ensaio - especial cinema americano hoje Onde
a ordem não tem vez por Cléber Eduardo
Os
primeiros dois meses de lançamentos cinematográficos (que, não por acaso, constituem
no Brasil o bimestre do Oscar) foram marcados por filmes de cineastas americanos,
que, independentemente da recepção crítica melhor ou pior entre alguns redatores
de Cinética, estimularam parte da redação a discuti-los e/ou afirmá-los em nossa
lista interna. Em um espaço de poucas semanas, pudemos ver, lado a lado, os novos
filmes dos irmãos Coen, de Tim Burton e de Paul Thomas Anderson, assim como experiências
menos “legitimadas de antemão”, mas a serem também levadas em conta, como as de
Juno (Jason Reitman) e Cloverfield (Matt Reeves), que, por razões
muito diferentes, precisam ser colocadas em perspectiva. Também não podemos deixar
passar em branco, até para tornar mais complexa uma visão sobre esse recorte,
um filme tratado com algum desprezo, Conduta de Risco (Tony Gillroy), e
dois outros bastante elogiados em nossas páginas, Zodíaco (David Fincher)
e Os Donos da Noite (James Gray), que chegaram a constar da lista de melhores
de 2007 de alguns cinéticos. Se cada um desses filmes foi
abordado com críticas em Cinética, a colocação deles em relação nos permite ver
como se situam em sua contemporaneidade. Podemos dividir em linhas gerais esse
conjunto de filmes em dois grupos. Um é composto de narrativas sem possibilidades
da ação transformadora em sua lógica interna. O outro abre essa brecha, mas não
sem desconforto, não com idealizações. Nos dois grupos, embora se esteja mostrando
casos específicos, eles são mais abrangentes: todos os filmes mencionados localizam
no fragmento o reflexo de algo mais complexo e mais generalizado. Vemos a impotência
de um agente da lei, os equívocos de um projeto de vingança, os descaminhos de
um empresário sem limites, a fusão de paranóia, cultura pop e imagem-folia na
destruição de uma cidade, uma adolescente com gravidez para resolver, um advogado
e um gerente de boate vivendo mudanças de atitude e de consciência diante do crime
de empresas e de máfias estrangeiras, além de um nerd com fixação por um
crime não resolvido. Violência e capitalismo postos em viés histórico, o adolescente
contemporâneo, os crimes das empresas, a vingança, as ameaças e paranóias urbanas,
a não solução dos desacertos da sociedade. É importante
destacar que, embora esses filmes pareçam dramas sociais quando abordados por
esse viés, por essas palavras-chave, todos estão comprometidos, de alguma forma,
com os códigos de gênero – sobretudo o thriller e o policial, mas também
comédia e musical, disaster movie e drama familiar, pelos quais transitam
sem abrir mão de seus pontos de vistas. Se projetos menores e mais “independentes”,
com menos compromissos com empresas e com códigos narrativos e de encenação tendem
a parecer mais confiáveis quando lançam um olhar crítico para o mundo, são nos
filmes realizados dentro de certo esquema de produção que a problematização de
determinadas situações são mais evidentes, porque mais tensas na lógica da obra,
justamente porque o compromisso com qualquer nível de diversão e de oferta de
prazer ao público terá de passar pelo descarrego de desconfortos e mal estares.
