in loco - cobertura dos festivais

Estômago, de Marcos Jorge (Brasil/Itália, 2007)
por Cléber Eduardo

O humor dos detalhes

Se houvesse cinema popular no Brasil, e não apenas filmes com vocação popular, Estômago seria visto por milhões de espectadores. Desde sua primeira informação narrativa, em forma de narração em off de João Miguel, sentimos o pacto com a comédia verbal. O humor não está tanto no que está sendo dito pelo ator, mas na maneira com a qual ele diz para produzir o efeito cômico. E assim será em todo o restante do filme: a graça está no ritmo das palavras, nas freadas, nas interjeições, em alguma expressões, em uma autenticidade de cinema, em um naturalismo que não esconde sua carga de representação, de código de comédia, criando uma sedução imediata.

Os diálogos são um ponto muito alto em Estômago. Cinema da palavra? Longe disso. Marcos Jorge sabe dirigir para seus atores e para as situações nas quais estão envolvidos, chamando pouca atenção para suas construções visuais – e ameaçando derrapar quando o faz, em busca de uma visualidade chique e publicitária em poucos momentos, para qual colabora algumas imagens do fotógrafo Toca Seabra e uma música exageradamente explorada quando a coisa aperta. Esse senão não inibe a potência do que realmente importa em Estômago: o anedotário em torno do protagonista-narrador, Raimundo Nonato, e a performance dos intérpretes (João Miguel e Babu Santana sobretudo). Não há um único momento em que essas atuações-shows entrem em competição com o material, ou mesmo com os personagens, porque os personagens são essas atuações. Só estão ali como imagens e presenças capazes de nos cativar com suas características. Sim, há estereótipos. Mas se brinca com eles.

Brinca-se também com as expectativas criadas a partir dessas caricaturas. Dessa maneira, a evolução do percurso de Nonato, o paraibano que chega ao Sudeste, vira cozinheiro de pé-sujo, ascende para a cozinha de um restaurante italiano e vira o chef de sua cela na cadeia, não canta os passes. Embora a narrativa se desdobre em dois segmentos temporais, um acompanhando sua evolução como cozinheiro, outro a sua ascensão na prisão pelos dotes culinários, não parece haver antecipação da causa de seu encarceramento, deixando a revelação para os momentos finais. Um final surpreendente em alguma medida, porque, na apresentação e desenvolvimento de Nonato, vemos um tipo ingênuo e devagar na compreensão, uma ignorância com talento, sem nenhum tipo de sinal de maldade ou amoralidade à vista. Esse choque entre o que vemos do protagonista, alguém puro, e sua condição de criminoso trancado no xadrez, cria certo desconforto porque sabemos, de alguma forma, que as imagens vistas não traduzem tudo. E esperamos esse momento da revelação.

Pois essa pureza do nordestino chucro e gente boa será contaminada em parte pelo mundo onde vive, em parte por sua própria mudança, mostrando o quanto a arte, no caso gastronômica, é um exercício de poder, com a qual ele se beneficia e manipula seu entorno para sua afirmação. Nonato é corrompido pelo talento, pela capacidade de agradar com suas criações, de se fazer necessário, do qual todos passam a depender para viver. A arte de forrar os estômagos alheios com capricho e criatividade torna-se a ferramenta com a qual o protagonista mediará sua relação com o mundo. Ele cozinha para ter sexo, para ter sossego, para ter conforto e para ter poder. Não é um zé mané. Apenas come pelas beiradas.

Não é o caso de se apegar a esse tema para vermos o filme como uma auto-reflexão sobre a própria condição do criador. Porque a força de Estômago, longe de estar na relação entre os dois focos narrativos, um tanto esquemática em sua equilibrada organização, encontra-se na beleza de alguns momentos. É possível rir e se emocionar simultaneamente com as experiências entre as caricaturas, com a doce visão dos presidiários, com a relação entre Nonato e uma prostituta felliniana, com a própria narração do protagonista. São forças geradas por detalhes, sutilezas, pela explosão verbal de um Babu, por um olhar de lado de João Miguel, por um resmungo, por pequenas modulações de expressões e vozes. Um filme de minúcias, de um conjunto poderoso, que merece transpor certo gueto de circulação.

Setembro de 2007

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