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Três motifs (e seis
filmes)
Cobertura da Competição
Nacional do 16o Festival Brasileiro de Cinema Universitário
por Eduardo Valente
colaboração especial para a
Cinética
Desde que, em 2007, comecei
a cobrir anualmente a competição nacional do Festival Brasileiro
de Cinema Universitário para a Cinética, muita coisa mudou – não
sendo a menor delas o fato de que me encontro atualmente afastado
da revista. O que nunca parece mudar, porém, é o fato de que a
exposição a estes mais ou menos 40 curtas realizados por alunos
universitários (este ano foram 42) resulta sempre muito instigante,
seja por seus aspectos reveladores, seja por outros francamente
enigmáticos para quem desejar tomar o pulso do que anda passando
pela cabeça dos jovens que, em grande parte, se ocuparão do cinema
brasileiro bastante em breve.
Claro que há muito que retiramos da exposição aos dos filmes individualmente
(trataremos de alguns deles num outro
texto), mas nesse festival, talvez mais do que na maioria,
não raramente é mesmo do todo que sai aquilo que carregamos mais
longamente conosco. Como eu mesmo
já argumentei mais de uma vez na apresentação anual desta cobertura,
é fato que, daquilo que compõe este todo, fazem parte certas características
constantes, um tanto condicionadas pelas características inerentes
a uma produção em escolas de cinema (embora seja preciso dizer
que o FBCU não exibe apenas filmes curriculares destes cursos,
mas produções realizadas por alunos universitários, mesmo aqueles
que cursam outras especializações), em que o caráter de “exercício/experiência”
dá muitas vezes o norte das produções. Também é fato que muito
daquilo que os filmes apresentam se deve algumas vezes até mais
às dinâmicas internas de cada curso (seja os modelos usados para
a realização dos filmes ao longo do programa da escola, seja as
relações entre o corpo docente e a produção, seja mesmo as contingências
da formação das turmas em si) do que exatamente aos desejos, gostos
e aspirações daqueles que fazem os filmes. Finalmente, é preciso
ter em mente sempre que o retrato que sai destes 42 filmes atende,
ainda, ao gosto específico dos curadores do FBCU que os escolhem
para exibir.
No entanto, tomando tudo isso como um dado a
priori, há algo de único que emerge a cada safra, e é um pouco
disso que eu tento tratar aqui nessa cobertura, em que optei por
dois recortes: primeiro, para dar conta deste olhar sobre o todo,
aponto três motifs recorrentes ao longo das seis sessões
que compuseram a competição em 2011 – vou preferir essa palavra
a “tendência” ou outra do gênero, porque esta última indicaria
uma consciência e/ou permanência sobre o gesto criador que eu
realmente não sei se existem. No
outro texto, complementar, individualizo a análise em seis
curtas que, se não me parecem necessariamente os mais fortes per
se, certamente são os que apontaram caminhos mais inusuais
– e, por isso mesmo, interessantes, já que muitas vezes os opõem
e/ou tornam complementares aos referidos motifs.
* * *
1) Sozinho(a) no mundo
Se o clichê corrente afirma que “o cinema é uma
arte coletiva”, adaptando-se a ideia para o cinema universitário
poderíamos trabalhar com a afirmação de que “o cinema é uma arte
de turma”. De fato, dos 42 filmes apresentados, apenas 4 usavam
um formato “individual” de criação – sendo que 3 destes usavam
técnicas simples de animação que incentivam, em si mesmas, as
experiências “caseiras”. Curiosamente, porém, embora a vivência
do cinema como processo de produção, e da universidade como espaço
de convivência, pareçam incentivar a priori a experiência
coletiva, o que testemunhamos nas telas da competição do Festival
Universitário de 2011 foi uma impressionante recorrência da solidão
e do isolamento como sentimentos do mundo.
