para seu trabalho com o foco e com a proximidade dos corpos, a fotografia
que chama a atenção para seu uso dos grãos e do escuro, a montagem que chama a
atenção para seus cortes abruptos ou raccords inesperados, a trilha sonora
que chama a atenção para seus acordes dramáticos. Como resultado, Feliz Natal
é um filme que funciona quase o tempo todo na hiperatividade, no perigoso jogo
de afogar o espectador numa catarse dos elementos cênicos. É
claro que esta opção é um dado inicial do filme, e não algo a ser elogiado ou
criticado por si mesmo. E que este desejo de catarse da linguagem se irmana ao
momento de catarse familiar e pessoal vivenciado pelos personagens: se tudo em
Feliz Natal é over, isso começa com os personagens e suas experiências.
No entanto, deve-se perguntar sempre a um filme: por que esta opção pela catarse
em si? Afinal, como dado, a “ficção da família disfuncional” já é hoje algo tão
batido e estabelecido quanto a da “família feliz” um dia foi – e Selton Mello
parece sempre consciente disso, tanto pelas influências com as quais dialogo abertamente,
quanto até por colocar na boca do personagem de Darlene Glória em determinado
momento uma piada com o próprio termo da “disfunção”. Não
é por acaso, então, que no meio a uma constante histeria de registro e de vivências
de personagens, Feliz Natal faz questão de apostar aqui e ali na ponta
solta, na sutileza de construção possível. É o ódio paterno que mais se subentende
do que explica, é a vivência passada com os amigos que mais se alude do que mostra,
é acima de tudo a presença de alguns personagens que, dois tons abaixo, conseguem
uma curiosa empatia no meio do caos reinante (pensamos principalmente no casal
formado por Paulo Guarnieri e Graziela Moretto). Há aqui um curioso curto-circuito
dentro mesmo da lógica de Feliz Natal que, paradoxalmente, causa alguns
de seus momentos e qualidades mais fortes e ao mesmo tempo sabota uma possibilidade
de lógica interna que resolva o filme de forma mais definitiva. O filme passa
a viver desta maneira bipolar: encontra considerável impacto em vários momentos
de performance, mas maior empatia naquilo que não explora tão avidamente, que
deixa mais quieto e ao fundo. Só que a constante ida e vinda entre os dois, torna
o filme bastante exasperante. Curiosamente, aliás, o final
do filme reza pelas duas cartilhas, expondo esta fratura que o compõe (e, sim,
vamos falar do final, quem não quiser saber, não leia): por um lado, o plano hiper-construído
(em tempo, enquadramento, luz) que leva o menino, que sempre surgia em cena como
um respiro dentro da perversão familiar generalizada, a um tipo de suicídio que,
ao mesmo tempo que parece negar a possibilidade de futuro e inocência, acusa a
negligência de pais e avós (que deixam o remédio à mão e não cuidam do menino);
por outro lado, a aparente superação do trauma pela nova rotina do personagem
de Leo Medeiros, filmado com uma distância respeitosa nesse seu ritual de chegada
em casa, inclusive com um “filtro natural” colocado por uma cortina. Denúncia
e punição de uma falência ou elogio de um novo começo? É entre dois pólos tão
opostos como estes que transita o filme de Selton Mello o tempo todo: entre a
histeria e a sutileza, o estereótipo e a construção individual de personagem.
Nesta corda bamba e tanto que se dispõe a explorar, o filme se expõe a várias
quedas, mas também faz por merecer vários aplausos por momentos de real maravilhamento. Outubro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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