ensaios
Estamira: personagem herzogiana?
por Eduardo Valente
É
com considerável apreensão que assistimos aos primeiros planos de
Estamira, em que a personagem-título ruma para o lixão de
Gramacho num preto-e-branco hipergranulado e com efeitos de envelhecimento
digital da imagem. Por alguns minutos parece que todo aquele universo
em frente à câmera (seja o universo pessoal dela, seja o universo
sócio-geográfico onde ela habita) vão ser soterrados pela intervenção
estética do diretor do filme na imagem. Logo nos vêm ecos do recente
Moacir Arte Bruta, com sua inclemente transformação do sujeito
em cena num objeto dos fetiches sócio-estéticos mais estranhos ao
seu universo – seja nas mãos do diretor do filme, seja nas do artista
plástico Siron Franco, na cena que este protagoniza junto com Moacir.
Pela cassação constante da expressão do sujeito (que só tem alguma
chance de aparecer em cena quase no final do filme, na extensa cena
de conversa dele com o pai – cena que parece um trailer do
filme que não foi feito), o filme exerce, ele sim, uma arte bruta
– bruta como uma entrada de Materazzi.
Em Estamira, o desafio de Marcos Prado
não é pequeno, afinal lida com dois dos dilemas éticos mais recorrentes
da prática documental: como filmar a miséria e como filmar a loucura.
Tão daninha quanto a arte bruta acima citada (ou mais) é a arte
piedosa da câmera-ONG, aquela que confunde respeito com piedade
e se julga no dever de proteger seus objetos do mundo (e, se possível,
de si mesmos). Pois, ao longo da narrativa de Estamira,
é com alegria que vemos como Marcos Prado consegue seguidamente
se desvencilhar com enorme dignidade dos dois riscos corridos.
E, no trajeto que o filme segue, curiosamente o cinema que mais
surge como um paradigma com o qual comparar o filme de Prado é
o do alemão Werner Herzog.
Ao ceder extensivamente a palavra a Estamira (que,
caudalosamente, a toma), Prado permite que caiba ao espectador
resolver o enigma essencial do filme – qual seja: louca é ela,
ou é o mundo? Ou ainda: será que loucos não somos nós? Porque
o discurso de Estamira nunca é menos que um poço de contradições:
às vezes de uma lucidez estonteante, às vezes confuso e desprovido
de qualquer tipo de lógica, muitas vezes assemelhando-se ao de
uma criança (birrona, impaciente, auto-centrada). Dessa maneira,
o espectador nunca se encontra confortável na sua cadeira quanto
a como se posicionar em relaçãoo a ela: trata-se de um filme-homenagem,
um filme-denúncia, um filme-observador? Ou todos (e nenhum) ao
mesmo tempo? A decisão fica para o espectador.
Se
substituirmos no parágrafo acima o nome de Estamira pelo Timothy
Treadwell, protagonista de O Homem-Urso, recentemente exibido
no Brasil, perceberemos o porquê da aproximação aqui proposta
entre os dois cineastas. No filme de Herzog, nossa dificuldade
a nos relacionarmos com o personagem é absolutamente semelhante.
A cada seqüência/informação nova que o filme adiciona (e aqui
cabe observar a forma semelhante como os dois filmes vão colocando
em cena materiais sobre o passado dos personagens), menos sabemos
sobre como conceituar aquele homem em cena. É curioso ver como
há paralelos até mesmo entre a auto-ficção filmada de Treadwell
(material do qual Herzog se apropria para “dar a palavra” a ele)
e a performance, altamente consciente da câmera, de Estamira.
Em um filme como no outro, quanto mais se abre o espectro da imagem,
menos conseguimos ver com clareza.
O que é inegável, em ambos, é o desconforto natural
do espectador em lidar com a cristalina presença cênica da insanidade.
Insanidade, claro, que é nada mais do que a incapacidade de seguir
as regras sociais vigentes, dentro do que se compreende como “comportamento
aceitável”. Os rompantes de insanidade (seja na infantilidade
egocêntrica de Treadwell, seja na agressividade irada de Estamira)
mexem com o espectador – que, na maioria das vezes, ri. E, ao
rir, revela mais sobre si mesmo do que sobre os filmes – porque
os cineastas não tornam seus objetos risíveis (embora, sem dúvidas
ou ingenuidades, eles sejam muitas vezes hilários - e os filmes
mostram saber disso, sem medo ou preconceito). Mas, é importante
notar sobre a reação notada nas salas sobre os dois filmes: ri-se
um riso cada vez mais tenso. Porque se a loucura pode até ser
engraçada como gag, como mote narrativo ela é muito mais
incômoda.
Quase todos os filmes de Werner Herzog são filmes
sobre a loucura (dizer todos talvez não fosse impreciso, mas seria
uma inverdade pelo fato de, numerosos e eventualmente de difícil
acesso, eu não tê-los visto). Mas, cabe entender, de saída, que
a loucura em Herzog é tão divina quanto alienante – e não faltarão
aqueles para dizer, aliás, que o mais louco personagem de seus
filmes é sempre ele mesmo, personagem onipresente em seus documentários
(na maioria das vezes pela dicção inconfundível de suas personalíssimas
narrações, mas em algumas vezes fisicamente em cena). Aliás, talvez,
se uma diferença pode ser estabelecida entre Estamira e
o cinema de Herzog é a ausência do interlocutor (Marcos Prado)
em cena. Não que isso seja um defeito ou uma falta no filme, mas
sem dúvida é um acerto e um significado extra no cinema de Herzog.
Ao colocar-se em cena (em voz ou corpo), Herzog explicita que
ele é parte daquele mundo que filma, e que, portanto, nenhum distanciamento
é possível.
Para Herzog, a loucura é a irmã-gêmea desprezada
da genialidade. E a forma como ele encena isso parte, antes de
tudo, de uma constatação: o universo (na maior parte dos casos
leia-se, a natureza) é louco. Portanto, em primeiro lugar, Deus
(se ele existe), é louco também (e aqui o discurso de Estamira
espelha muito do que se filma em Sinos do Abismo, o filme
de Herzog sobre a religiosidade na Rússia). E, por isso mesmo,
é apenas esperado que, habitante de um universo louco regido por
um Deus idem, o homem seja, ele mesmo, louco. De fato, todos aqueles
homens que se dispõem a enfrentar os limites naturais do homem
no mundo (pensamos no cientista-cineasta de O Diamante Branco,
na relação de desafio do esquiador em O Grande Êxtase do Entalhador
Steiner, no próprio Treadwell ignorando as separações entre
mundo selvagem e civilizado tentando tornar-se um urso), antes
de serem loucos, são profetas. Ridículos muitas vezes, como todo
profeta corre o risco de se tornar, mas não menos grandiosos por
isso. São homens e mulheres que, antes de tudo, se engrandecem
(sem pieguice) pela compulsão de se rebelarem contra os limites
impostos a eles.
E
é do combate constante entre estes homens e a natureza que muitas
vezes Herzog retira os planos e cenas mais impactantes do seu
cinema (especialmente em Lições da Escuridão - foto ao
lado) – e não é diferente com o trabalho de Prado em Estamira.
A cena final na praia, embora um tanto forçada enquanto situação-documental,
é absolutamente brilhante como encenação e montagem (na sua colocação
como fecho do filme, assemelha-se muito ao plano final da comunhão
de Treadwell com os ursos – deixando claro de que lado ficam as
simpatias dos cineastas). Além dela, o vendaval no lixão e a forma
como os caminhões de lixo passeiam pelo espaço nos fazem pensar
muito em tantas cenas, de novo, de Lições da Escuridão,
mas também de Fata Morgana.
Este último filme, aliás, nos ajuda a lidar com
a outra grande questão ética de Estamira: a miséria social
como objeto fílmico. É fato que o sangue latino de Prado fala
mais alto aqui e ali (especialmente na melodramática relação de
Estamira com a filha abandonada, que dá vazão a uma seqüência
especialmente infeliz no uso da trilha sonora), mas a relação
estética dele com as personagens em situação de miséria está muito
mais perto do Herzog de Fata Morgana do que do embelezamento
“dignificante” de um Sebastião Salgado. Ao invés da desindividualização
resultante deste último, o que temos no olhar de Prado e Herzog
é a impossibilidade do “realismo” frente a um universo, em si,
inerentemente surreal (a África, para Herzog; o lixão de Gramacho
para Prado). Sua estetização daqueles espaços não parte de uma
tentativa de embelezá-los, ou de achar o sublime no sofrimento
dantesco, mas sim na certeza da necessidade de desnaturalizar
o que não pode ser natural.
No meio disso tudo, porém, talvez o que haja de
mais belo no mundo que se descortina pela lente dos dois cineastas
é uma constante capacidade do maravilhamento com o mundo, que
parece se descortinar pela primeira vez a cada personagem ou paisagem
descoberta. Maravilhamento este que não pode ser lido como um
sonoro “UAU” abobalhado, mas sim com a certeza de que a realidade
do homem, da natureza, de Deus (seja lá ele o que for) são fontes
de eterno mistério. E que o Mistério é, ao fim e ao cabo, o único
tema que pode interessar ao documentarista captar.
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