Era Uma Vez..., de Breno Silveira
(Brasil, 2008) por Leonardo Mecchi
O
outro Brasil de Breno Silveira Sabemos que Era Uma
Vez..., novo longa de Breno Silveira, foi concebido antes de Dois Filhos
de Francisco, filme que acabou sendo uma das estréias mais bem sucedidas do
cinema brasileiro. Embora seja um exercício inútil tentar imaginar como seria
o filme se tivesse sido realizado na época em que foi idealizado, o fato é que,
da maneira como acabou sendo apresentado ao público, Era Uma Vez... representa
uma mudança radical na visão do diretor sobre o país. Se ainda temos aqui a fotografia
estetizante a mostrar nossas belezas naturais e a música como artifício fundamental
para conduzir a emoção do espectador, Era Uma Vez... aponta para uma percepção
muito mais negativa do Brasil. Se em Dois Filhos de Francisco
temos a história do self-made man, percurso de superação e sucesso raro
no cinema brasileiro (sintomaticamente contemporâneo à ascensão de Lula à presidência),
em Era Uma Vez... esse percurso é abortado, inviabilizado por dificuldades
insuperáveis para seu protagonista, indicando uma fissura entre morro e asfalto
mais profunda que a existente entre o Brasil rural e urbano. Em Dois Filhos
de Francisco, o trabalho era mostrado como algo dignificante, profissão de
fé no esforço pessoal como forma única de se superar desigualdades históricas.
Ainda
há resquícios disso neste mais recente filme – como quando o porteiro do prédio
de Nina diz ao pai para não se preocupar pois a
menina está namorando “um rapaz trabalhador”, ou quando o próprio Dé, com orgulho,
confronta o ex-namorado playboy de Nina dizendo “não sou dono do quiosque, eu
trabalho” –, mas o trabalho é mostrado também como um fator de cisão, que diferencia
os membros de classes sociais distintas. Não à toa o “amigo” surfista de Dé, ao
sentir-se ameaçado por uma possível mistura de classes diante do beijo entre o
protagonista e Nina, avisa: “Vocês não sabiam? Ele trabalha no quiosque”. Se
o sacrifício de Francisco em vender parte de seus bens por um violão e uma sanfona
ou de trocar todo seu salário por fichas telefônicas é recompensado ao final com
o sucesso dos filhos, o mesmo não ocorre com Dé. Não apenas o trabalho se mostra
insuficiente para superar as barreiras que o separam de sua amada, como nem mesmo
o dinheiro – seja ele obtido legalmente através de um empréstimo (em um merchandising
descarado de um dos patrocinadores) ou ilegalmente (o dinheiro do irmão-traficante)
– parece capaz de ajudá-lo. E não deixa de ser irônico, na era dos orçamentos
cada vez mais inflacionados e bilheterias cada vez mais minguadas, que a participação
de um dos maiores patrocinadores do filme se mostre tão inócua e insuficiente. Em
um filme tão calcado em clichês e dicotomias simplistas (o que torna ainda mais
incômoda a montagem precária, de cortes equivocados e seqüências desconexas),
é interessante analisar também os momentos em que ele se diferencia da vasta produção
recente que retrata esse universo das favelas cariocas. Se as cenas de ação e
violência na favela são os grandes chamarizes de filmes como Cidade de Deus
e Tropa de Elite, chama a atenção o fato de Breno Silveira deliberadamente
não mostrar a invasão do morro pelo grupo de Carlão, irmão mais velho de Dé. Uma
enorme elipse e um único tiro a queima roupa resolvem a situação. Incapacidade
do diretor em filmar uma cena de ação ou recusa a dar imagem à violência? A
cena final, a princípio, derrubaria a segunda hipótese e confirmaria a primeira,
mas também aqui há uma pequena diferença entre Era Uma Vez... e seus congêneres.
Ao invés de buscar diagnósticos ou apontar culpados, a fúria de Nina se volta
contra todos – sociedade, polícia, família, imprensa, espectador – e, conseqüentemente,
contra ninguém: um grito estéril e desesperado, incapaz de alterar a realidade
contra a qual se volta, e que por fim é calado também. Ao final, o mesmo travelling
que, no início, levava da favela ao mar, leva agora do asfalto ao mesmo mar, impassível
à pobreza da primeira e à tragédia da segunda. Tudo permanecerá como está. Nem
mesmo a fuga, recurso recorrente do cinema brasileiro contemporâneo, é mais possível. Por
fim, assim como ocorre com o retorno de Zezé de Camargo e Luciano à casa de infância
ao final de Dois Filhos de Francisco ou com as fotos e trechos de reportagens
reais que encerram Cidade de Deus, o epílogo documental de Era Uma Vez...
busca compensar de certo modo o retrato estetizado do Rio de Janeiro com uma
aproximação mais direta com o “real”, como a dizer ao espectador que aquela história,
embora não seja baseada em fatos reais, poderia sim ter acontecido (se é que não
ocorre anonimamente). Ao mesmo tempo, empenha-se em deixar aberta uma fresta de
esperança em contraponto ao final trágico do filme – uma forma de concessão de
Breno Silveira ao público que, diante da crença de seu filme anterior em um outro
Brasil possível, respondeu com a maior bilheteria do cinema brasileiro dos últimos
30 anos.
Agosto de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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