Era Uma Vez..., de Breno Silveira (Brasil, 2008)
por Eduardo Valente

A derrota da ficção

Não precisamos ir além do título do novo filme de Breno Silveira (em especial com as reticências ali expostas) para subentender que ele quer se afirmar como uma fábula/conto de fadas tipicamente carioca (ou pelo menos quer se vender como tal – uma expressão adequada tratando-se de autêntico “produto cinematográfico”, sem nenhum pré-conceito sobre isso, apenas uma simples constatação). E durante sua doce primeira meia hora, ele parece atingir este objetivo de maneira bastante bem sucedida, mesmo marcado por vários clichês, tanto de linguagem (por exemplo, a grua que sobe em plongé radical sobre o corpo do irmão recém-assassinado) quanto de construção de personagens (a cena em que a “princesa loira” é ameaçada pelas “hordas de pivetes negros” até ser salva por seu príncipe é especialmente marcante).

Mas, convenhamos, fábulas são baseadas em clichês, e por isso faz pouco sentido apontá-los como defeitos. Mais sentido faz olhar a forma como Silveira exercita com sucesso neste início uma doçura pelos seus personagens e pela sua cidade ao mesmo tempo em que retrata alguns aspectos duros da realidade carioca (brasileira), como a cena de espancamento policial ou as imagens na visita de Dé ao irmão na cadeia. Estas cenas terminam nos apresentando uma relação entre morro e asfalto que, se enquanto discurso não possui qualquer fato novo relevante, enquanto sentimento (e é disso que parece se tratar) empresta verdade ao ato de fabular sobre a realidade carioca, especialmente na forma de olhar um jovem casal em seus primeiros e vacilantes passos (nos lembrando de um dos melhores momentos de Dois Filhos de Francisco).

Nessa primeira parte, chama especialmente a atenção o uso da paisagem carioca a partir de uma dimensão de beleza opressora. A força onipresente desta paisagem (reforçada pela maneira “conspiração” de fotometrar a luz/marcar as cores sempre nos seus tons mais plásticos), principalmente quando vista do alto do morro do Cantagalo, com sua visão das praias cariocas, parece oferecer a promessa de uma vivência divina que, a partir do momento que somos apresentados à narrativa pela morte de uma criança e da separação entre irmãos, já possui tons trágicos desde o começo. Esta forte sensação de determinismo que a paisagem impõe (fonte de boa parte do discurso bastante tolo e corrente sobre a “cidade maravilhosa”) empresta à sua narrativa, naquele começo do filme, uma dimensão mítica incontornável na imagem. Com isso, pelo simples fato deles circularem por aqueles espaços naturais (e humanos, no caso da favela), a história de Dé e Nina já tem algo de anti-natural (o que é diferente de artificial) que se aplica muito bem ao formato da fábula.

No entanto, já está plantada ali naquela doce (e triste) primeira meia hora a semente da “doença sociológica” da qual Era Uma Vez... sofre de maneira intrínseca. Nesse sentido, o encontro do casal na praia, em que Nina está lendo “A Cidade Partida”, de Zuenir Ventura, é o indício mortal de que esta fábula não acredita em si mesmo como tal, e que se há um gênero literário sob o qual esta história se passa, este é o da literatura de “sociologia-zona-sul”. E é claro que, segundo os ditames desta, Dé e Nina não serão nunca apenas dois adolescentes se encontrando, nem muito menos figuras trágicas ou míticas de um amor fabular, mas sim “casos exemplares”, “estudos de caso”. E é aí que Era Uma Vez... começa a despencar.

Sim, porque menos um problema em si como motivação, o que este pendor sociológico causa de pior é que, ao se render a ele, Breno Silveira larga de lado tudo que o faz melhor como cineasta. Ao invés de usar a chave da emoção ou do hiper-sentimento, ele resolve se entregar à exposição narrativa sob a égide da exemplificação e do diagnóstico. E aí o filme vai adiante aos tropeços, numa seqüência bastante constrangedora de cenas que não se justificam em momento algum como momentos emocionais de seus personagens, e se mostram pouco mais do que uma soma de diálogos sem verdade e de personagens que deixam a dimensão do clichê mítico (o pai durão) para entrarem no clichê sociológico (o pai de classe alta carioca, honesto e de bom coração, mas com ressalvas sobre a vida na favela). E aí, quando toda e qualquer ação dos personagens vai se tornando incompreensível, não estamos mais no campo mítico da fábula, mas sim na desindividualização do discurso sociológico.