As matrizes deste sentimento foram as mais variadas,
indo da vertente apocalíptica de Ano Zero à literária de
Cachorro Morto; passando pelas versões clínico-amnésica
de Flash, sensorial-estética de O Silêncio do Mundo
ou psicanalítica-delirante de Floresta Negra; até culminar
com a dimensão sócio-política em filmes tão diferentes como Obsoleto
e De Cores e Botas. Em vários dos filmes, o sentimento
de deslocamento se ligava diretamente a uma condição típica da
adolescência e/ou juventude, quase sempre se manifestando em personagens
femininas, como em Menarca, Princesa (foto), Viagem
à Lua ou Decisão Real – cada um deles com diferentes
níveis de investigação estética deste sentimento de isolamento
ou de inserção do mesmo num determinado contexto sócio-cultural
do entorno da personagem principal. Em comum, porém, todos traziam
um certo elogio (velado ou não) deste sentimento de isolamento
como característica diferenciadora e positiva num mundo, em geral,
castrador ou simplesmente desinteressante na sua uniformização
– e por isso mesmo quase sempre resultavam um tanto apaziguados,
pois partilhavam de uma mesma “tranquilidade” de registro onde,
mesmo quando suas personagens estariam sofrendo, nós não chegávamos
a sentir que os filmes (e, portanto, nós mesmos) sofriam junto
com elas. As certezas dos realizadores, de alguma maneira, se
sobrepunham às dúvidas de suas personagens.
Por
isso talvez é que dois filmes sobressaíram no retrato deste isolamento
– ou pelo menos foram os únicos que me fizeram sentir tão desestabilizados
como as suas personagens (de novo, mulheres): Pétala, de
Vitor Dourado (Anhembi-Morumbi); e Descompasso, de Jasmin
Tanucci (ECA-USP). No primeiro (foto acima), há dois níveis de
desestabilização: primeiro, o estético, num filme onde os enquadramentos
e os cortes reproduzem uma apreensão parcial dos fenômenos do
mundo com bastante eficiência desnorteadora; mas talvez o mais
potente seja mesmo o segundo, de ordem temática, que é a do tema
da estranheza com o próprio corpo ao trazer para a narrativa uma
situação quase sempre associada apenas a bons sentimentos (a gravidez),
e dar a ela um aspecto de pesadelo, fonte de paranoia e depressão.
Ambos resultam num filme que se dá o direito de arriscar a ser
francamente desagradável – o que é uma qualidade para quem quer
lidar com sentimentos de inadequação.
Descompasso
é, na aparência, muito mais agradável, com sua personagem a princípio
muito mais perto do registro da “maluquinha beleza”, e que, com
sua apreensão musical do mundo, parece cair naquele elogio da
individualidade excêntrica a que nos referimos. No entanto, na
medida em que o filme foge das ideias mais abstratas e vai para
uma encenação mais frontal de momentos tão banais quanto o de
assistir um jogo de futebol na TV em família, o filme (e a personagem)
parecem ir perdendo qualquer resquício de “fofura” e resvalam
cada vez mais no desespero da recusa e na eminência da solidão.
Aos poucos, mesmo o filme parece ir se distanciando da personagem,
e talvez venha daí, principalmente, um sentimento ruim que ele
deixa ao seu final. É um caminho quase oposto ao de Pétala,
mas que resulta numa mesma capacidade de tornar palpável o incômodo
do isolamento.
Um primeiro impulso frente a este fenômeno da
onipresença do isolamento como tema talvez nos jogasse em pantanoso
terreno geracional de cunho sociológico – mas para além de reconhecer
nossa franca ignorância para tecer quaisquer comentários deste
tipo, há outros dados em jogo que talvez pareçam mais relevantes
(ou, no mínimo, tanto quanto). O primeiro seria uma questão de
cinefilia: como se sabe, o “cinema da incomunicabilidade”, a partir
da sua matriz europeia (principalmente via Antonioni) e suas recorrências
e influências recentes (principalmente no pós-80 de Wenders e
num certo cinema asiático mais recente), é um dos grandes fetiches
do circuito de autor pelo mundo. Como os filmes (e diretores)
egressos dos cursos de cinema costumam refletir tanto mais as
experiências assistidas no cinema e nas aulas do que aquelas vividas
de fato por eles, nos vemos diante de uma circunstância que talvez
nos diga mais dos filmes que estão sendo assistidos hoje do que
exatamente das condições (práticas ou psicológicas) em que vivem
seus realizadores. O segundo dado interessante de se levar em
conta é de ordem prática: uma das grandes dificuldades demonstradas
por diretores iniciantes (algo comprovado ano após ano nos festivais
universitátios) é a de filmar cenas de diálogo ou interação direta
entre dois ou mais personagens – uma missão que, como sabe quem
já tentou fazê-lo, é apenas aparentemente simples. Não apenas
a disposição em cena dos personagens, e da câmera frente a eles,
revela-se um tremendo desafio, como também a direção de atores
acaba somando-se a ela. Daonde a opção pelo silêncio, pela alusão,
pelo vagar no vazio, pode acabar se revelando bem menos uma questão
de fundo para o seu realizador, e muito mais um caminho seguro
nas suas primeiras realizações.
