eletrônica
Imagens da Periferia, Parte 1: Falcão, meninos do tráfico
por Felipe Bragança

O Foco

Sobre a reportagem especial Falcão, exibida no Fantástico, já se escreveu um bom número de observações. Nessas escritas, mais ou menos articuladas, duas vertentes ficaram claras na sua forma de percepção do evento televisivo: de um lado uma tropa de intelectuais conscientes “chocados” com o que viram ou “souberam” vendo os fragmentos de entrevistas que MV Bill e Celso Athaide pinçaram de seu longo arquivo de imagens; de outro, uma reação mais cautelosa, indicando as manipulações do discurso iluminista da Globo e também uma certa falta de novidade sobre o estado dessa certa juventude brasileira nas imagens mostradas, apontando ainda o desinteresse autoral-estético do especial (com ênfase na presença das legendas e dos borrões no rosto dos meninos depoentes como um esvaziamento das imagens).

Se, de fato, o choque estupefato dos dramaturgos e intelectuais “globais” se torna ali antes objeto de legitimação da opção da emissora em exibir o especial, numa demonstração de velha masturbação de inconformismo, por outro lado, uma reação de negação do evento televisivo, diminuindo sua densidade por conta de uma certa falta de construção estética, parece um equívoco de leitura – uma projeção idealizada do que poderia ser a reportagem se o formato de exibição fosse outro, se não precisássemos de legendas para traduzir gírias ou de borrões para proteger rostos de  personagens (ler o belo artigo de Luiz Carlos Junior Oliveira Jr.).

O que me interessa e que até agora não vi sendo olhado com cuidado é o efeito e a natureza mesma das imagens ali mostradas, dessa composição gráfica-discursiva à beira do falso constituída pelas imagens como elas são naquela exibição. MV Bill, Athaide e a formatação televisiva-global não criaram, por fim, um objeto de choque, de impacto. Falcão apareceu na TV, antes de tudo, como um objeto de assombração, um filme de fantasmas às avessas, um objeto de esvaziamento individual dos meninos não como um a priori discursivo, mas como um efeito contundente. A rarefação da identidade através da fala submetida à impossibilidade da expressão facial, do gestual corporal, submetida às legendas que os traduziam, fez com que Falcão trouxesse não 17 personagens, mas um caldo fragmentado de impressões, afetos, sussurros sem rosto e pedaços de idéias, que, se vistos sob a égide da dramaturgia clássica, não se resolveriam em seu papel de identificação personagem-ação.

A “política dos autores” não funciona aqui como chave para a reflexão sobre o discurso construído, pois não me parece interessante analisar o objeto audiovisual Falcão numa chave de autoria plena: fazer de Bill e Athaide criadores audiovisuais cuja obra possa ser analisada via desmembramento de estratégias de criação. Falcão parece antes um caso de acontecimento audiovisual, de fenômeno cultural, filho do caos mais do que de uma ação diretora. Seu resultado/presença é um objeto em si existente, que pede antes uma crítica que saiba se aproximar de seus jeitos e trejeitos do que entrecortá-lo no sentido da falta, da ausência de um ideal estético de aproximação de um tema. Não há tema no Falcão que vi: há um universo fantasmagórico atualizado em sentidos de dor, que é uma dor da própria imagem insuficiente, digitalmente desfocada e transformada em resquício de forma. A estética resultante ali é antes uma estética do disforme, da fluidez reiterativa de um vozerio, do que da construção de uma verdade presentificada em personagens.

Talvez haja, nas entrelinhas, um desejo fetichista de uma certa classe média em se aproximar da imagem dos meninos, talvez alguém sonhe com um especial na Globo em que possamos de fato ter a sensação do conhecimento, da experiência de um dia-a-dia cru desses meninos, mediada pela TV. Talvez assim se sintam esteticamente agraciados, quando puderem sentir uma boa exploração detida desses personagens.  O que incomoda na média das reações a Falcão é ver que o discurso corrente se divide entre uma certa adesão do choque temático (um choque que não passa pelos olhos, mas pela moral vigente) e um certo desprezo dos iluminados diante dos fatos já conhecidos. O caso aqui, me parece, é que nem mesmo o choque moral nem o “sabimento” cínico são dados anuladores, arquivados,  que se resolvam assim como elementos gastos por estatística. “Quem não sabia disso?” – perguntam uns.  Eu respondo: não é essa questão que me interessa.