É sintomático que, no momento em que o filme comece a perder o fio da meada, volte à cena o personagem de Carlão, o irmão que é interpretado com força desigual a dos outros intérpretes por Rocco Pitanga. Carlão é o único personagem que desafia o discurso pré-montado, bem diferente do “herói incorruptível” que é Dé (algo demarcado nos menores detalhes, como na sua recusa de fumar um baseado numa festa). Intrinsecamente bom, mas tornado duro e capaz de ações reprováveis (seja o envolvimento com o crime, seja a manipulação demagógica da sua comunidade), Carlão é desenhado segundo regras muito diferentes das da fábula que Era Uma Vez... gostaria de ser: trajeto psicológico traçado, ações motivadas e justificadas, construção de ator realista. Carlão, em suma, parece um ótimo personagem – só que de outro filme.

É justamente do choque entre Carlão e o resto da narrativa (em especial Dé e Nina) que o filme não se recupera mais. Porque uma vez em cena, seja pela presença de tela de Pitanga, seja pela construção do personagem, a história de amor de Dé e Nina começa a nos desinteressar progressivamente. Seus passos não mais se completam, sua narrativa não mais nos emociona – como de resto qualquer resquício de emoção é retirado do filme. O filme a que assistimos com interesse por quarenta minutos parece ser traído e jogado fora em troca de um outro ao qual nunca se entrega totalmente, num processo de esquizofrenia total, que parece se encarnar na tela nos mínimos detalhes de realização. Sem saber em que se interessar, Silveira parece inclusive perder a capacidade de decupar as mais simples cenas, que resultam truncadas – até a conclusão, incrivelmente mal resolvida em todos os sentidos (cortes, câmera, sentido). Como se fosse pouco, ao final desta confusão mental em que resulta o filme, Silveira ainda adiciona uma bizarra seqüência documental no começo dos créditos finais, transformando Dé no seu ator Thiago Martins, numa tentativa de redimir o peso trágico que havia jogado sobre seus jovens amantes/sua cidade.

Mais do que uma simples fuga de péssimo gosto, este momento se impõe como aquele em que Era Uma Vez... revela sua verdadeira dimensão trágica: a de um filme que renega a seus personagens e ao seu espaço principal (a favela) sequer a possibilidade da ficção. Se todo o trajeto da narrativa já indicava isso, na sua lenta passagem da fábula para o filme sociológico-realista, este final em documentário mostra que o filme acredita que não existe possibilidade de falar do Rio, e principalmente das classes sociais mais baixas, em outro registro que não o da realidade. É um movimento que nega a seus objetos sua mais simples dimensão humana - afinal o que nos diferencia dos outros animais é justamente a possibilidade de enxergar o mundo por outra lente que não a da sobrevivência pura e simples. Sonhar e (re)contar a vida, necessidades intrinsecamente humanas. Ao negar a Dé que termine como personagem, precisando transfigurá-lo em ator, Breno Silveira afirma que é impossível fabular sobre este mundo e que, por conseguinte, é impossível ser humano na favela – um triste diagnóstico, ainda mais quando imposto de cima para baixo.

Assim, Breno Silveira se une a Fernando Meirelles (nas devidas proporções de sucesso de realização entre os filmes deles) como mais um artesão do cinema que aparentemente não pode se dedicar simplesmente àquilo em que mais é mais talentoso (o narrar cinematográfico, a fábula) porque se sente em débito constante com uma realidade que o obriga a sempre “dar conta do mundo” – mesmo que para fazê-lo precise jogar fora o seu talento a serviço das mais grosseiras simplificações sócio-filosóficas. Talvez esta seja a maior tragédia exposta por Era Uma Vez..., uma bem típica do cinema brasileiro.

Agosto de 2008

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