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Programa 5: Filmes em fragmentos
por Eduardo Valente

Falávamos ontem, de passagem, sobre como alguns novos classicismos vão rapidamente se impondo a partir da banalização/hiper-utilização de algumas ferramentas de linguagem ou construção narrativa, perdendo rapidamente o caráter de diferencial que em algum momento já puderam ter (nos referíamos, por exemplo, ao constante apelo que temos visto à imagem desfocada). Pois esta quinta sessão da mostra competitiva serviu quase como um grande mostruário de uma das maiores tendências contemporâneas da construção narrativa: o apelo ao fragmento como unidade mínima de construção do drama, cada vez mais assumindo o papel da cena. Para que fique claro: falamos de fragmento, aqui, pensando naquela imagem (ou sequência delas) que aparentemente não constitui um segmento dramático fechado em si mesmo, e sim que se constrói por indícios que, com motivações distintas em cada filme, espera-se que construa o todo a partir da sua soma em conjunto com vários outros. Como qualquer outra ferramenta de linguagem ou construção, não há nada de errado com o fragmento em si. O que parece importante notar aqui é justamente o quanto ele vai se tornando rapidamente convencional (e, portanto, em breve conservador) e, principalmente, como ele acaba servindo um pouco de muleta para a fuga da construção dramática em si. Algumas variações disso puderam ser notadas nesta sessão, e é delas que interessa tratar.

Um dos usos mais comuns desta “estética do fragmento” passa pela idéia de construção de climas antes de uma história (antes aqui significando estritamente o que quer dizer: não “ao invés de”, mas sim algo que vem primeiro – porque a maioria destes filmes busca sim chegar a uma história eventualmente). Só que, como também já discutimos um pouco em dias anteriores, construir climas talvez se constitua, por mais que o jovem cineasta possa não se dar conta, num desafio ainda maior do que construir uma narrativa de maneira mais clássica.
Uma série de filmes nos mostrou isso nesta sessão, como foram os casos de Verão, de Bárbara Cariry (UNIFOR); ou Quebra Corrente, de Luciano Oliveira (Anhembi-Morumbi). Em ambos, busca-se o uso de pequenas “vinhetas” (talvez melhor expressão do que cenas), ou mesmo pedaços de planos (caso do primeiro filme), para se construir um arco dramático bastante forte do começo ao fim de uma relação amorosa (com pesos bem distintos nos dois filmes). Nos dois casos, louve-se a aposta numa construção sonora quase independente do vídeo, e até mesmo em alguns planos bastante ousados em sua configuração gráfica. No entanto, o que se percebe é que a aposta no fragmento como tijolo de construção parece se impor com tal força que muitas vezes a sentimos quase como uma necessidade dogmática, como se muitas vezes os filmes pedissem alguma outra solução para seus momentos, mas a opção anterior pelo formato impedisse que se tomasse caminho diferente. O que se acredita é bem claro: que aquelas imagens têm peso e densidade suficiente para nos fazer adentrar um universo dramático pela fragmentação – mas nos dois casos isso não chega a acontecer. Izamara, de Diogo Hayashi (Anhembi-Morumbi - acima) chega bem mais perto desta realização, principalmente pela sua bem impressionante utilização da técnica da rotoscopia, que lhe empresta uma outra palpabilidade (até mesmo no sentido estrito, já que a imagem ganha texturas). Se não chega a ser um filme que se resolve plenamente, pelo menos consegue algo que falta aos outros dos filmes: captura sensorialmente nossa atenção para os fragmentos que opta exibir.

Mas, para quem começa agora, não há vergonha alguma quando essa tentativa não se completa, afinal é algo que também pode acontecer até mesmo num filme como Mira, de Gregório Graziosi (FAAP), um diretor que, mesmo ainda universitário, já conta com considerável experiência de três curtas anteriores nos quais construiu uma linguagem própria que vem se reforçando, sempre com um papel acentuado da arquitetura e da imagem em movimento pensada a partir de uma relação com o mundo que deve muito à fotografia parada (não por acaso, ambas as linguagens são, talvez, o principal tema deste novo trabalho). Mesmo que Graziosi crie imagens cujo poder de nos fascinar seja bem mais desenvolvido do o dos outros filmes, na maneira de colocar o ser humano (logo o personagem) em cena e em questão, Mira atinge resultados menos firmes e interessantes do que todos os três filmes anteriores dele, restando ao final da projeção uma rarefação de relação com a extrema beleza que vem da tela que parece um tanto maior do que o desejado (pelo filme ou por nós). E um dado curioso: dos quatro filmes da sessão citados até aqui, este é o terceiro a ser realizado em preto e branco. Seguramos o impulso de teorizar sobre a escolha, mas parece significativa demais para não mencionar.

