Estrada para Ythaca,de Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Pedro Diógenes e Guto Parente (Brasil, 2010)
por Raul Arthuso

Estrada para YthacaO prazer da encruzilhada

Se, como indica o título, o que interessa em Estrada para Ythaca é o caminho, o trânsito, a passagem, esta trajetória dos quatro personagens é essencialmente de esvaziamento. Primeiro, do homem social: eles se afastam em direção a uma natureza virgem, na qual o traço humano se torna progressivamente rarefeito. Se nos primeiros momentos da viagem ainda é possível enxergar postes, motos passando pela estrada ao fundo, mais à frente só se enxergam morros, mato, terra, árvores. Na seqüência mais marcante do início da viagem, um dos quatro personagens encontra um case de CDs no carro e os atira pela janela, julgando a qualidade deles. Porém, nenhum dos discos o agrada, assim como nenhum deles é identificado. É um ato que denota um despojamento perante as coisas do mundo, profundamente ligado à melancolia inicial dos personagens, motivada por um luto que não se define por completo. Só se sabe que esse mundo, local de partida, já não tem mais gosto; o melhor é afastar-se em busca de algo novo que o substitua. É interessante notar que a última pessoa com a qual tomam contato nesta trajetória seja o homem embriagado de quem roubam o carro para iniciar a viagem.

Um segundo esvaziamento, porém, toma corpo à medida em que a viagem avança e o homem social fica para trás: é o despojamento do personalismo em favor do grupo. O individualismo triste dá lugar ao gosto pela experiência de viver, porém numa reclusão que transforma o grupo em uma simbiose mais importante que o movimento particular. Quando eles se vêem diante da encruzilhada que pode levar a Ythaca, não há discordância, nem dúvida ou argumentações por parte de algum dos integrantes do grupo. Curiosamente "recheada" com uma citação um pouco atravessada a Vento do Leste, do Grupo Dziga Vertov, desprovida de seu contexto histórico original, - ou seja, tudo que representava a figura de Glauber Rocha incitando uma escolha por instâncias políticas - inserida num devaneio no qual um fantasma é quem lança o mesmo "desafio", a encruzilhada catalisa o esvaziamento: a incitação glauberiana é transformada em fetichismo cinéfilo. Se existia a fabulação quanto ao posicionamento perante o cinema, por sua dramaturgia em sintonia com certas tendências do cinema contemporâneo, nessa cena isso mesmo se esvazia e transforma-se em citação pura, quase ruidosa, do aforismo de Glauber.

É então, nessa encruzilhada rumo ao vazio, que os quatro rapazes já não são indivíduos, mas peças de uma arquitetura coletiva. Se antes eles não tinham nomes (exceto um deles, que parte antes dos outros três e é fagocitado por eles na beira da estrada), identificados apenas por suas roupas, agora até isso pouco importa. Um deles fraqueja: vê a foto do amigo falecido e sofre. Porém, é apenas uma recaída; o corpo conjunto é que se faz presente. A melancolia individualista só pode ser combatida com a divisão das perdas entre o grupo. Há um reflexo com o próprio modo de produção do filme, no qual o auteurisme dá lugar à divisão dos prejuízos dos quatro realizadores que não encontram um modo de realizar o filme se não assim, coletivamente, sem perspectiva de lucratividade ou um lugar no paraíso: não sabe o que é nem onde fica Ythaca.

Estrada para YthacaE não poderia haver seqüência mais sintomática e apropriada para ilustrar a política de Estrada para Ythaca do que a da abdução. Ela completa alegoricamente a busca do filme: o elogio do grupo, do gueto, do fechamento, da autarquia do microcosmo frente ao macrocosmo. A abdução é a alegoria que completa a trajetória dos quatro amigos propondo uma solução de sobrevivência frente ao mal-estar daquele estado de mundo inicial através da reclusão e do fortalecimento do simulacro afetivo criado pelos personagens. Como afirma Benjamim, a atividade do alegorista é a expressão da melancolia. Estrada para Ythaca é uma trajetória melancólica: o que era dor profunda vira, após a abdução, uma interrupção pelo mundo. Porém, o sentido de distância entre o que é ideal e o que é possível permanece. É sintomático que duas canções emoldurem o filme: na primeira cena, "Vai Levando", com seu teor "apesar de tudo", enquanto que, na última, toque "Volta por Cima". Esta, com seu sentido de "apesar do resto", explicita a atitude melancólico-política dos realizadores, que encontram a força de seu filme na catarse de todo o sofrimento subjetivo como forma artística e deixam, por outro lado, exposto seu ponto fraco de não achar saída para além dessa série de alegorias. Pois, a manifestação artística, além de forma de posicionar-se no mundo, é instrumento para transformá-lo. Quando a citação glauberiana atravessa o caminho dos personagens, mais que uma tomada de opção, algo fica em aberto. Se, em seu modo de produção, Estrada para Ythaca é uma proposta de caminho, em sua política impera o prazer pela encruzilhada.

Junho de 2011

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