in loco
Dilemas universitários
por Eduardo Valente

Ainda como aluno de cinema da UFF, fui um dos coordenadores do Festival Brasileiro de Cinema Universitário por sete anos – começando em 1996 na segunda edição. O FBCU, apelido carinhoso com que é tratado pelos mais próximos, nasceu de uma utopia tipicamente estudantil, do desejo de fazer com que os filmes produzidos com tanto sangue e suor nos cursos de cinema pudessem ser vistos e discutidos entre alunos de diferentes escolas/cidades, e mostrados em um âmbito mais aberto do que o de uma sala de aula. Em doze anos, o Festival evoluiu muito: conseguiu deixar de ser o evento feito quase somente na raça (mas não menos interessante, diga-se) que marcou seus primeiros anos, caracterizado pelo trabalho voluntário e a falta de recursos, até hoje ser patrocinado por instituições reconhecidas e importantes, organizado por uma associação cultural formada pelos próprios organizadores, com escritório permanente.

Foi, então, com enorme curiosidade que voltei a participar, depois de quatros anos bastante afastado, do Festival – como jurado-debatedor da mostra competitiva desta sua décima-segunda edição. Desde o distante 1996, o mundo do cinema (brasileiro, em especial) passou por várias pequenas revoluções, e o FBCU precisou acompanhá-las. Se onze anos atrás havia apenas três cursos de cinema funcionando regularmente no país, concentrados em Rio e SP (UFF, USP, FAAP), agora eles se espalham cada vez mais pelo território brasileiro,  muito por conta do ressurgimento de um possível mercado para os profissionais formados – mas que se ressalte que a quantidade de cursos existentes hoje parece um tanto irreal e superdimensionada para as condições reais de trabalho. Fora isso, uma mudança talvez ainda mais significativa seja a predominância atual da produção em mídias digitais como uma possibilidade de exercício bastante mais acessível a nível universitário. A produção em 16mm, predominante há dez anos, hoje encontra-se quase sob o risco da extinção, dada a dificuldade mesmo de se encontrar os insumos, equipamentos e serviços necessários à sua plena realização.

Com isso, encontrei uma mostra competitiva de curtas bastante diferente da que eu tinha conhecido – até porque 2007 marcou justamente o primeiro ano em que produções em película e vídeo concorreram juntas. A competição do Festival tinha nascido sob a égide de exibir tudo que era realizado em película nos cursos universitários ao longo de um ano, sem seleção, mas inteligentemente os organizadores souberam reconhecer que regras não podem ser “escritas em pedra”, quando o mundo à sua volta não pára de mudar. O mais importante é que o Festival continua exibindo, em mostras paralelas, todos os trabalhos que são inscritos – permitindo a cada um deles uma exibição pública. Mas se tornou irreal, com o boom de produção digital, tanto exibir num mesmo patamar tudo aquilo que era produzido quanto estabelecer hierarquias entre produção em película e produção digital. A unificação da competição é, portanto, uma necessidade – e a seleção de títulos uma conseqüência desta.

Que em alguns debates tenha havido polêmica sobre quais filmes foram selecionados me parece algo absolutamente natural, intrínseco mesmo ao processo de seleção por critérios artísticos. Se na universidade devemos nos preparar para a “realidade do mundo” de cada área, é um bom exercício para os aspirantes ao mercado da produção de cinema este sistema de rejeição e aceitação de suas propostas estéticas – algo que os acompanhará por todo o caminho seguinte, afinal. E o fato é que, com a distância que pude ter do processo de seleção, acompanhar a mostra completa me apresentou um panorama dos mais interessantes dos caminhos, qualidades, defeitos e abrangência da produção audiovisual nas universidades brasileiras. Eu posso talvez gostar mais de alguns filmes não-selecionados, que pude ver em outros festivais, mas esse fato não tornou a seleção questionável.

