em primeira pessoa
Carta de Portugal
por Felipe Bragança

Um bilhete na garrafa...

Quem disse que o Festival de Santa Maria da Feira é minúsculo, não percebe a forma como o evento vem se afirmando, ano após ano, como um dos encontros mais íntimos e frutíferos entre os realizadores do cinema brasileiro, em especial, de curta-metragem. Como uma pequena colônia em exílio consentido, o festival é o lugar e o tempo ideal para se tramar as conspirações, revisar o cinema brasileiro do ano e traçar as metas e as vontades para um futuro breve. Porque aindamuita melancolia na forma como dependemos de editais viciados e festivais limitados. Há muito melancolia na forma como esse cinema de vislumbre vigoroso continua assim, transposto como um terreno para aventurosos em busca de suas venturas redentoras.

Mas o entusiasmo está nos filmes, nas brechas que nos deixam ver desse cinema que poderia ser. Essas brechas, de um cinema leve, enérgico, expressivo e misterioso, estão ali perdidas entre a ingenuidade vivaz de Proibido é Proibir (absurdo inacreditável que este filme ainda esteja sem distribuição garantida!!), a energia sideral dos olhos e da fala de Hermila, a inquietação anarrativa de Crime Delicado, nos afetos abertos de alguns curta-metragens brihantes. Essas brechas são, acima de tudo, uma realidade de um cinema feito no Brasil que prime pela energia, pelo vigor de entrega, pelo desejo de fazer do filme não um instrumento de carreira ou um ensaísmo sem alma, mas uma proposição do Deus-à-dentro de cada realizador. Entusiasmo não se formula, mas se percebe. Não se limita, mas se identifica.

Essa carta é um elogio a esses realizadores. Os presentes no festival e aos não presentes. Um elogio e uma chamada como aquelas que se fazem diante do abismo. Proponho imediatamente a deserção.  Proponho imediatamente a deserção.

Há de haver outra forma de se fazer filmes nesse lugar em que o cinema, o CINEMA, foi se tornando tão chato, tão burocrático, tão “caralho-já-saiu-o-resultado-do-edital?”, tão cheio de formas predispostas de realização.

Desertar não é desistir. É divagar. Desertar é como fazer deserto. E como me disse o Karim, uma vez, no deserto você pode projetar o que quiser – fantasmas, alienígenas, até gente. Até gente de verdade. O deserto, então, é um pouco esse. Um deserto apinhado de gente: Kleber Mendonça, Fellipe Barbosa, Navarro, Belmonte, outros.

Edgard Navarro foi homenageado no Festival. Ah, Edgard, seu discurso no dia da apresentação de sua retrospectiva deveria ser transcrito, escrito, publicado! Você diz que não é um bom exemplo, que ficar assim tanto tempo sem filmar é algo que você não deseja para ninguém. Mas é você também que fala que o bom cinema vem quando o filme baixa, quando ele te toma no colo. E nesse lugar confortável, a arrogância alegre e consciente toma forma. Não como negação do outro. Mas como batalha aberta, vontade desbragada de estar ali. Aqui. De estar aqui. O filme é um lugar em que se habita.

Nesses tempos em que o CINEMA bambeia entre ser difundido como um carreirismo de ocasião ou como obra para quixotes, o entusiasmo desses realizadores incuráveis e suas mazelas são um canto nostálgico do que poderá vir a ser o cinema poroso dessa deserção anunciada.

Porque eu não estou falando aqui de fórmula, de jeito-maneira certo de se olhar. Mas eu tô falando aqui, em primeiro lugar, dessa seara aberta de vontades que o cinema no Brasil poderia ser se menos preocupado em dar certo, ocupado em querer ser algum tipo de realismo histérico que lhe sirva de muletas.

Ah, mas entendam: o realismo blasé, também não pode virar fórmulaNão suporto mais o encantamento programático do cotidiano como única deriva ao formato do entretenimento explosivo ou da neurose palavrória. Corre-se o risco de se criar um cinema brasileiro bem urdido e firme mas cujo academicismo uma década atrasado será agora o do realismo desencantado e discreto, algo que se alastrou pelo cinema-de-arte europeu-asiático e está em hora de ser fissurado e não imitado por bons imitadores!  A loucura é ver que o circuito de festivais no Brasil agora começa a conseguir digerir esses filmes! Porque os filmes não podem cumprir apenas papéis de comportamento estético. Mimetizar uma verossimilhança sempre é um risco de fazê-la mais um clichê sem pulsão.