Mesmo a transformação dos personagens em crise, mesmo a mudança de determinado
cenário, quando olhamos com atenção, não estão acenando com sorrisos no rosto,
mas com senso de luto. A exceção é Juno, sem dúvida, daí sua inclusão,
como relativização. Por que Juno? Porque lá temos
a inversão de uma conduta dramática bastante presente na atual temporada, em filmes
como Desejo e Reparação, O Caçador de Pipas e Angel, nos
quais escritores e escritoras resolvem por intermédio da ficção/imaginação seus
maus passos ou maus laços na infância. Se nesses três filmes narrar é uma forma
de auto-perdão, de reconstrução das contingências e
de reformatação dos percursos e de seus efeitos, com todos eles vendo sujeitos
mirins como vítimas de circunstâncias, de seus próprios temperamentos e de suas
imaturidades, Juno, ao contrário, não está disposto a ficar pedindo desculpa
por e para sua personagem, nem empenhado em desculpá-la, porque, idade a parte,
vemos uma menina atrás de solução para seu problema (gravidez), lidando de forma
objetiva e responsável com a situação, talvez sem seguir os preceitos do drama
sentimental acariciador da consciência, com as marcas de seu tempo, mas, sem com
isso perder a delicadeza e o afeto na maneira de vivenciar seu drama. Juno
não tem culpa – nem filme, nem personagem. A adolescente assume seus atos. Quando
o filme termina, se o mundo não está perfeito, ao menos cada um está na sua, em
busca de seu lugar e de sua felicidade, mesmo se esse lugar e essa felicidade,
em relação aos finais felizes de décadas atrás, não são exatamente o primado do
equilíbrio e da harmonia. Juno lida com o possível. É o máximo a se aspirar
naquela contingência. Talvez não seja o oposto dos caminhos
em Conduta de Risco e Os Donos da Noite, filmes que, sem o humor
e o frescor do universo juvenil de Juno, mostram esse campo do possível
com mais desconforto, embora com mais adesão a um senso de tradição do personagem
com consciência e moral. Juno não lida com o certo e o errado, com senso de moral,
mas com a circunstância: ela quer tomar a melhor atitude em dada situação, sem
ignorar os dados dessa situação. É uma personagem colocada colada às suas contingências.
Ela não faz o certo. Faz o possível, o melhor para ela. Já em Conduta de Risco
e Os Donos da Noite lidamos com questões morais (ainda que, literalmente,
de ordem legal), e uma “grande ação” será reivindicada de seus personagens. Eles
não podem ficar melhores ao final, pois carregam embutido na “ação correta”, o
peso da solidão, da consciência de estar em um mundo com as regras transformadas
em saco de areia. Quando
o advogado de atitude flexível coloca os interesses de cidadão acima dos interesses
próprios ou privados em Conduta de Risco (ao lado), ele faz a coisa certa
e se coloca como “modelo”, o da consciência culpada, mas termina sozinho e sem
glória, de acordo com a imagem construída dele ao longo do filme, imagem de um
mestre em gambiarras jurídicas, que, no entanto, não consegue agir para o bem
de sua conta bancária e permanece à sombra dos tubarões. Uma espécie de loser
bem sucedido. Também não podemos acreditar que, em Os Donos da Noite, quando
o gerente de boate torna-se policial, rompendo com gângsters russos e se reaproximando
do pai e do irmão, ambos fardados, essa mudança irá alterar algo. Ela apenas é
uma forma dele se vingar e se defender. Nos dois filmes,
que ainda nos permitem ver ações individuais obtendo vitórias isoladas contra
as ervas daninhas da sociedade (empresários cujas ações ameaçam a vida em Conduta
de Risco e comerciantes russos de drogas em Os Donos da Noite), os
heróis, se assim podemos chamá-los, terminam com um peso nas costas, mesmo se
a consciência foi aliviada com seus gestos finais. Suas últimas imagens, a do
rosto em plano longo em Conduta de Risco e a dos irmãos se abraçando em
os Donos da Noite, carregam esse sentimento de desamparo e gravidade. Já
se pensarmos os desfechos de Onde os Fracos não têm Vez (Coen), Sangue
Negro (Anderson), Sweeney Todd (Burton) e Zodíaco (Fincher),
por mais distintos que sejam os estilos em tela, certamente perceberemos uma visão
sombria, cercada de sangue e de mortes, que resulta em uma constatação de impotência
e a afirmação de uma resignação, de uma derrota, que se manifesta na incapacidade
de um xerife entender seu mundo e seu tempo, na solidão final de um sórdido milionário
do petróleo; na morte do barbeiro assassino e vingativo; e na constatação de que
“nada valeu a pena” para o nerd detetive. Em cada um desses filmes, as
missões, em alguma medida, fracassam no final. Há neles a radiografia e a confissão,
da parte da instância autoral, de uma falta de saída para o estado de coisas.
