ensaios
Personagens em questão Diferentes
registros da relativização dos erros por Cléber
Eduardo As
noções mais estreitas e mais abstratas de moral estão sempre em jogo no cinema.
Não apenas em jogo nos filmes, em suas tensões internas, mas no jogo dos próprios
filmes. A moral dos personagens e a moral da narração, a nossa própria moral fora
dos filmes e nossa moral modeladora de apreensões e juízos. Diante de personagens
centrais, ou importantes como coadjuvantes, toda sorte de valores e julgamentos
são colocados em ação em nossa apreensão das situações, ora endereçando nossos
juízos às ações mostradas, ora à maneira de se mostrar essas ações e se colocar
em relação a elas. Toda a questão sempre é de como proceder, de como as obras
contém suas situações.
Gomorra, do italiano
Matteo Garrone; e O Silêncio de Lorna, do belga Jean Pierre Dardenne, dois
filmes com fortes índices de realidade em suas dramaturgias. Um Homem Bom,
produção inglesa do brasileiro Vicente Amorim; e A Troca, de Clint Eastwood,
dois filmes situados em sociedades e momentos históricos asfixiantes em seu fedor
(menos ou mais perfumado). Esses quatro filmes lançados entre o fim de 2008 e
começo de 2009 no circuito brasileiro aproximam-se de personagens, que, transitando
entre a boa e a má ação, saem dos filmes com a responsabilidade suspensa ou assumida,
redimidos, em quaisquer casos, pela organização ou pela interrupção das imagens.
Em Gomorra, de Matteo Garrone, temos dois casos.
Um é o de um senhor de aparência distinta e ar confiável, funcionário de organização
criminosa, que dá dinheiro sujo a famílias de presos da facção. O outro caso é
o do garoto, entregador de vendinha, que entra para o tráfico embora tenha formação
rigorosa. Os dois personagens, o novo e o velho, o iniciante e o experiente, têm
percursos distintos, mas cada um age para salvar seu pescoço, sem nenhum princípio
para além da sobrevivência, apesar de suas aparências de boa índole, de suas posturas
diferenciadas e silenciosas em um lugar onde a regra é o grito. A aparente falta
de espaço para fazer escolhas e a necessidade de salvar a cabeça estimulam uma
relativização de suas ações e uma compreensão de suas razões. Sem julgar a pertinência
dessas decisões, Gomorra apresenta o beco sem saída, diante do qual o filme
só pode observar quase com resignação. Sua imagem realista valoriza essa inevitabilidade
das situações. Diferente
de Gomorra, em Um Homem Bom, o protagonista não entra em um grupo
porque assim deseja. Professor e escritor na Alemanha dos nazistas, ele torna-se
símbolo do nazismo, meio sem querer, meio sem resistir, sem se sentir um nazista,
mas sem romper com essa ligação. É frágil o empenho do filme em nos convencer
sobre a parcela de inocência e cegueira desse personagem diante de sua própria
conexão com a máquina de perseguição e extermínio do nazismo. Esse empenho procura
relativizar as atitudes do professor, porque, em última instância, nos induz a
concluir, como o título, que ele tem bom caráter, mas as circunstâncias (sempre
elas) o desvirtuaram. Na sede de absolvição, banaliza a noção de responsabilidade.
A atmosfera de jornada de aprendizado, com as opções erradas ou com a falta de
opção do personagem fica entre limitar aquela questão a um homem ou expandi-la
como uma questão universal sobre escolhas em certos contextos. Estamos diante
de um julgamento ou simplesmente de uma absolvição antecipada? Responsabilidade.
Uma noção essa que, quando ferida por gente de valor, pode gerar a culpa, esse
sentimento que, embora ande fora de moda, é variação da auto-crítica. Podemos
lidar melhor com isso em O Silêncio de Lorna, quando a protagonista albanesa,
após a morte de um dependende de drogas com quem está casada por interesses burocráticos,
mergulha em um processo de autoflagelação psicológica e emocional. Ela não age,
se despede e nos abandona. Nem é abandonada. Ela enfrenta o que semeou antes.
Podemos concordar que esse enfrentamento, pessoal e não-jurídico, é a parte excessiva
e diluidora do filme, mas também é a evidência de uma tomada de partido do filme
em relação a seus personagens, como é de costume nos filmes de Dardenne. Não se
quer condenar a protagonista, não se deseja levá-la a um sofrimento como pagamento
por seu deslize, mas dar tempo no filme para, após a ação contra os próprios valores,
ela lidar com os efeitos das ações no próprio filme, sem desaparecer dele antes
dos efeitos (como em Gomorra, em Um Homem Bom e em parte de A
Troca). A suspensão da responsabilidade é inseminada
pela ação em um espaço de liberdade rarefeita, com uma margem estreita de possibilidade
de escolha, com uma quase impossibilidade de afirmação como sujeito. Pesa sobre
essas atitudes e sobre os percursos a inevitabilidade de quem toma decisões apenas
para tirar a cabeça da ponta do cano. Toda a questão em nossos juízos é levar
menos ou mais em conta o entorno do crime: quando o menino entrega a mãe do amigo
aos criminosos, quando o professor deixa de salvar a vida do amigo judeu no nazismo,
quando a emigrante clandestina deixa de evitar a queda de seu falso marido, quando
as crianças simulam ou mentem em meio as ações de um serial killer e da procura
da mãe por seu filho. Se o policial corrupto pagará por seus
procedimentos dentro da lei em A Troca, se o serial killer termina
na forca, também pagando por seus crimes, é mais complexa a situação dos três
meninos no filme de Eastwood, inclusive porque eles confessam suas ações a policiais,
mas não serão punidos na imagem por nenhuma instância. Seus acertos, quando acontecem,
é com eles mesmos; ou com o espectador – mas na hora da despedida, não como um
processo de sobreviver a si mesmo. Um finge ser
quem não é. Outro é co-autor de crimes contra crianças, comandado pelo serial
killer. Um terceiro passa anos escondido depois de sobreviver a esses crimes.
Todos fogem da responsabilidade e, com isso, potencializam situações dramáticas.
Mentem, omitem, simulam. Serão em alguma medida perdoados, seja porque as máscaras
caem, seja porque se arrependem, mas o erro é assumido antes de o filme acabar.
Assumir basta para se limpar suas atitudes? Embora
evidencie sua organização dramatúrgica, o filme não coloca as ações dos personagens
para posterior reflexão, como se dela pudéssemos extrair algum aprendizado ou
alguma discussão moral (como no caso de Um Homem Bom), mas apenas as expõe
como impulsos, como ações impossíveis de serem evitadas, de serem explicadas por
seus contextos e de serem catalogadas em algum manual de comportamento.
Janeiro de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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