Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios,
de Beto Brant e Renato Ciasca (Brasil, 2011)
por Juliano Gomes

À beira do abismo

A busca conceitual da obra recente de Beto Brant e seus habituais parceiros (Renato Ciasca, Marçal Aquino) ganha, em Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios, uma espécie de capítulo definitivo. O trajeto, que com mais clareza se desenha desde Crime Delicado até aqui, ganha um ponto de inflexão, chega a um paroxismo do balanço entre narrativa e conceito. Desta vez, o personagem artista, o espelho do filme, se coloca sobre uma linha de alcance ainda maior que nos anteriores. A aposta é entre um eixo que liga os personagens ao Território, a Natureza à Política, a Religião à Arte, e outros pares absolutamente maiúsculos. A ousadia quase “habitual” de Brant se direciona para a composição desse thriller, que no fundo se estrutura sobre o tema da identidade: identidade nacional, ao levar a discussão brasileira, dos grandes conjuntos para a região de maior ebulição e emergência, econômica e cultural, no país – o norte; identidade dos personagens e das imagens.

A proposta é, então, pela decupagem em blocos quase autônomos, centrípetos. É tentar captar justamente as transições desse macro território geográfico-estético-afetivo para dar-lhes sentido somente como aparição. Identidade é o que aparece, é contingência, é máscara e opacidade. E por estes meandros, novamente, o cinema de Brant parece estagnar-se diante do abismo que deseja. Se, por um lado, é louvável e rara uma aposta desta magnitude e firmeza de propósito, por outro lado, a oscilação que funda o filme é mais da ordem da dispersão do que da modulação de suas potências estéticas seguindo seu fim necessariamente errante. O desafio aqui é: encanto e representação. Diante da beleza, da plenitude, o que se pode fazer? Domá-la ou ser absorvido por ela? O aniquilamento de uma das partes é necessário, a tragédia está sempre dada.

Os oráculos, representados principalmente por Viktor Laurence (Gero Camilo), mas também por Ernani (Zecarlos Machado), estão a reiterar todo o tempo: isso vai acabar mal. Junto com Lavínia/Lucia (Camila Pitanga), eles formam uma espécie de triângulo magnético do filme, são os elementos de energia e de morte, enfim, os que deslocam os centros, as identidades.

O personagem do artista, agora reencarnado em Cauby (Gustavo Machado), é o antagonista destes centros de forças, é o intruso ali, aquele que tenta conciliar mundos, tenta dar arestas ao que é inextensivo por natureza (o desejo, a fé, arte, a “floresta”). Esse é seu drama. Ele é encarregado da travessia, é o herói trágico que vai ter que cumprir o caminho de algum sacrifício. Ele é o “eu” do título, isto é, ele é o que não crê, o que não tem transcendência, o que ignora os sinais, o que acredita que seu trajeto é individual e diz respeito somente a si mesmo (“Não vou fugir, eu sou inocente”, ele repete). Se “santa é carne que peca”, o pecado inverso de Cauby é justamente valorizar demais esse “eu”, essa estabilidade ilusória, não perceber que a tragédia é justamente o lugar desta anulação, onde tudo vai convergir em direção à aniquilação das partes, ao apagamento, seja no êxtase ou na morte (o que dá no mesmo). Sob tal estrutura, a câmera estabelece uma postura de deriva, de gravitação em torno dos personagens. Há um trajeto da imagem que estabelece centros nas cenas, e que tenta captar suas emanações, sua energia. O formato circular da movimentação de câmera é uma constante. Uma dança, uma benção, enfim, a câmera estabelece uma postura de ritualização da cena, que, aliado ao formato scope obviamente leva a uma idéia de transcendência (os pilares, ou, os personagens são: a beleza, a fé e arte. Sim, os grandes conjuntos).

Se a identificação entre o filme e Cauby é clara, novamente ela se reafirma na hesitação em abraçar com radicalidade seus próprios princípios - e se perder. A aposta na observação dessa cena-ritual depende de um processo muito fino de estabelecimento do transe que quase sempre fica no meio do caminho. Isto é, a transformação, a desfiguração, acontece na cena, mas não em nós. A missão de encontrar este princípio comum em tantos conjuntos tão pomposos parece pesada demais, de forma que muitas vezes, especialmente na primeira metade, a trilha sonora tem que “ajudar” prematuramente dentro dos blocos a criar clima, a estabelecer uma atmosfera de densidade, que a cena, o ritual, a dança, por si só não dá conta de criar. Nos embates que cada cena coloca, nesses jogos, nesses microdesafios entre forças, quem vence é quase sempre a informação, a comunicação, a modelo que não deixa restos e não permite transformações. A obrigatoriedade da narrativa “andar”, mesmo que de forma lacunar, impede a derivação radical, o esgarçamento das fronteiras que é, afinal, o que esses grandes conjuntos pedem a Cauby-filme o tempo todo. A deriva, se for tímida, não é deriva. O desvio, a metamorfose, precisa ser radical e total.

Curiosamente, o momento em que o filme finca suas bases mais fortes neste terreno pantanoso é no segmento final e no flashback no Rio de Janeiro. A falta de obrigação de movimento (no caso do Rio, da câmera andar, e no caso do final, da história “andar”) parece fazer o filme acertar o prumo ao abraçar menos seus meios para chegar a esses fins tão radicais. De alguma forma, a renúncia de alguns vetores nessa equação (no caso, absorção do fluxo e convulsão da mise en scène através da dinâmica dos atores e da câmera no território, assim como a desacentuação às subtramas) leva o filme a se aproximar dessa intensidade almejada. Porque o caminho para o transe, para qualquer extremo, é necessariamente indireto. O edipianismo do filme-Cauby é este: não perceber que o caminho é paradoxal; ir para os lados para ir para frente, e vice-versa. O filme avança quando volta no tempo, e quando recua na composição do espaço; e o filme se adensa quando os planos de fundo cumprem seu trajeto.

No fundo, sua tragédia é a do conhecimento da consciência que deseja aniquilação, alteração, mas não alcança. Os três pilares à sua volta todos cumprem o trajeto: dois mortos, e uma que se torna alteridade. Um fracasso, enfim. Absolutamente consciente. E é somente através de uma certa traição de seus próprios que se pode chegar às alturas desejadas pelo cinema de Brant, acreditando menos em si, tornando-se outro permanentemente, ritualizando a estrutura, espalhando seu conceito pela macronarrativa do filme e, aí sim, mergulhando no Rio, tornando-se meandro, pela aparente renúncia da intensidade como imagem, ou da representação do transbordamento. E preciso sê-lo e não mostrá-lo. Essa é a dificuldade do salto, é isso que as três forças em volta de Cauby cumprem, sob um preço alto demais. Infelizmente, parece que Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios não quer corre este risco. Ficamos nós também à beira do abismo, a vislumbrar essa vertigem que não embarcamos, com Cauby. Não ilesos, claro, com um olho a menos talvez, mas ainda à beira, olhando pro curso do rio, com medo de perder o horizonte de vista.

Maio de 2012

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