Ex-isto,
de Cao Guimarães (Brasil, 2010)
por Filipe
Furtadp
Das
dores do mundo
Ex Isto não é propriamente uma adaptação do "Catatau"
de Paulo Leminski, seja no nosso conceito habitual de adaptação,
que se refere ao mote do arco dramático (no caso, “Descartes encontra
os trópicos” – está lá, mas só ele, nem mesmo a estrutura entorno
da espera por Arciszewski é uma preocupação), seja num ideal bressaniano
de adaptação como leitura de uma escrita. Ex Isto localiza
no livro de Leminski seu conceito principal, e extrai dali um
sentimento de mundo. De certa forma, Ex Isto não é uma
adaptação, mas uma aproximação. Uma série de princípios e recursos
caros ao seu autor utilizados para sublinhar uma idéia que ele
encontrou no objeto adaptado.
Trata-se de um filme violento, porque só assim
pode-se fazer justiça a como o processo de “desrazão” do Decartes
de João Miguel é necessário para que ele complete seu caminho.
É ai que Ex Isto se revela um filme muito forte dentro
da obra de Cao
Guimarães, além de muito revelador também: se
diante de filmes como Andarilho e Acidente podemos
nos centrar no sublime pictórico das suas imagens e na criatividade
de algumas situações, e nem sempre considerar como elas vêm acompanhadas
de uma série de decisões nada simples, Ex Isto parte de
um reconhecimento de que a abertura para o mundo, que sempre foi
central no cinema de Cao Guimarães, não se dá
com singelezas, e sim que é um processo brutal. Há muitas imagens
sedutoras em Ex Isto, mas elas vêm sempre acompanhadas
de um incômodo constante. Chegar ao mundo, em Ex Isto, não é uma
questão de sublime, mas de necessidade. É romper uma casca essencial,
mas muito difícil. Entrar em contato com o mundo, deixar o eu
fechado da razão, é entrar em contato com toda uma história de
violência. Ex Isto reconhece isso.
Seria
muito fácil transformar o arco dramático de “Catatau” num processo
de sublimação pelo sensível do mundo, mas não seria honesto. Temos
no começo um eu muito bem resolvido consigo mesmo, um sistema
fechado; ao final temos a imagem de João Miguel nu se arrastando
pela areia da praia. Já não estamos no terreno do eu, simplesmente
estamos no mundo, reconhecemos o corpo, o concreto, uma dor que
não é interiorizada, está ali exposta na tela. Assim, podemos
dizer que este não seria um filme possível, não fosse a presença
de João Miguel que percebe bem os caminhos que Ex Isto
precisa percorrer. Rene Decartes não é um deslumbrado, mas alguém
que precisa ser arrancado de um estado das coisas a outro. Ao
fim, na praia, precisa se entregar. É um cego que enxerga pelo
táctil. Um violentado que alcançou o mundo.
Janeiro de 2011
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