Por essa razão, em vez de parecerem remeter a uma circunstância
específica, esses filmes superam seus mundinhos: na verdade, há neles um estado
de espírito mais amplo – que parece ter menos a ver, por sua vez, com uma referência
aos EUA, mas com uma atitude do homem no século XXI. Nas articulações de Anderson
e Burton, que terminam com uma variação da mesma imagem (protagonista prostrado
no chão com a morte à volta), não há referencial ou modelo de comportamento, porque
um protagonista é um empresário ganancioso com manobras de embromação como estratégia
e o outro um barbeiro com sede de vingança suficiente para transformá-lo em serial
killer. Em ambos os casos, somos levados a acompanhar os movimentos dos dois
personagens rumo às suas metas e às suas quedas, um não medindo exploração e mentiras
em nome de dinheiro e poder, o outro não medindo mortes em nome de uma vingança
e de um amor subtraído por um funcionário da Justiça. Anderson vai ao passado
dos EUA, certamente disposto a encontrar lá, à sua maneira, algo da genealogia
do capitalismo americano. Burton vai a Inglaterra, para, em uma fábula de carnificina,
com toda aquela pompa visual de gótico de época (de assumida encenação artificializada),
declarar ódio ao homem. Nos
dois casos, o sombrio está na imagem. Anderson começa o filme com seu protagonista
sob a terra, em uma mina, no escuro, homem do subterrâneo e das trevas que, quando
sai à luz, traz dentro de si algo daquela sombra do início. O personagem cai e,
momentos depois, está de pé. A luz do dia. No final, está caído. A trajetória
desse homem da terra será pautada por sua cobiça por mais terra e pelas riquezas
contidas nela. Sobretudo, mais que dinheiro, capacidade de consumo, ele quer ter.
Possuir. Viver da terra e para a terra. Mais uma vez situando o filme durante
algumas décadas, como em Boogie Nights, Anderson opta por uma imagem racional
nesse painel sobre um homem só. Seus travellings solicitam atenção para
si em sua tranqüila dinâmica, a luz mostra um pensamento de fotografia. Há claramente,
na condução do material, na maneira de resolve-lo visualmente com sua elegância
gritante, uma solicitação de reconhecimento artístico que, para nossa perspectiva,
significa um reconhecimento de uma visão de mundo. Uma visão, obviamente, do poder.
De suas estratégias. De sua doença. De seus doentes. Burton
tem interesse na fúria fria de uma paixão abortada, e não no poder – a não ser
o poder como alvo, como instrumento de força destrutiva, contra o qual é preciso
reagir. Mas não se trata de uma reação política, potente, transformadora, porque,
em sua vingança, o horizonte de vingados é Londres, a Inglaterra, o mundo, e não
apenas uma instituição apodrecida. Não há filme mais sinistro no atual panorama,
sobretudo porque, por compromissos, precisa se impor como espetáculo. Temos lá
uma cidade de mentira, uns momentos de cantoria sem coreografia, um musical de
bode e de luto, sem nenhum referencial ou modelo para identificação, com uma comerciante
de tortas que usa carne humana na receita, conseguida da fábrica de cadáveres
proporcionada pelo barbeiro de mal com a humanidade. A fotografia
em gelado tom acinzentado, quase sem cor, nos mostra o iceberg a habitar o interior
humano, também ocupado pelas paixões, pelo vermelho do sangue, que, conforme sai
dos corpos, parece deixar as imagens ainda mais sem cor, apesar de tingidas pelo
escorrer do líquido vistoso. Nos dois casos, os personagens, pais, terminam sem
os filhos, que, no entanto, ganham passaporte para o futuro. Terminam também de
contas acertadas com seus antagonistas (de maneira mais complexa em Sangue
Negro, de maneira mais direta em Sweeney Todd, no qual, inclusive,
o ciclo da vingança continua após o cumprimento da missão). Em
Zodíaco e Onde os Fracos não têm Vez, se a narrativa se distribui
por mais de um foco, a voz da consciência sobrevive, para, acima de tudo, constatar
a inutilidade de sua presença. Tanto o cartunista de jornal em Zodíaco
quanto o xerife veterano de Onde os Fracos não têm Vez são seres de um
mundo tentando aplicar a lógica desse mundo em outro – sendo esse mundo, para
o cartunista, o da cultura pop; para o xerife, o da antiga América. Cada um desses
dois mundos dotado de regras claras de funcionamento. Já no mundo do crime investigado
por ambos as regras não existem mais: o serial killer de Zodíaco não
tem método decifrável; o de Onde os Fracos não têm Vez parece onisciente,
onipresente e onipotente, um agente enviado por algum deus maligno. Nos dois filmes,
quando tudo acaba, o mundo está de pernas para o ar. Não parece ser outra a imagem
deixada por esses filmes em seu conjunto: a de mundos onde a ordem não tem vez. Março
de 2008editoria@revistacinetica.com.br
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