ensaios Da
palavra à imagem por Fabio Diaz Camarneiro
O cinema de Julio Bressane pode ser considerado notável
por criar diálogos com a pintura (Filme de Amor) e a música popular (O
Mandarim) ou a filosofia (Dias de Nietzsche em Turim) e a história
(Cleópatra). Muitos parecem entender essa erudição como algo excessivo
em uma manifestação “popular” como o cinema. Na verdade, Bressane é livre de
amarras (e nisso ele lembra Godard): um curto circuito entre alta e baixa cultura
(se é que essas definições ainda fazem sentido), um manancial de experiências
estéticas que devem ser analisadas caso a caso.
De
fato, é à literatura que o diretor sempre retorna. Entre suas obsessões, o modernismo
de Oswald de Andrade, a poesia de Haroldo de Campos, o texto barroco do Padre
Vieira e, em A Erva do Rato, Machado de Assis. O filme não é adaptação
do autor no sentido estrito da palavra (como também não era em Brás Cubas).
A Erva do Rato tenta criar um diálogo entre imagem e palavra, pensado como
um espelho entre esses dois pólos, o visual e o verbal. Logo
no início, na casa que serve de cenário para praticamente todo o filme, a recorrência
de objetos relacionados à escrita: cadernos empilhados, vários lápis devidamente
apontados. O personagem masculino (Selton Mello) dita textos que a personagem
feminina (Alessandra Negrini) anota de maneira mecânica. Sua escrita é tomada
por um transe. Fala-se de várias coisas nesses textos: de pajés indígenas, do
gigante adormecido no Rio de Janeiro, de um corpo sem esqueleto. Nesse momento
do filme, as personagens pouco se movimentam: tudo é estático como a palavra na
folha de papel. As referências remetem à escrita: a personagem de Alessandra Negrini
lembra a figura de seu pai, um escritor que não publicava e “escrevia por prazer”.
Os gestos dos atores parecem aprisionados pela rememoração da palavra (um movimento
interno e pouco cinematográfico em si mesmo). Mais tarde,
com o surgimento de uma câmera fotográfica, o filme altera sua relação com os
personagens: eles começam a se movimentar mais dentro do quadro, e também a descobrir
outros espaços da casa, como um improvisado estúdio de revelação. Os apetrechos
de escrita são substituídos pela câmera e pelas fotos. A relação entre os personagens
deixa de ser meramente interna e passa a ser física, erótica (ainda que limitada
ao fetiche das imagens capturadas). Se no começo do filme era o verbo, agora surge
a fotografia. Nessa passagem da palavra para a imagem, surge um ruído: o rato.
Uma primeira alusão a ele aparece quando se fala do veneno da erva do rato e seu
antídoto. A presença do animal vai conturbar os personagens: a mulher acaba fascinada,
enfeitiçada; o homem experimenta o ciúme e a obsessão. O rato de certa forma representa
o desejo que, quando ainda é interno (palavra), pode ser perigoso, mas que corre
o risco de perder o controle ao se tornar matéria (imagem). Essa perda de controle,
a loucura que nasce dessa tradução da palavra em gesto, do desejo em ação, da
literatura em cinema – esses parecem ser os temas de A Erva do Rato. Essas
“traduções” são uma das preocupações centrais de Bressane. Em seu cinema, a erudição
está distante do pedantismo. Ao invés de tentar conferir algo pretensamente “artístico”
ao filme, o trabalho de Bressane com suas referências estéticas é sempre marcado
pelo perigo, pela novidade, pela descoberta, pela excitação: note-se que a personagem
de Alessandra Negrini fica claramente hipnotizada por alguns dos relatos lidos
por Selton Mello. As citações no cinema de Bressane buscam essa qualidade quase
mística, esse convite para que sejam “compartilhadas” (vividas conjuntamente,
na experiência da sala de cinema) ao invés de apenas “compreendidas” (estabelecerem
um discurso pedante ou autorreferente). Bressane não impõe discursos prontos,
mas convida ao encantamento pela obra de arte, a sua a alheia. Para conseguir
esse encantamento (e a idéia do transe é importante para A Erva do Rato),
Bressane é rigoroso como Rimbaud, que pregava o “tornar-se vidente através de
um longo e sistemático desregramento
de todos os sentidos”. Esse “desregramento”, no cinema do diretor, equivale
à redescoberta ou, na expressão de Haroldo de Campos, à transcriação: imagens
que traduzem palavras, quadros que traduzem poemas, encenações que traduzem quadros.
Percebe-se o rigor de A Erva do Rato nas composições da câmera quase sempre
estática, no trabalho milimétrico dos atores (especialmente Alessandra Negrini),
no uso expressivo dos cenários e da fotografia. Dos textos citados ao enxoval
do chá, nada aqui é gratuito. Ao traduzir desejo em ação,
Bressane também dialoga com a psicanálise. Esse desejo que corrói as relações
entre os homens tem paralelo no rato que corrói as fotografias do corpo desejado.
As ratoeiras que se espalham pela casa, as armadilhas dentro da própria mente
do personagem. A partir de uma encenação de um rigor muito realista, Bressane
encontra indícios de loucura, de transe. As relações entre os personagens permanecem
secretas, ocultas, mesmo que convivendo com toda a obviedade e a aparente lógica
das aparências (e é aí que o diálogo com a literatura de Machado se aprofunda).
Se a literatura pode sugerir a imagem de um corpo sem esqueleto, o cinema cria
um esqueleto sem corpo. A palavra e a imagem não se opõem: elas se interpenetram,
como partes separadas de um mesmo corpo. Os objetos do filme e os próprios atores
são filmados de maneira muito sensorial: as paredes descascadas da casa parecem
remeter à pele humana, e a sensação de claustrofobia, criada também pelo tempo
histórico indefinido, cresce junto com a carga erótica de A Erva do Rato.
Bressane filma o corpo nu de Alessandra Negrini com lentidão, sem alarde, como
se filmasse uma geografia (o gigante deitado que formaria o desenho da cidade
do Rio de Janeiro). A câmera fotográfica é metáfora do cinema,
incessantemente criando imagens de desejo e obsessão. Se o tempo todo Bressane
estabelece relações entre diversas artes, sua sensibilidade é acima de tudo cinematográfica.
O rato, ruído entre imagem e palavra, é ele também o próprio cinema. É ele o desejo
que vai animar aquelas fotos e contaminá-las com a experiência do tempo e o medo
da morte (o veneno, a própria erva do rato). Em A Erva do Rato, Machado
de Assis não é inspiração, mas interlocutor; o cinema não é ponto de chegada,
mas porto de partida. A beleza desse filme vem do delicado equilíbrio entre suas
forças: a sabedoria de um literato experiente e a paixão de um cineasta que, aos
62 anos, ainda esbanja juventude. Setembro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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