Como uma obra impressionista, o valor maior de Falcão está em seu sentido sensacionalista (ou sensacionista: centrado na construção de sensações físicas do espectador) do que no intuito iluminista que a Globo quer para si e que alguns críticos tendem a indicar como falta. Se Falcão foi pensado como objeto de denúncia, de fato sua ação premeditada está mais próxima da redundância do que do choque. O que se tem de interesse ali, de presentificação e de susto não são os dados, mas os tons de voz escondidos, os pedaços de boca, os vultos, os corpos desfocados ou em contra-luz. Ensaio involuntário sobre a rarefação de uma identidade visual pública de “povo”, numa sociedade celebrada pela imagem, fica ali o traço cruel e bonito de uma resistência de afetos que não cabem, não se conformam dentro do olhar jornalístico procurado como “testemunha”, nem da estética realista aclamada como verdadeira. 

A verdade em Falcão está mais em sua massa disforme de pixels marrons, amarelos, azuis, em suas vozes que flutuam quase como memórias em um disco arranhado num oceano de fantasmas. Essa fantasmagoria, essa transformação dos personagens originais em figuras de um show de sombras, talvez seja uma marca doída, dura, mas das mais eloqüentes sobre o próprio lugar de desacerto em que a imagem televisiva se encontra quando se pensa como espaço de inclusão discursiva dessa certa juventude brasileira: as imagens dos meninos não foram manipuladas pela TV Globo, foi a TV que não conseguiu olhar os meninos por outro lado. E aí, não adianta MV Bill e Glória Maria tentarem mediar uma suposição de imagens. Um gosto rascante de cegueira se estabelece entre olhar e televisão, como se não fosse possível ver em completude, como se o próprio projeto de MV Bill servisse como forma de se tornar inútil e sem resultado.

E nessa inutilidade, quase poética, de se falar dessas determinadas crianças através de vultos e pedaços de vozes, de vontades pequenas, de legendas, de insuficiências crônicas, é que Falcão ganha interesse como fenômeno. Nas suas entrelinhas surge um dilema social demarcado, mas, principalmente, um território de afetos e sonoridades de dizeres que não há colunista-que-visita-favela-e-inventa-termo, análise sociológica em estudo de anos ou narrativa-de-gângters-bem-amarrada, que resolva. Os meninos-fantasmas de Falcão e o espectador por trás do vidro fosco do videografismo existem ao mesmo tempo, no mesmo gesto que é rico por se mostrar limítrofe, falso: não basta ao audiovisual querer ser testemunha do mundo como um zumbi a seguir seu rumo devorando pedaços do que vê, nem mesmo crer na descrição do mundo para a mediação temática junto ao público ou ao Estado.

E, nesse sentido, não importa o sentido de documentário do evento, de um vício do “mostrar a vida real brasileira” que tomou conta do discurso audiovisual brasileiro em boa parte nos últimos anos e que costuma ser traduzida em mostrar espaços pobres como protagonistas de mazelas de maneira crônica e sem afirmações estéticas para além do “mostrar como as coisas são de maneira dinâmica e atraente”. O mito da formação identitária contemporânea brasileira via TV (e da TV Globo em especial), que reza à mídia o papel de deflagradora da realidade brasileira, bambeia nesse encontro insuficiente e dolorido que vai além da moral do certo ou do errado, mas se dá na tensão inerente de um território de caos (indefinição, incerteza) da vida cotidiana brasileira, que engole a penúria da dinâmica televisiva que nele se tenta empregar. O que vemos em Falcão é o lixo de um processo de encontro entre câmera e espaços, o resto de uma coletânea de imagens cuja mera captura não se mostra suficiente e que está no cerne mesmo da crise contemporânea do audiovisual e do cinema: até que ponto a observação imanente da vida consegue ir? Até que ponto cultivar o discurso da observação contemplativa? Até que ponto a alteridade pode servir de defesa para o esforço do discurso?

 


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