Num caminho diferente transitam outros dois filmes da sessão, que usam do fragmento menos como criador de climas e ambiências onde os rascunhos de personagens transitam, e mais como desejo de afirmar a impossibilidade de uma narrativa “completa” ser construída classicamente, por diferentes motivos. No caso de José, de Thais Vasconcelos (UFF), há a ligação com a experiência da morte pelos olhos de uma criança, afirmando talvez que ali não seja possível compreender e, portanto, partilhar uma experiência que não seja estilhaçada. Só que, se o filme tem momentos de força, esbarra em alguns problemas sérios (principalmente de performance do elenco), e mais ainda na memória tão recente de um filme muito parecido em tema e universo, mas bastante melhor resolvido (no caso, Cerimônia, exibido na noite anterior no FBCU). Já Devir, de Eduardo Azevedo (ECA-USP - foto) filia-se, conscientemente ou não, à pouco usual (no cinema brasileiro e no cinema universitário em especial) matriz de uma dramaturgia à la Luiz Fernando Carvalho - seja no seu estado de teatro exacerbado, seja em determinadas características formais (a câmera hiper-presente como ferramenta explicitada na relação com o mundo, o estúdio assumido como espaço da construção). Há aqui, na sua fragmentação (uma fragmentação de outro tipo, diga-se, pois tem vários momentos em planos-sequência, e passa-se num espaço/tempo comprimido), um outro tipo de afirmação: o da experiência do mundo como performance, de cuja autenticidade necessariamente duvida-se – e, portanto, desconstrói-se. É um gesto que curiosamente nos joga atrás na memória do curta brasileiro, para algum ponto da produção paulista na virada dos anos 80 para os 90 – e só por parecer anacrônico assim, nos desconcertando um tanto, já parece mais interessante do que algumas das outras motivações dos filmes, que remetem a um quase status quo do filme de arte contemporâneo.

Curiosamente, o filme que fechou a sessão passou a sensação de ter sido colocado aqui como para justificar que há potência em todas essas apostas na fragmentação, mesmo quando ainda frágeis ou um tanto filiadas a demandas externas aos próprios filmes e seus personagens. Isso porque Dois Pra Lá, Dois Pra Cá, de Marcela Bertoletti (UFF), parece deixar claro que a crença no classicismo, quando não funciona plenamente, realmente nos desafia menos ainda como espectadores. À opção do fragmento e até mesmo um certo fetiche pela incompletude de vários dos filmes anteriores, este último apresenta o equivalente a uma construção com marca-texto: não basta estar claro que seu personagem principal é um velho solitário que vive na companhia de um cachorro – ele precisa ainda ser o dono de uma livraria-sebo decadente, e vive cercado de objeto cujo tempo na Terra claramente passou (com uma vitrola como principal exemplo, mas de fato todo e qualquer objeto de arte à sua volta). Daí até a conclusão dramática, o filme pisa e repisa os seus pontos (com atores falando para a câmera, declarando intenções nos diálogos e declamando poemas), patinando no mais conservador que a ficção audiovisual pode ser. Dessa maneira, ao mesmo tempo que o filme parece acabar derrubando da cadeira o crítico que acha que o fragmento incompleto corre o risco de logo se tornar “careta” (mostrando a face de uma caretice plena), por outro lado comprova uma tese análoga ou complementar: talvez o mais difícil hoje seja mesmo tentar fazer uma ficção narrativa clássica, e ainda assim conseguir soar autêntico. Não será fugindo disso pelo fragmento, porém, que se esconderá que é algo que vale a pena pensar sobre (e até conseguir resultados, como o já citado Cerimônia, ou mesmo o Garoto Barba nos mostraram neste mesmo festival).

Agosto de 2010

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