Apitos para cachorro ou pisada na porta! Era mais disso que eu queria... Um cinema, esse entusiasmado, como sempre um ou outro. Ou que nos um no peito ou que nos faça ouvir, de pacato, um certo tom de tempo que não ouvíamos.

Porque o cinema que cumpre o seu papel intelectualmente, seguindo a cartilha dos festivais é o irmão mais pobre e cínico do cinemão-de-quem-não-falamos-o-nome. E o cinemão tem a beleza de ser desajeitado como todo paquiderme o é. O cinema-de-arte-para-festivais soa a um parasita e sendo assimdesânimo e apatia.

Na Fnac do Porto eu encontro o mega-livro da Cinemateca Portuguesa com todos os escritos de e sobre João César Monteiro. Compramos, eu e Marina, o dito e eu penso comigo, que o que eu queria era comprar centenas dele e enviar por correio para todos os amigos e realizadores que admiro.

Porque será que o realismo é suficiente? Será que a imanência da imagem crua, transformada em ícone-clichê, não perde justamente sua imanência e se torna uma forma menor de simbolismo do real? Câmera-leve-na-mão e personagens verdadeiros te bastam? A sutileza vira mastodonte se transformada em regra.

*   *   *

O Porto é uma cidade mais bonita quando chove. Fica frio, os ossos rangem. Mas a cidade toda fica coberta por uma película de água que desce para o rio Douro. O Mercado central coberto de água e de goteiras tem a aparência da sujeira, do erro e do despropósito de que eu estou falando ou tentando falar.

Anotação para se fazer um filme: lembrar do Mercado central do Porto depois da chuva.

Anotação para se fazer mais filmes: desertar.

O que eu acho bonito no filme de Duran é justamente a vitalidade de se divagar, derivar do cinismo inteligente que tomou conta das análises da minha cidade. Duran é chileno, eu sou carioca. Isso é terrível, eu sei: isso de ser carioca. Mas é também tão bonito. Porque é uma cidade disforme, abandonada, travestida em balneário feliz ou em filme de bang-bang. Ao Duran eu agradeço pela bem-vinda ingenuidade de cagar para a “inteligênciacarioca: nostálgica, preconceituosa, febril e virulenta.

Ao Eduardo Valente, um recado: você tem que filmar seu filme!

Ao Karim Ainouz, um chamado: deixemos de fazer cinema, vamos fazer filmes!

Deixemos de fazer CINEMA, vamos fazer filmes!

Repito como ladainha: é triste ver como o cinema dito de arte, dito de liberdade, foi sendo padronizado, qualificado mesmo como uma arte cara e para poucos. Não podemos continuar filmando Óperas (!!) nesse país. Filmando como quem faz um complemento para bistrôs ou restos de fastfood sem identidade.

Dar aura a coisas de plástico. Dar vida aos filmes. Graças a Deus, Juventude em Marcha está em cartaz em Lisboa e no Porto. (os cartazes com a figura de Ventura estão espelhados pelas paredes das cidades. Tão bonito, tão bonito).

Eu queria te dar 10.000 cigarros!” É o entusiasmo. É o céu!

*   *   *

O minúsculo Festival de Santa Maria da Feira termina depois de 8 dias. É o Céu de Américo, é um pouco desse desejo de apontar para vitalidades, de reuni-las, de colocá-las em choque o que se aqui.

Precisamos de produtores no Brasil! De produtores com a cabeça nas nuvens! Não de administradores de orçamento!

Temos que fazer co-produções com os jovens energéticos realizadores portugueses! (aliás, o Transe de Teresa Villaverde me surpreendeu bastante depois de comentários ruins ouvidos, e me deu a imagem-esfinge de Ana Moreira para a memória... O que não é pouco!).

Porque mesmo que eu continue essa carta interminável, ela não tem explicação contida. Precisa silenciar na hora certa e olhar, contemplar, dar-se ao tempo e ao encantamento da imagem que vibra diante de si. E por mais que se aplaine a rotina e se transforme ela em algo tácito e azulado ... A imagem ainda vibra.

E vibra mais nos vermelhos!

PS: ontem, estive com Marina na praça do Príncipe Real, depois de um encontro com Roberto Robalinho, cineasta brasileiro que está trabalhando na Cinemateca Portuguesa. Foi ele quem me soprou durante o jantar num boteco-tasca lisboeta: “Vá a Praça do Príncipe Real... É a praça do João César Monteiro. É a praça de João Vuvu”!!!. Eu, que escrevo demais mas não sou bobo, ouvi e obedeci.

Lisboa, 18/12/2006

editoria@revistacinetica.com.br


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