Cinema como cela; documentários mornos, ficções incertamente belas

Traçar um painel geral a partir dos 53 filmes vistos na competição (foram 325 inscritos) seria quase impossível, de tão variado que resultaria – especialmente se mergulhássemos em análises de temas ou estéticas. Havia, como seria de se esperar, uma quantidade razoável de exercícios curriculares ou de linguagem que buscavam atingir pouco mais do que a correção, por um lado; ou a experimentação simples de determinados dispositivos por outro. Seria estranho que assim não fosse, dentro de um panorama universitário. O único senão mais geral que pode ser feito é um perigo bastante presente em vários dos filmes: um engessamento do olhar dos jovens universitários, especialmente os que estudam cinema (não é uma exigência do Festival que os trabalhos venham só de cursos de cinema ou audiovisual), frente à história e a linguagem desta já centenária arte. Dava para sentir que muitos dos filmes, afogados em anos de estudos, visionamentos de filmes e apreensão de referências, não conseguiam mais olhar para o mundo sem que fosse pelo filtro dessa carga pesada que é a História do Cinema. É difícil para um jovem estudioso do cinema conseguir encontrar seu próprio olhar no meio de tantos a que ele tem acesso – e talvez por isso mesmo dois dos trabalhos mais bem sucedidos do Festival tenham sido um filme que tematiza exatamente esta angústia do jovem criador (Eisenstein, de Leonardo Lacca, Raul Luna e Tião); e um outro que, para usar o termo de um colega de júri, “canibaliza” essas referências de maneira bastante assumida e vigorosa – a começar pelo título: Alphaville 2007 A.D, de Paulinho Caruso. Vários outros filmes, aparentemente menos conscientes do seu grau de "influência" de olhar, acharam pouco espaço para dar vazão à voz própria de seus realizadores, um tanto sufocadas por tudo aquilo que viram e apre(e)nderam nas escolas.

Uma outra observação curiosa ao longo dos dias foi a de que, se nestes primeiros passos é mais fácil não errar fazendo documentários (embora, em vários dos casos, “jornalismo” fosse expressão mais adequada) do que ficção, por outro lado poucos daqueles que escolheram o caminho do documental (plenamente entendido como tal) conseguiram atingir resultados realmente destacados. Entre os documentários strictu sensu, somente Cravos (Hélio Ribeiro) e Na Corda Bamba (Thiago Berto Nóbrega) conseguiram momentos de força particular, de algo mais do que a correção na sua “missão” de contato entre os realizadores e o seu objeto. Por outro lado, os “erros” mais animadores vieram todos da ficção: ... (Juliano Gomes e Leonardo Bittencourt), Faca Cega (Pedro Zoca), O Retorno da Lua (Tobias Vinicius Rodil), Flores para Alice (Francis Sales), Id (Daniel Guarda e Lucas Satti), Augusto na Praia (Rafael Eiras), Aquário (João Candido Zacharias) – todos estes são filmes que, ainda que extremamente irregulares, nos momentos em que atingiam tudo aquilo que pretendiam cumprir, causavam arrebatamento. São inegáveis primeiros passos incertos, mas que nos causam ansiedade para acompanhar os próximos – algo que não ocorreu na seara documental.

No entanto, entre as ficções (também aqui entendidas strictu sensu), quase todas pecaram fortemente num mesmo ponto: a direção de atores. Isso ficou tão latente para o júri, que acabou-se decidindo dar uma menção honrosa ao único filme que realmente se destacou positivamente nesta categoria: O Satélite (Bruno Mancuso), trabalho surpreendente que conjuga uma narrativa curiosamente livre na sua exploração da “vida banal” com um trabalho de direção de atrizes bastante solto e atento. Foi o único filme, por exemplo, onde parecia haver uma preocupação com o tempo da reação por parte dos atores – na grande maioria dos outros, a atuação se resumia a “agir”. A impressão que ficou foi de uma separação curiosa que há no cerne mesmo dos cursos, onde a parte técnica é cada vez melhor elaborada, mas uma interação artística com os conhecimentos de outra especialidade (como as artes dramáticas) parece estar, no mínimo, se dando de forma absolutamente insatisfatória.

Quatro choques estéticos

Mas, o que realmente levamos conosco de todo festival de cinema a longo prazo se dá menos na absorção de tendências que podemos traçar num balanço geral do que no específico daquela série de filmes que nos tocam de maneira mais forte. Neste FBCU, posso dizer isso quanto a quatro filmes vistos – o que está longe de ser uma média ruim. Acerca do universo comum a estes quatro filmes, duas observações curiosas poderiam ser feitas – uma quanto à bitola de produção, e outra quanto ao registro das imagens.

Primeiro, é interessante observar que no Festival foram exibidos cinco belíssimos trabalhos de ficção cinematográfica em 35mm, o que é um número bastante surpreendente se levo em conta edições anteriores do FBCU. São eles: Tori, de Andrea Midori e Quelany Vicente, da USP (embora precise ser notado que este filme não é uma produção curricular universitária); O Brilho dos Meus Olhos, de Allan Ribeiro, da UFF; e três filmes da Estácio de Sá – O Lobinho Nunca Mente, de Ian SBF; Transtorno, de Fernanda Teixeira; e Anfitriões, de Bruno T. Garotti. São todos trabalhos de surpreendente maturidade narrativa e estética, que atingem plenamente os objetivos que se impõem. No entanto, com exceção de alguns momentos dos dois últimos entre eles, são também filmes que nos surpreendem pouco uma vez que estabelecem as suas “regras de fruição”. Se sobressaem bastante em meio à média do Festival (e, diga-se, à média de qualquer festival de curtas no Brasil), por outro lado não nos arrebatam para além da admiração mais distanciada.

