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Programa 1: Personagens
em crise, cineastas em exercício
por Eduardo Valente
Pelo seu recorte específico
dentro da produção audiovisual, o Festival Brasileiro de Cinema
Universitário se caracteriza, talvez mais do que qualquer outro
evento no calendário nacional, pela recorrência de determinadas
problemáticas que aparecem com constância na sua seleção ao longo
dos anos. Isso acontece porque vários dos problemas (e interesses)
que permeiam seus filmes dizem muito respeito a esta condição
original dupla dos trabalhos que exibe: o de serem ao mesmo tempo
parte de um processo de ensino/aprendizado e uma obra de arte
completa em si mesma; uma condição que, mesmo se encontra modulações
distintas ao longo dos anos, apresenta alguns desafios semelhantes
ao longo do tempo. Não chega a ser surpreendente, portanto, que
tenhamos sido lembrados, logo na primeira noite de sua mostra
competitiva nacional, de uma destas questões: a do estatuto de
exercícios (de linguagem, de construção narrativa, de desejos
e potências de realização) com que estes filmes muitas vezes acabam
precisando ser encarados – tanto pelos espectadores quanto, mais
decisivamente, por seus próprios realizadores.
Neste
sentido é que parece claro que trabalhos que poderiam facilmente
ser resumidos ou reduzidos a partir de suas latentes insuficiências,
como é o caso de Minduim, de Helena Guerra (FAAP); Wannabe,
de Mauricio Ramos Marques (FAP-PR - foto ao lado); ou Aurora,
de Marcos V. Yoshinaki e Miguel Ramos (ECA-USP), se tornam muito
mais interessantes ao serem enxergados como detentores de inegáveis
potências, ainda que seus realizadores não consigam de todo canalizar
estas para sua melhor realização. Há em todos os três, por exemplo,
uma preocupação com o ato de como colocar o mundo em cena frente
a uma câmera (ou, indo pelo caminho contrário, como colocar uma
câmera frente ao mundo, e encenar diante dela a ficção) que me
parece rara, mesmo no panorama mais amplo do que se produz em
curtas no Brasil (e talvez até no mundo). Mas também há, a partir
dessa preocupação, um considerável engessamento, que se nota principalmente
(mas não só) no trabalho com os atores. Assim, se é inegável que
são filmes que parecem pensar-se muito, talvez por isso mesmo
terminam por pensar-se demais. É um dos riscos, para as obras,
do ambiente universitário. No entanto, parece mais forte e urgente
o gesto de perceber a incomum maneira como todos eles trabalham
as geometrias de seus enquadramentos, as entradas e saídas de
quadro dos personagens, e até mesmo o quanto a interação entre
estes personagens não parece nada acomodada no registro naturalista
mais banal – embora também ainda não tenha encontrado o tom exato
em que se sinta plenamente confortável ou potente. Sentimos, em
suma, o peso do exercício: de realizadores que descobrem, enquanto
erram, até onde querem ou podem estar dispostos a ir – mas que
queiram ir a algum lugar já não deixa de ser instigante.
É um caso um pouco diferente do que acontece com
D.O.R., de Leandro Goddinho (Anhembi-Morumbi) e Homem-Ave,
de Rafael Saar (UFF - foto abaixo), pois se nestes sentimos a
mesma presença do sentido de exercício, aqui já temos dois cineastas
que podemos chamar de “autores universitários” – inclusive sendo
estes, respectivamente, o segundo e o terceiro curta de cada um
deles exibidos pelo FBCU. Goddinho, que ano passado apresentou
o desconcertante Darluz, confirma com D.O.R. algumas
das nada comuns opções estéticas do seu filme anterior (exploração
da teatralidade/frontalidade dos atores, uso grandiloqüente da
música, manipulação constante dos recursos gráficos e cromáticos
da imagem digital), mas claramente realiza aqui algo menos ambicioso,
que se aproxima mesmo da idéia de exercício pela via da performance
teatral. É um filme que reforça a singularidade do seu universo
audiovisual, mas
o faz de tal maneira em tom menor que curiosamente se parece com
algo que esperaríamos de um trabalho anterior a Darluz,
resultando menos potente vindo depois. Já no caso de Saar, embora
sua gramática não seja tão marcadamente autoral, acabamos numa
conexão curiosa também com seu filme do ano passado, Depois
de Tudo, que trazia Ney Matogrosso como ator principal. Pois
aqui ele realiza, a partir justamente da figura criada por Ney
nos tempos de Secos & Molhados, algo que vai pouco além de
um muito atraente exercício de fotografia de cinema (literalmente,
aliás, já que o trabalho nasce como filme realizado na cadeira
desta área). É forte, tem imagens de impacto (e também um bom
uso da narração em poemas, e trilha sonora), mas não aspira a
muito mais. Parecem, ambos, curtos respiros de dois diretores
que já estão um pouco mais a frente. O que não deixa de ser melhor
que o Bode Movie, de Taciano Valério (UNICAP), que depois
de apresentar há três anos o potentíssimo (ainda,e até por que
selvagem, não aparado) O Buraco, parece ter dado passos
atrás com este trabalho onde os pontos frágeis do filme anterior
voltam mais presentes, com muito pouco de adicionado ou de renovado
do que mais ali interessava.
O
fato é que, em meio de todos estes filmes que carregam tão claramente
esta cara(cterística) de exercícios, soou um pouco deslocada a
exibição ao final da sessão de Matryoshka, de Salomão Santana
(UNIFOR), outro “veterano” do FBCU, que já passou por aqui com
dois filmes – isso porque o curta de Salomão possui uma mão muito
certeira e um domínio firme das possibilidades de explorar imagem
e som. Curiosamente, assim como todos os filmes da sessão também
faziam de uma ou outra forma, Matryoshka trata de uma personagem
em crise de percepção e/ou relação com o mundo à sua volta. Só
que ao contrário dos outros filmes, aqui se consegue construir
em poucos minutos uma personagem (uma jovem cearense, que traz
uma Rússia dentro de si), conseguindo dar a ela e o seu universo
uma força própria com a qual não é possível não se comover. Assim,
por mais que saibamos seu diretor ainda jovem e também está descobrindo
caminhos, não há como não ver aqui uma maturidade de quem já está
com a “cabeça formada’, por assim dizer.
Possivelmente isso tem muito a ver com o ambiente
instigante que marca a Fortaleza “cinematográfica” de hoje, onde
talvez a simples troca e convivência entre vários jovens realizadores
em constante produção esteja mesmo provando aquela velha tese
de que o ambiente de troca entre semelhantes seria o grande segredo
dessa fase criadora. Só que, em Fortaleza, curiosamente o caminho
parece estar indo ao contrário: ao invés de se conhecerem na universidade
e levarem esta troca adiante, os realizadores começaram fazendo,
se conhecendo e trocando, e agora isso tem resultado no florescimento
de uma série de cursos e espaços de aprendizado, onde vários deles
atuam. Tai: talvez em Fortaleza o verdadeiro exercício hoje seja
o de aprender a ensinar.
Agosto de 2010
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