in loco - cobertura do 45o festival de brasília
Esse Amor Que Nos Consome, de Allan Ribeiro
por Fábio Andrade
O entusiasmo como resistência
Entre os títulos em competição neste
Festival de Brasília, tivemos um belíssimo filme
(Doméstica, de Gabriel Mascaro), algumas fortes
demonstrações de assombro (Eles Voltam,
Elena e, em outro grau, Noites de Reis e A
Memória que me Contam) e momentos interessantes em
praticamente tudo que se viu. Mas Esse Amor Que Nos Consome,
filme de Allan Ribeiro quase tão forte quanto o de Gabriel
Mascaro, é marcado por uma característica única
neste festival - e cada vez mais rara no cinema brasileiro: é
um filme alegre. Essa alegria – que vemos também
em um filme como O Homem Que Não Dormia, de Edgard
Navarro e mais alguns raros títulos nos últimos
anos –, porém, não é paliativo débil
que justifica a imobilidade, como em Era Uma Vez Eu, Verônica.
Ao contrário, o longa de estréia de Allan Ribeiro
é atravessado por questões concretas que se impõem
na política cotidiana em uma cidade como o Rio de Janeiro.
A alegria, aqui, é menos uma idéia abstrata e mais
um entusiasmo, uma forma de interferir ativa e frontalmente na
cidade e na vida cotidiana.
A especulação imobiliária se tornou uma questão
chave para o cinema brasileiro contemporâneo, em especial
o pernambucano. Um Lugar ao Sol, Recife Frio, Menino Aranha,
Praça Walt Disney, Balança Mas Não Cai, Caixa
de Pandora, Avenida Brasília Formosa, HU ... são
todos filmes recentes que versam sobre a estruturação
do espaço urbano dentro de uma perspectiva político-arquitetônica.
Ainda assim, esse incômodo raramente parecia chegar ao X
da questão. Por mais que as sombras das torres feias projetadas
sobre a praia do Recife ou os prédios esvaziados em Belo
Horizonte ou na Ilha do Governador fizessem uma radiografia de
problemas concretos, a maior parte desses filmes se dividia em
três espécies de abstração: a não-compactuação
pela sátira ou pelo panfleto (traços especialmente
comuns nos filmes pernambucanos), o isolamento do espaço
como conceito (HU) ou a projeção fantasmagórica
desses vazios em decadência (a vertente mineira). Mesmo
a interferência direta deste novo projeto urbano no sol
da praia de Boa Viagem, por exemplo, se dava pela sombra, pela
projeção, pelo que não é o prédio.
Um cinema de consequências, nunca de causas. Em todos os
casos, o espaço se tornava um dado frio, simbólico
e externo à vida cotidiana a não ser como reflexo,
como sintoma.
Esse Amor Que Nos Consome parte de uma política
muito mais ativa e concreta: é preciso ocupar os espaços,
transformar essa cidade que definha em algo vivo, útil,
pulsante. A companhia de dança de Rubens Barbot, e seu
diretor Gatto Larsen (personagens de Ensaio de Cinema,
belo curta feito pelo diretor), se muda para um casarão
abandonado no Centro do Rio. Eles têm permissão para
ficar ali até que o imóvel seja vendido, pelo preço
de um milhão de reais. Ao longo do filme, compradores visitam
a casa diversas vezes. O que mais se anima com o espaço
pretende convertê-lo em sede de um partido político.
Mas Barbot e sua companhia tem uma força extra: os deuses
estão ao seu lado. Logo no primeiro plano, os búzios
dizem a Barbot que fique tranquilo, pois ninguém comprará
o sobrado. Em todas as visitas, um Exú diligente se coloca
à porta, como ferramenta que, a cada tragada do charuto,
garante que o Justo será feito.
O projeto de Esse Amor Que Nos Consome só é
defendido pelos deuses por ser um projeto que deseja a arte, deseja
o Belo (e lembremos que o Belo e o Justo são sinônimos
frequentes nas traduções da filosofia grega, cujos
deuses se aparentam com os orixás) e que pensa a cidade
como um lugar produtivo, mesmo quando lida com um passado aparentemente
definhante. Pois se o Rio é uma cidade em transformação,
esse “novo Rio” só faz sentido se não
excluir os espíritos impressos nessas paredes, os orixás
que habitam esses espaços, os bêbados e as aposentadas
que matam tempo nas praças, as imposições
cotidianas e a possibilidade de subvertê-las. A cidade é
tudo isso, e o projeto (e não a utopia) do filme embarca
todas essas dimensões.
Essa intervenção, porém, não é somente discursiva, narrativa. Allan Ribeiro constrói a relação dos corpos com o espaço de maneira bastante inteligente: dentro do sobrado, os plongées e os planos frontais chapam a composição, como se aquele grupo de resistentes estivesse pressionado em um canto decadente da cidade. É uma estratégia simples, mas que causa tanto efeito quanto o som das escavadeiras que age sobre os limites do quadro em No Quarto da Vanda, de Pedro Costa. Por outro lado, quando vai para o exterior, a relação é diferente: os corpos se expandem, tomando a cidade de maneira prática nas várias caminhadas pelas quais Barbot e Gatto Larsen costuram o tecido da cidade, ou poética, nos números de dança que se espalham pela paisagem.
O espírito dessa ocupação é resumido na mais bela sequência de ensaio do filme, em que os dançarinos da companhia usam agulhas e linhas invisíveis para tecer uma colcha de retalhos já pronta, reagindo aos braços rijos que se movem feito os ponteiros de um relógio. No mais recente editorial da Cinética, falava que “ao cinema brasileiro de hoje cabe a lembrança de que a arte talvez seja o lugar mais propício para a proposição de um outro mundo e a manifestação do não-contentamento com o mundo que já existe”. As agulhas e linhas que não existem – ou seja, a arte – estão ali apenas reafirmando o gesto simbólico da costura, reconectando as diferentes roupas que já coabitam em um mesmo mapa multicolorido, plural e concreto. Esse Amor que nos Consome é a reafirmação dos retalhos de uma mesma cidade-tecido que os projetos de futuro se esforçam por separar.
Setembro de 2012
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