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Programa 4: A sensível questão da sensibilidade
por Eduardo Valente

No texto sobre o programa 3 do FBCU deste ano, mencionávamos a questão da paixão do realizador por seu objeto/filme, e ao fazer isso é claro que evidenciamos que a arena da criação cinematográfica (ou seria mais justo dizer artística), assim como a da sua fruição, é uma que, de uma forma ou de outra, necessariamente vai ter que incorporar essa dimensão do sentimento. Parece curioso, então, que o programa 4, exibido no dia seguinte, tenha exibido filmes todos um tanto pautados na sua realização por esta questão básica: como materializar um sentimento na tela – além da sua irmã gêmea univitelina: como causar no espectador o sentimento que se deseja com o seu filme.

Neste sentido, chamou a atenção na sessão a mistura entre contenção de meios e eficácia de resultados atingida por Cerimônia, de Francine Barbosa (Anhembi-Morumbi). De fato, o filme nos remete em suas opções de construção a um outro problema que discutíamos ontem: o do peso da História do Cinema para quem realiza um curta na universidade. Pois Cerimônia parece lidar com esse peso, com o perdão do trocadilho, sem nenhuma cerimônia. É refrescante de fato ver como a diretora resolve optar pela frontalidade como método, não só se dedicando a algo raro no cinema brasileiro como um todo (filmar a dor sem maiores firulas nem dedos), como principalmente sem sentir a necessidade de filiar-se a nenhuma escola ou estilo (seja do passado, seja do cinema contemporâneo). Não que faltassem escolhas de muletas variadas nas quais Francine Barbosa pudesse se escorar – seja o melodrama clássico por um lado, seja as matrizes asiáticas ou argentinas mais recentes de filmar através da exacerbação do corpo em cena ou do tempo dos planos. Pois, não: em Cerimônia cada plano parece durar o tempo que precisa, assim como cada enquadramento e relação com os atores se pauta simplesmente pela verdade – da cena, da atuação, mas principalmente do olhar. Se há uma possível matriz a se pensar para filiar o filme, talvez seja uma mais genérica do que de melhor o cinema americano nos legou ao longo da sua história: a de que a ficção pode ser poderosa por si mesma ao ponto de nos capturar sem a necessidade de muito mais do que uma câmera disposta a olhar para atores que reencenam o mundo.

É um pouco desta crença que se ressente Fácil Como a Vida, de Pedro Perazzo (UFF), filme no fundo movido por uma mesma motivação que a do filme acima analisado: a de encontrar seu norte no pequeno gesto e nos pequenos momentos da vida (apenas trocando a perda da vida pela descoberta e dor do amor). No entanto, a contenção que fazia a aposta de Cerimônia no mundo da ficção dá lugar aqui a um apelo um pouco constante demais a determinados índices particularmente onipresentes num “cinema jovem sensível contemporâneo”, como a utilização de algo perto do rock indie na trilha ou o constante desfoque das imagens (algo que já está se tornando rapidamente o classicismo visual do momento para significar “sensibilidade”). Não que o filme não tenha bons momentos e força em vários elementos (em particular a iluminação e a presença em cena da atriz principal), mas exatamente por os ter é que sentimos mais que ele se perca em tantas derivações e sublinhadas sobre sua própria capacidade de atingir esta tal poesia do banal – que é coisa que se revela tão mais eficaz quanto menos fizer questão de se afirmar. Não é nada muito diferente dos problemas enfrentados, na chave documental, por Pela Janela, de Elisa Carareto e Marina Poema (UFSCar). Se o filme começa instigando, com algumas belas imagens em Super-8 e seu uso de off, logo ele mesmo se auto-institucionaliza, optando por repetir seguidamente ao longo dos seus 15 minutos praticamente a mesma maneira de sobrepor sons a imagens, buscando mais ou menos o mesmo resultado. Aí, logo as imagens em Super-8 começam a parecer convencionais demais como evocação da memória, do fugidio, e as narrações vão se tornando mais e mais forçadas na tentativa de provocar a reação pelo sentimento do “sensível”. Se são ambos filmes cheios de boas idéias e muita competência, talvez seja disso mesmo que eles sofrem: um excesso de “acertos” que parece por demais programado, formatado, e que nos impede daquela reação mais selvagem, que nos acomete frente a um sentimento novo, inusitado, que emana da tela e nos captura em estado bruto.

Conseguir atingir este sentimento, aliás, é o que faz a força dos dois outros filmes exibidos na sessão: Ruído Negro, de Vladimir Seixas (UERJ); e Pequenina, de Naná Baptista (UNISINOS). São dois filmes que nos relembrar que, com todo o peso dos mais de cem anos de história do cinema, ainda é possível sim realizar algo que nos cative porque não conseguimos imaginar o que vai acontecer no plano seguinte, para onde um filme pretende nos levar e com quais objetivos. Esse sentimento é particularmente radical e potente em Ruído Negro (foto acima), um filme cujo registro nunca parece se dar a desvendar totalmente pelo espectador. Não conseguimos saber de saída se assistimos a planos de uma ficção ou um documentário, e os sentimentos de cada um deles se revezam de uma maneira tão inesperada que constantemente nos pega de calças curtas. Este fascínio que carrega o filme na sua primeira parte (de algumas cenas memoráveis) se tornará, depois de uma cartela de informações cuja entrada em cena também é um choque e tanto (e que mostra o quanto o filme não se rende ao que é “da moda”, se assim achar que precisa), o fascínio mais básico da imagem cinematográfica no retrato de um ser humano e/ou de um espaço: aquele que vem do carisma, da força em cena, da performance. Aí, a segunda parte do filme é pura fruição da sua excepcional personagem em relação com o mundo à sua volta, completando este filme que é, até agora, a grande surpresa do Festival, pelo menos para este escriba (já que Matryoshka e Fantasmas, outros dois filmes de enorme força, já circularam um pouco mais em outros festivais).

Se Pequenina não chega a ter o poder de causar os desconcertos que Ruído Negro consegue alcançar, ainda assim é bem pouco comum no panorama do cinema universitário a sua disposição para o onírico e para o sensorial, sem qualquer amarra em gêneros e/ou explicitações. O filme é, em suma, um ensaio audiovisual (onde o áudio é no mínimo tão elaborado quanto, se não mais, que a imagem) a partir do encontro entre uma personagem (entendido o termo no sentido mais amplo dele) e um espaço cênico. Nos passeios da jovem indiazinha por um vagão de trem vazio, e seus arredores, o filme aposta encontrar suficiente motivação para brincar com a luz, com os sons, com as descobertas mútuas de equipe, personagem e espectador. Há um sentimento misto ao se assistir Pequenina entre uma poesia bastante selvagem, e ao mesmo tempo profundamente calculada e manipulada. Só que a diferença talvez seja aquela sobre a qual Tarkovski uma vez escreveu: a poesia de verdade não vem com bula, com explicação, com sentido unívoco que diz ao seu receptor o que ele deve ou não sentir. É dessa liberdade que Pequenina, afinal, tira sua força.

Agosto de 2010

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