ensaios
A transcendência do prosaico
Eu me Lembro, ou o cinema segundo Edgard Navarro
por Fábio Andrade
Eu
me Lembro é um filme auto-biográfico
- e por ser um filme auto-biográfico, ele é inevitavelmente
sobre cinema. Não à toa, as primeiras imagens do
filme são documentos cinematográficos de época:
o passado de Navarro chega a nós com os riscos, o preto
e branco e o batismo de um tempo perdido, irrecuperável,
congelado nos fotogramas que, lentamente, viram vinagre. É
uma espécie de Vozes Distantes baiano, trocando
as canções de pub e a castração do
extra-campo de Terence Davies pelos cantos folclóricos,
a loucura e a explosão de sexualidade típicas de
Edgard Navarro.
Sobre
o cinema, eu disse: em dado momento da infância, Guiga –
o alter-ego do diretor – olha por uma janela que garante
uma pequena entrada de luz difusa na escada de sua casa. Do lado
de fora, uma criada canta enquanto lava os lençóis
manchados pelo mijo das crianças, o medo das crianças,
a pequenez das crianças diante do sonho noturno. Neste
primeiro momento, essa imagem – esse outro lado –
é reservado apenas para nós. O vidro da janela é
crespo, ao mesmo tempo transparente e opaco, decompondo o mundo
em pequenas gotas translúcidas, feito os átomos
de Seurat. Para Guiga, há apenas o canto da sereia, vindo
do outro lado, aquele mosaico luminoso de pontos coloridos, e
a voz de Cicinha, ao seu lado: "Ali é o céu.
É lá que mora Deus".
A
analogia entre o cinema e a janela já foi inventada e desinventada
diversas vezes pela teoria e a crítica cinematográfica.
Diversos cineastas fizeram uso da aproximação, de
Antonioni a Chantal Akerman, passando inclusive pelo já
mencionado Terence Davies. Em Eu me Lembro, constantemente
a câmera e as personagens se aproximam dos vários
vidros que separam os cômodos da casa, condicionando
a observação à sensação dupla
de proximidade e distância criada pelas janelas. Mas esta
janela – a janela da casa de Deus – é especial
justamente pela qualidade porosa do vidro, que dá a impressão
de mostrar e esconder a um só tempo. Ela é menos
uma janela, e mais um prisma – para usar a ainda bela definição
de Rudolf Arnheim – que distorce, reconfigura e infla de
mistério o mundo como ele é.
Certo
dia, basta um estilingue mal usado para a janela aparecer quebrada.
“O que havia do outro lado não era céu coisa
nenhuma”, diz Navarro, em voz over. “Era apenas o
quintal de Dona Elvira. Lá estava ela estendendo roupa
na corda. "Aquela foi minha primeira decepção
religiosa". O corte seguinte não poderia ser mais
eloquente: Guiga vai ao cinema pela primeira vez e assiste a O
Rei dos Reis, bastião do classicismo de Cecil B. DeMille
- a narração em voz over de Navarro, porém,
não diz o nome do filme; chama-o apenas, e ontologicamente,
de a vida de cristo.
Não se pode dizer que o cinema de Edgard Navarro é
católico, sequer exatamente cristão. Como baiano
que carrega consigo sua origem, o sincretismo – e não
só o religioso – é uma questão de identidade.
A recorrência de Jesus Cristo e de outras imagens católicas
é do reino dos arquétipos, estratégia constante
de construção de personagens na obra do diretor.
Mas essas duas sequências são ilustrativas da procura
de Navarro por seu “cinema transcedental”, como diz
o próprio no curta-manifesto Na Bahia Ninguém
Fica em Pé, realizado por ele, José Araripe
Jr e Pola Ribeiro, em 1980. São ilustrativas pois denotam
a atitude do realizador em sua busca pela transcendência,
da qual o cinema – como a analogia do barco que fecha O
Papel das Flores, de 1999 – é apenas a ferramenta
mais adequada.
Em
Tiradentes, quando escrevi rapidamente sobre o belo atropelo chamado
O Homem que Não Dormia, disse que Navarro talvez
fosse nosso maior cineasta clássico em atividade. Aparte
a menção direta e muito significativa a Cecil B.
DeMille em Eu me Lembro, a sequência da janela
é um pequeno tratado dessa impressão. Em primeiro
lugar, há o mundo – o quintal de Dona Elvira, absolutamente
prosaico em sua existência cotidiana. Filtrado pela irregularidade
mágica e misteriosa do prisma da janela – pela lente
da câmera – ele se torna o céu, imagem recorrente
nos filmes de Edgard Navarro, e para onde a câmera ascenderá
ao final de Eu me Lembro. O cinema vem como possibilidade
de redenção justamente após esse vidro –
esse primeiro simulacro de cinema, essa primeira caverna –
ser quebrado. A ingenuidade do espectador do mundo (da criança)
estilhaça com a vidraça. Do outro lado, há
apenas o mundo.
O
ofício do diretor é justamente o de apontar a câmera
– esse outro prisma –, esse olhar que registra as coisas
nos fundos da cabeça (novamente citando Navarro em Na
Bahia Ninguém Fica em Pé) para a existência
prosaica das coisas, e extrair, dali, uma possibilidade de transcendência.
Com as condições ideais – o tempo, o enquadramento,
a luz, os atores – é o que basta para que, desse cotidiano,
brote a sensação de sagrado, como os cogumelos surgem
nos excrementos das vacas em Alice no País das Mil Novilhas,
seu primeiro curta. De lá para O Homem que Não
Dormia, o cinema de Navarro continua fundamentalmente o mesmo.
Ou ao menos seu objetivo – sua ilha do outro lado da água
– permanece igual. O que muda é justamente o cuidado
com esse vidro, esse trabalho progressivo e cada vez mais concentrado
de um Sísifo que encarna o vidreiro dedicado, com a esperança
de que, se bem feito ao extremo, o vidro possa de fato transformar
a realidade, mesmo depois que uma pedra de estilingue mal mirado
- o acaso, enfim - o atravessar.
Maio de 2012
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