in loco - cobertura dos festivais
Essential Killing,
de Jerzy Skolimowski
(Polônia/Noruega/Irlanda, 2010)
por Eduardo Valente
Cinema
essencial
Nos seus primeiros 15 minutos, Essential
Killing pode, facilmente, enganar o espectador mais apressado,
que enxerga no trajeto do personagem principal, da escuridão de
uma caverna no Afeganistão até um indistinto país do Leste Europeu
como prisioneiro americano de guerra, mais um possível “filme-denúncia”
sobre os maus tratos do exército norte-americano aos seus inimigos
na “guerra ao terror”. Neste começo, principalmente no ambiente
das prisões, Jerzy Skolimowski se utiliza inclusive de uma série
de procedimentos bastante comuns ao cinema contemporâneo, como
a câmera em balanço rápido e constante, e os cortes consecutivos
na imagem, criando aquele sentimento já familiar de “realismo
realçado”, algo devedor da incorporação de elementos documentais
à la Greengrass (ou Dardenne,
dependendo da chave).
No
entanto, talvez importasse menos, desde já, ao espectador estar
atento a essa incorporação de um contexto (não apenas político,
mas também audiovisual) do que aquilo em que Essential
Killing se diferencia quase radicalmente
de qualquer filme do gênero. Pois no aspecto individual, e humano,
não há da parte do discurso do filme qualquer tentativa de identificação
entre platéia e personagem principal que não passe pelo mais básico
elemento físico: temos aqui um ser aterrorizado (e aí talvez o
termo pareça duplamente adequado, em se tratando de um pretenso
– o filme nunca o afirma nem nega – “terrorista”), buscando desesperadamente
manter-se vivo. E este sim é o filme que Skolimowski está fazendo
desde o começo, e que se radicalizará nesta opção a partir de
uma virada (literal e física) da narrativa: o enfrentamento entre
um homem e a sua morte. Skolimowski se dedica ao exercício de
capturar aquele lugar onde a animalidade toma conta (e nisso há
algumas cenas absolutamente antológicas, principalmente a que
envolve leite materno – convém não falar mais, para quem por acaso
não tenha visto).
A
partir do momento em que este dado se torna o único em jogo (para
personagem e platéia), ao se limpar o filme de tudo que é externo
a ele, o que pode ficar finalmente claro é como a principal força
de Essential Killing advém da maneira como coloca seus
vetores de movimento em jogo, desde o princípio, numa linha incrivelmente
firme e reta: o filme todo é como um animal que, acuado numa caverna,
só pode daí por diante correr e correr adiante, rumo ao desfecho
que, filosoficamente inclusive, é o único possível. Nesse sentido,
deixando de lado as semelhanças (e, no caso, diferenças) de estilo,
talvez o filme recente que mais devesse vir a nossa lembrança
não fosse nenhum que trata da “guerra ao terror” (embora haja
sim um paralelo possível com o filme de Kathryn Bigelow, justamente),
mas sim A Morte do Senhor Lazarescu, de Cristi Puiu. Em
ambos, o que vemos é o radical progresso, em linha reta sempre,
da transformação de um corpo ocupado por uma vida que o ultrapassa
como simples depositório de funções biológicas (há um ambiente
no seu entorno, há ainda uma subjetividade que reage ao mundo
com um olhar), até o momento em que ele se conforma ao seu estatuto
mais básico: um amontoado de carne, ossos e órgãos que tenta manter-se
vivo contra todas as probabilidades impostas pelo ambiente ao
seu redor.
Claro
que em Essential Killing,
filme mais essencial, justamente, várias das características deste
trajeto presentes em Lazarescu são aumentadas: o personagem
de Vincent Gallo, por exemplo, não emite uma só palavra em toda
a duração do filme, está fadado desde o começo à impossibilidade
de comunicação através da língua (seja pela resistência, seja
pela terra estrangeira) – na verdade, o filme é mais exato ainda:
ele até fala uma frase apenas, no exato começo, quando justamente
se coloca irremediavelmente frente à imagem possível – e provável
– de sua própria morte, frente ao corpo inerte de seu único “igual”.
Sua subjetividade se encarna no filme, para além dos seus olhos
(numa interpretação estarrecedora), pelos flashes de lembranças
que surgem em momentos de sono ou de delírio (e que esclarecem,
de novo, muito pouco além do essencial: uma mulher, um bebê, uma
pregação islâmica). Mas não é só o contato com o que há de humano
à sua volta que se impõe como impossível: no trajeto do personagem
não há espaço para projetos ou planos, como mal ou bem havia em
Lazarescu (embora totalmente fadado ao fracasso). Esta
talvez seja a maior angústia que transparece da tela ao espectador
de Essential Killing, grudado a este personagem: não há
tempo ou condição para que nenhuma racionalidade se monte, para
que possamos olhar dois passos adiante que seja. Só há um pensamento
em mente: sobreviver mais um minuto, mais um minuto, mais um minuto.
Claro que toda a descrição acima de nada valeria
para além de belas palavras no papel sem um cineasta como Skolimowski
por trás da câmera de Essential Killing. Porque o que realmente
nos comove (no sentido amplo do termo) nesta trajetória que o
filme propõe não é apenas ou exatamente ela em si (como nunca
é no cinema), mas sim a maneira como o filme consegue articulá-la
como linguagem audiovisual. Porque a verdade é que Essential
Killing só atinge a potência que consegue porque tem por detrás
de sua encenação, de sua filmagem, de sua montagem, de seu trabalho
de som (estupendo, seja na ruidagem/mixagem, seja no uso nada
banal da música), um cineasta que pode, nesse momento de sua carreira,
se dedicar ao que há de “essencial” (como de alguma maneira já
era o caso em Quatro Noites
Com Anna) porque atingiu tamanha depuração
do seu estilo, do seu artesanato. Talvez, de fato, seja Skolimowski
o grande personagem “animalizado” de Essential Killing:
ele não é mais do que um autêntico “bicho de cinema”. Essencial
assim.
Setembro de 2010
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