Arrisco uma hipótese do porquê isso dê, a partir de sua bitola de produção: fazer um curta em 35mm na universidade já é aventura suficiente em si mesmo, e assim os realizadores precisam encontrar pelo menos um porto seguro no domínio que possuem sobre as narrativas que pretendem narrar. Há muito em jogo a cada plano – cada segundo de negativo gasto na filmagem ou metro de filme e serviços na finalização tem um custo elevado para a escola ou para o bolso do realizador/turma - e por isso talvez os filmes arrisquem bem pouco. Mas, quando se arrisca menos, menor é a chance de atingir o único, o diferente – como conseguiram, a meu ver, os quatro trabalhos que destaco, todos eles realizados em formato digital (e, curiosamente, embora eu não tente aqui inferir nada a partir disso, três deles são realizados fora de escolas de cinema ou audiovisual).

Por outro lado, há também uma questão curiosa sobre o registro dos quatro filmes que mais me marcaram no Festival (e que pode ser estendida a um quinto filme bem interessante – e também em digital: Como Enfrentar os Desafios da Vida Moderna, de Leonardo Maestrelli). É uma questão que explica, aliás, o uso repetido que fiz acima do termo strictu sensu ao falar de documentários e ficções. Em todos os quatro, a definição das fronteiras entre os regimes específicos da imagem (ficção, não-ficção) ou a intencionalidade da operação estética com a mesma (experimental, narrativa) são completamente difíceis (se não impossíveis) de detectar com exatidão. Claro que isso pode indicar tanto uma preferência pessoal minha sobre o cinema, quanto apenas conectar estes trabalhos a um estado de coisas especialmente fluido na contemporaneidade dos registros audiovisuais. No entanto, nem uma coisa nem a outra explicam totalmente o resultado atingido nestes quatro filmes a meus olhos, pois o que se impôs aqui não foi um desejo por este ou aquele registro nem a conexão dos filmes com o cinema para além do campus universitário, e sim o fato de que eles atingiram os resultados e momentos realmente mais potentes de cinema que eu pude ver ao longo das 8 sessões de curtas que assisti. E, até em respeito a estes sentimentos, vale aqui quebrar o parágrafo e dedicar um momento de atenção maior a cada um deles.

Copan: Até Onde Seus Olhos Alcançam, de Diogo Faggiano, Eduardo Chatagnier e Lia Kulakauskas (ECA-USP)
Desde os primeiros segundos, com sua narração em off num francês entre o poético e o irônico sobre imagens de uma baleia azul nadando no oceano, percebemos que Copan não é um filme que aspira a pouco. De fato, uma das suas grandes qualidades é nos relembrar que o termo “pretensão” não serve apenas como qualidade negativa, como tanto se tenta fazer hoje em dia. Pois Copan é extremamente pretensioso – mas encontra no próprio reconhecimento da sua pretensão o escape bem humorado para a prisão que ela poderia representar. Uma das grandes qualidades do filme, sem dúvida, é a consciência extrema dos atos implicados na sua realização – o que pôde ser comprovado na presença dos três realizadores no debate após sua exibição. Copan tem importância enorme dentro do contexto da grade de uma escola de audiovisual justamente por representar um ato de desafio às normas: realizado numa cadeira de “documentário”, o filme se recusa terminantemente a se limitar pelo termo. Mas não se trata aqui de rebeldia juvenil nem de uma questão de definição da idéia mesmo de “documentário”: como disseram os diretores no debate (talvez na mais forte declaração que foi dada numa série de boas discussões ao longo do Festival), a questão era menos de desafiar convenções do que de querer fazer um filme que apaixonasse quem o realize (“um filme sobre o que nós estamos pensando quando vamos dormir”). Trata-se, portanto, de achar num tema “imposto”, por assim dizer, um filme que se queira fazer. Nos filmes universitários, por vezes demais nos vemos frente a exercícios estéreis ou francas bobagens justificadas sempre por ser “apenas um exercício curricular”, ou ainda “um filme que a gente tinha que fazer”. Pois os realizadores de Copan desnudam o ridículo destas alegações: o verdadeiro criador de cinema, frente à menor oportunidade de realizar algo, vai criar, vai se expor, vai se fazer ouvir. Por isso tudo, e por alguns dos mais belos planos que foram vistos no Festival (destaque em igual medida aos lentos travelings frontais pelos corredores do Copan ou os planos finais do alto sobre o brinquedo infantil), Copan foi não só um dos grandes filmes exibidos, como uma das mais importantes discussões travadas sobre o papel da realização no ensino audiovisual.