Dois filmes que talvez nos ajudem a entender esse
último ponto são Distantes, de Edson Peres (SENAC); e Monique
ao Sol, de Wellington Sari (FAP-PR). O primeiro é um dos poucos
filmes no festival a buscar um formato dramático tradicional,
onde o confronto entre dois personagens (dois irmãos, no caso),
tenta iluminar ou aludir a vivências anteriores, presentes e futuras
entre eles, em chave eminentemente realista e psicológica. No
debate depois da sessão do filme, Peres demonstrou impressionante
autoconsciência acerca das impossibilidades do próprio filme,
que constantemente sabota suas próprias tentativas com uma decupagem
bastante engessada e/ou mal resolvida, e um registro bastante
irregular dos atores. De fato, se
há no filme uma concretude dramática bastante rara (e até por
isso mesmo bem-vinda) no panorama dos curtas universitárias, também
há uma clareza enorme do que ainda não se consegue atingir. O
medo de expor-se a este sentimento pode ser uma boa explicação
sobre a raridade da tentativa, que resulta bem melhor em Monique
ao Sol (foto), até por haver neste uma propensão menor à encenação
do drama por si. De inegável matriz rohmeriana, o filme
de Wellington Sari lida menos com os dramas de um passado revividos,
e muito mais com a apreensão fugidia de uma situação única, e
singela. No entanto, se toda a força do filme vem desta crença
no encontro dos corpos em cena, também ele acaba se ressentindo
de uma presença mais forte dos seus atores (sendo que, no caso,
um dos protagonistas é interpretado pelo próprio diretor).
2) Entre influências e conceitos
Como
visto aqui acima, o assunto das influências cinematográficas (e
suas sazonalidades) é bastante recorrente ao se falar de um festival
de cinema universitário, por motivos bastante compreensíveis.
Nos últimos anos, inclusive, para além destas influências típicas
das várias vertentes do cinema de autor que sempre dominaram o
cinema universitário, foi notável uma ressurreição do desejo de
cinema de gênero – inclusive ganhando direito a uma sessão cativa
na mostra informativa do festival (que exibe toda a produção do
ano), com a exibição até mesmo de um longa “de zumbis” nesse ano
(Nightshot era o título dele). Neste quesito, talvez o
filme mais curioso da competição tenha sido mesmo Joãozinho,
Bu!, de Rafael Martins (Unisul), filme que mistura referências
de terror com cinema infantil, fazendo uso bastante incomum da
animação, e que encontra simpatia até nas suas latentes insuficiências
(direção de atores, iluminação, enquadramentos), que lhe emprestam
um ar “caseiro” bastante charmoso num festival muitas vezes marcado
pelo desejo do “bem feito”.
A novidade deste ano, porém, foi o surgimento
pouco usual do faroeste como matriz (o cinema de horror e ação,
e até o film noir, costumavam aparecer bem mais), principalmente
em sua vertente spaghetti – e aí não é possível ignorar
o possível efeito de uma mostra como a que ocupou os CCBBs do
Rio/SP/Brasília em 2010 exibindo os clássicos do gênero. No entanto,
se Duas Vidas Para Antonio Espinosa, de Caio D´Andrea e
Rodrigo Fonseca (FAAP), tem inegáveis virtudes na sua transposição
do gênero para o interior paulista (principalmente numa dureza
de construção dos personagens através das fisionomias de seus
atores), ele também encontra seu limite de fruição na necessidade
do (re)conhecimento dos códigos, até mesmo de cenas específicas
(como na recriação do duelo final de Três Homens em Conflito).
Algo
bem diferente do que acontece em Mais Denso que Sangue,
de Ian Abé (UFCG - foto), que ao levar o faroeste para o interior
da Paraíba traz consigo outros subgêneros (como o filme de gangues
de motocicleta) e, acima de tudo, exibe um real sentido de urgência
de existir enquanto universo autônomo que partilha da história
do cinema, mas não depende dela para construir sua força. O filme
se junta a um outro realizado pelo mesmo grupo de pessoas (O
Hóspede, exibido em Tiradentes neste ano de 2011) para criar
real curiosidade sobre esse polo que parece surgir em Campina
Grande em torno da absorção dos códigos do cinema de gênero com
uma rara capacidade de oxigenar essa paisagem no cinema nacional.
No entanto, neste ano, mais do que a sempre presente
questão das referências cinematográficas, chamou a atenção o quanto
alguns dos curtas pareciam realizados sob rígidos preceitos estético-narrativos
os quais, sob a razão aparente de emprestar aos filmes coerência
e/ou estofo conceitual, acabavam sufocando bastante sua fruição.
A impressão que fica às vezes é a de projetos que tiveram que
passar por avaliações de “justificativas/objetivos/projetos de
direção” e afins, onde determinadas ideias automaticamente se
traduzem em decisões artísticas bastante unívocas e, ao final,
simplórias. Se esse é um problema que pode ser percebido na produção
cinematográfica como um todo, no ambiente universitário ele parece
particularmente perigoso. Trabalhando por uma analogia um tanto
grosseira, pensamos nos perigos equivalentes aos das “academias
de futebol” formando cabeças de área para serem úteis taticamente,
deixando de lado a possibilidade do futebol emergir com potências
mais livres. É um pouco por aí que me parece perigoso quando se
passa a dar sentidos estritos para o que significa e como se constrói
uma “câmera ponto de vista”; como se encena uma estrutura onírica;
qual o efeito de uma repetição; etc. Um filme pode estar muito
bem estruturado no papel, cheio de ideias e conceitos, e ainda
assim não será melhor como filme – pelo menos não apenas por conta
disso.
3) Performances e(m) cena
Por mais que o teatro esteja obviamente na origem
do cinema, é raro que algumas noções ligadas a ele venham à tona
numa cultura cinéfila que parece cada vez mais autorreferente,
algo bastante presente, como já citado, no cinema universitário.
No entanto, alguns dos filmes deste ano nos remeteram seguidamente
a alguns termos e noções bastante caros ao imaginário e à teoria
do teatro – assim como suas encarnações já absorvidas por outros
campos, como o das artes visuais.
Certamente
o mais abertamente teatral dos filmes exibidos foi Banheiro
– Experimento Estético #1, de Leandro Goddinho (Anhembi-Morumbi),
o que não chega a representar grande surpresa uma vez que seu
diretor estuda também na EAD da USP e trabalha com teatro em São
Paulo. Goddinho já tinha apresentado dois outros trabalhos no
FBCU (Darluz em 2009; D.O.R. em 2010), e certamente
é fácil reconhecer o seu estilo nesse novo trabalho, seja pelos
trabalhos com multitelas bastante devedor de Peter Greenaway (outro
diretor que também trabalha no teatro), seja principalmente pela
frontalidade da sua encenação. Se encenação é palavra essencial
no universo que ele cria, Banheiro trabalha ainda mais
forte com outras duas palavras eminentemente teatrais em sua origem:
palco e performance. Assim, o universo fechado do espaço que dá
título ao filme se transforma num espaço suprarreal onde atores,
muito mais do que representar ou interpretar, performizam. O filme
não chega a escapar de uma certa repetição do seu esquema básico,
mas de novo deixa à vista um olhar bastante único.
Curiosamente,
vêm do Ceará dois filmes que levam os termos acima (performance,
palco, cena) para lugares bem diferentes não apenas da hiperestilização
de Goddinho, como, mesmo que com pontos em comum, entre si. Em
Carrossel de Concreto e o Abismo de Veludo (foto), Rodrigo
Fernandes e Victor Furtado se utilizam das presenças de corpos
em espaços físicos edificados em ruínas e, jogando bastante também
com os efeitos da luz sobre ambos, criam instalações de tempo-espaço
plasticamente fortes sempre à beira da abstração. Parece o caminho
contrário de Fui à Guerra e Não Te Chamei, que parte de
um espaço este sim abstrato (um campo aberto com um gramado indistinto),
para dar uma dimensão absolutamente física e concreta a um embate
entre dois corpos e os objetos de suas memórias (encarnados nas
roupas que levam até este lugar dentro de malas). Aqui, Leonardo
Mouramateus, Roseana Morais e Luana Lacerda se utilizam do tempo
como desestabilizador maior, apostando na exaustão (de personagens
e do espectador) como elemento potente.
Nos
dois filmes, um inegável ponto em comum é uma completa independência
entre cada um dos planos (são apenas três nos 20 minutos de Fui
à Guerra... - foto; e nos 8 de Carrossel...), que funcionam
segundo a lógica de uma verdadeira cena autônoma: a cada vez que
se liga a câmera, o mundo recomeça, está se montando a cena. É
uma sensação análoga a que sentimos por um artifício bem diferente
na realização coletiva de Despedida (UFF), verdadeiro compêndio
de fragmentos de relacionamentos amorosos em estrutura elíptica
e episódica. Propositalmente ou não, o filme parece aludir a uma
impossibilidade de encenar “a sério” uma história de amor: como
tudo já foi filmado, o que resta são os clichês e os pedaços,
porque o resto da história, afinal, “nós já sabemos”.
Mas os dois filmes onde os resquícios do teatral
se mostram mais potentes são mesmo as produções paulistas com
títulos de grafia parecida: Cão, de Íris Junges (ECA-USP);
e Caos, de Fábio Baldo. Nenhum deles remete, de maneira
mais clara ou banal, a qualquer conceito de “teatro filmado” (seja
aquele clássico do primeiro cinema, seja alguns mais contemporâneos
como os acima mencionados). No entanto, podemos partir dessas
ideias acima expostas (palco, performance, cena) para nos aproximar
de o que eles possuem de mais forte e interessante.
No
caso de Cão, há pelo menos dois níveis muito fortes pelos
quais um certo distanciamento com algo de brechtiano se
impõe. O primeiro diz respeito a um registro de atuação bastante
curioso encontrado pelo casal de atores, que, ao mesmo tempo em
que remete a um discurso bastante estudado e quase impostado,
possui uma peculiar “verdade” de cena e interação que parece mais
próxima do naturalismo. É como se houvesse um pacto de registro
partilhado apenas por aqueles dois que tornasse aquele registro
algo de natural entre eles, ainda que estranho a nós. A outra
dimensão é estabelecida entre a câmera e o mundo à sua frente,
que partilha ao mesmo tempo um olhar distanciado e observador
(“a piscina”, “a passagem”, nos dizem letreiros) e uma certa ironia
que pensa a sua própria frontalidade (e aí chama a atenção o movimento
de câmera no primeiro diálogo entre os personagens). É um filme
que parece remeter a muitas ideias (entre outras, a dificuldade
de o que significa olhar um lugar – ou alguém – e tentar ver além
do mais óbvio; da necessidade de “rever”, em suma), mas ao mesmo
tempo que quer emprestar ao espectador a liberdade de decidir
o que ele mesmo deseja ver. É um filme, em suma, cuja forma remete
bastante a um registro alegórico, mas que, no entanto, não tem
definições simples do que sua alegoria representaria.
Não
é um sentimento muito diferente o que nos passa o filme de Fábio
Baldo, Caos, que divide com Cão uma capacidade bastante
impressionante de criar algumas das imagens mais fortes, visualmente,
de todo o festival. E assim como no filme de Iris Junges, de novo
temos a sensação de que, se o filme constrói um pequeno conto
alegórico sobre o Homem e a Natureza, não sabemos bem o que essa
alegoria nos quer mesmo dizer. Afinal, se podemos tirar do filme
algo sobre a estatura diminuta do ser humano frente ao Sol e aos
fenômenos universais, ao mesmo tempo há algo que se passa no jogo
entre os dois personagens, entre eles e a Terra, e entre eles
e seres ainda menores (formigas, minhocas) que desafia qualquer
interpretação mais óbvia e simplória. O que o diretor parece mesmo
é isolar dois personagens num espaço (o palco?), e deixar que
as dimensões do humano, do terreno e do celestial tomem conta
da tela (e do som – o filme marca pela sua atenção a ele), com
ambições em última instância bastante raras no cinema brasileiro
– e não só no universitário. São dois filmes que nos lembram,
afinal, que o teatral não tem nada de contraditório com o cinematográfico.
Agosto de 2011
editoria@revistacinetica.com.br
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