O Buraco, de Taciano Valério (UEPB)
Não menos ambiciosa é a operação realizada por Taciano Valério e seus colaboradores em O Buraco (principalmente o fotógrafo e responsável pela música, Breno César, que “defendeu” o filme no Rio) – porém, ao contrário do que acontece em Copan, aqui ela se reveste de uma simplicidade extrema, ainda que apenas aparente. Frente à possibilidade de fazer apenas mais um documentário sobre uma personagem com uma história de vida incomum, Valério opta por levar a proposta além, criando uma mistura de registros entre a representação e a vivência, o passado e o presente, a memória e a imaginação, a verdade e a mentira. É nos momentos em que perdemos o chão nesse limite, junto com o personagem, que o filme atinge seus melhores resultados. Ver o velho paraibano ex-pracinha sentado no chão de um buraco-trincheira afirmando “eu quero que Deus me ajude a voltar para o Brasil” é uma imagem das mais fortes. Frente a possibilidade de fazer (mais) um tolo filme sobre a ignorância útil do pequeno homem sertanejo sobre os assuntos do mundo ou sobre a desumanidade da guerra (e também é uma qualidade de um filme não se deixar levar pelos vários maus filmes que ele poderia ser), Valério passa por cima de tudo isso e faz um filme sobre um homem, que é um filme sobre todos nós.

Temporal, de Marina Fraga (UFRJ)
Por mais marcantes que sejam várias das suas imagens (apesar de uma certa tendência indiscriminada ao uso da variação de velocidade digital), desde os primeiros planos Temporal afirma sua diferença do resto da produção universitária média pela clara e marcante atenção com o som – principalmente com o conceito de ambiência. Para um filme que se propõe (como feitura e como visionamento) como experiência de imersão num espaço, trata-se de decisão das mais acertadas. Há em Temporal a mistura de alguns registros bastante fascinantes: a maneira de filmar a natureza como um espaço vivo e cheio de mistérios nos lembra de passagens de Apichatpong Weerasethakul; a aproximação com os nativos de um espaço não acostumado a se representar audiovisualmente nos faz pensar no belo Crede-mi, de Bia Lessa e Dany Roland; o uso dos não-atores não como uma garantia de naturalismo autêntico (à la Cidade de Deus) mas como uma estranheza não-atuante lembra algo dos modelos de Bresson. Mas, todas essas relações acontecem nos olhos do espectador-crítico, e não no engessamento da imagem por nenhuma dessas matrizes – que, de resto, podem ser completamente ignoradas sem qualquer prejuízo. Temporal, entre meus filmes favoritos do Festival, foi o único cujo fascínio não foi dividido pela maioria dos colegas do júri, e ficou sem qualquer prêmio. Compreensível, porque como filme experiencial, é um tanto difícil de defender pelo viés racional: ou ele bateu ou não em quem o viu. Da minha parte, a capacidade de encontrar os olhos daquelas crianças frente à câmera-estrangeira são muito mais marcantes do que qualquer plano menos bem resolvido ou questionamentos sobre sua duração mais extensa.

A Curva, de Salomão Santana (FIC-CE)
De todos os gestos motivadores de cinema vistos no Festival, nenhum foi mais generoso, mais inocente (no melhor sentido do termo), mais inesperado do que o de Salomão Santana com seu A Curva. Embora longe de descontextualizado (as menções aos Lumière ou ao cinema – especialmente o mais recente – de Abbas Kiarostami no debate mostra que Santana sabia muito bem por onde andava), seu trabalho possui um caráter único que só mesmo a força do material visual encontrado pode explicar. “Encontrado”, sim, pois é disso que se trata o filme-gesto de Salomão: pegar materiais de um arquivo pessoal de nenhuma relevância macro-histórica, mas pleno de relevância micro-histórica (cenas brutas de gravações de festas de casamento no final dos anos 80 em Juazeiro, Ceará), e simplesmente saber olhar para ele. Mas, claro, não é só caso de saber olhar (“só”??), mas também de, uma vez reconhecido o potencial latente daquelas cenas, trabalhá-lo para fazer dali surgir toda sua força. Sem forçar um só sentido ao material, sem buscar nada mais do que o fascínio com o rosto humano captado por uma lente, com as relações entre pessoas num momento entre a encenação e a vivência (e não são todos os momentos assim?), Salomão Santana fez não só o grande filme visto no FBCU 2007: fez um dos melhores filmes brasileiros recentes.

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta