Era Uma Vez Eu, Verônica,
de Marcelo Gomes (Brasil, 2012)
por Fábio Andrade
Era
uma vez
Se O Céu de Suely, de Karim Aïnouz,
supostamente inaugurava no cinema brasileiro uma cadeia de produção
de feelgood pronta a alimentar uma sensibilidade contemporânea
sedenta por sedação, Era Uma Vez Eu, Verônica
é o paroxismo desse projeto. Apesar de todos os seus limites,
o filme de Karim Aïnouz era ainda marcado por duas coisas
bastante flagrantes: a existência de cenas que constituíam
uma história reconhecível (diria que até
de maneira excessivamente didática) e a presença
magnética de Hermila Guedes. É sintomático
que, tão poucos anos depois, o desejo de contar uma história
não seja mais que um título e a atriz que fez Suely
volte como Verônica. Por mais que seu rosto continue servindo
bem às curvas da objetiva, toda sua potência se diluiu
nessa sensibilidade onanista que só quer se querer bem,
negando passado ou futuro para poder passar o presente em falas
moles que repete para si mesma, e que a impedem de realmente dizer
alguma coisa.
E, assim como Verônica é uma personagem sem vida,
Verônica é um filme sem filme; sobraram
apenas momentos com cara “de cinema” (de arte), com
sentidos plenamente decodificáveis capazes de camuflar
uma história mal contada nas brechas da montagem, evitando
interpelar o prazer de sua própria apatia. Como todo “era
uma vez...” pressupõe um encadeamento minimamente
lógico dos acontecimentos – mesmo que seja por uma
chave fantástica, fabular – é surpreendente
constatar que não há nada em Verônica
que seja fundamento de uma narrativa possível. Qualquer
esboço de arco dramático demonstrável –
ou seja, decupável em ações no espaço
e no tempo – é desmontado por um sistema de elipses
que, de tanto se esforçar para esconder tudo aquilo que
não se consegue resolver, só faz chamar atenção
para a gratuidade das causas e consequências que levam a
protagonista de um ponto a outro. Essa gratuidade, porém,
não é sistemática para se configurar como
o registro do filme. Ao contrário, sua contraposição
a um desenrolar supostamente naturalista faz com que o conto de
fadas também expresso no título seja apenas um agraciamento
do diretor para com uma personagem que, ao contrário do
porteiro em A Última Gargalhada, não impõe
tratamento de exceção. Era Uma Vez Eu, Verônica
não tem qualquer estrutura, mas hoje isso já não
parece mais ser um defeito; basta ter uma aparência de estrutura
(uma orgia dublada no começo e no fim, um problema para
enfrentar - mas, em época tão satisfeita com sua
impotência, melhor que seja um problema sem solução),
e deixemos que as elipses e o voice over se encarreguem
de fingir que tudo isso é um arco dramático.
Por muito tempo, a crítica que fazia diferença se
ocupou em apontar a defasagem dos cineastas brasileiros ao que
era feito de mais interessante no resto do mundo. Por acaso ou
consequência, os cineastas fizeram a lição
de casa e esta mesma crítica passou a lidar com outro problema:
o excesso de cinefilia no cinema brasileiro. Era Uma Vez,
Verônica tem os enquadramentos de hospital, a médica
que quer ser cantora e até a lambaeróbica de Síndromes
e um Século. Tem também o apartamento cheio
de infiltrações como espelhamento do corpo (físico
e espiritual) doente que lembra Tsai Ming-liang, uma encenação
diegética de namoro tirada de Amor à Flor da
Pele, e o gosto pela canção e pela luminosidade
dos espaços populares do cinema de Claire Denis. Os sintomas
são flagrantes, mas há erro no diagnóstico.
Parafraseando João Ricardo Moderno, em sua Estética
da Contradição, “O artista é tomado
pela Ideia, não pelo conceito. A busca do efeito enquanto
motivo racional de obtenção do sucesso na cópia
dos grandes artistas é a busca do conceito, a redução
dos resultados dos mestres a um modelo conceitual efeitista a
ser atingido pela ação dos reducionismos da abstração.
Imitam o efeito e com isso destroem-no”. Mais uma vez, todos
os signos vêm com a polaridade trocada, pois estamos diante
de um cinema que muito vê e pouco entende. Mais importante
do que ir à Ideia, é simplesmente gerar o reconhecimento
do efeito. Importa menos o que nós vemos, e mais o tipo
de coisa que parecemos estar vendo, pois são estes tipos
que nos definem socialmente. Nada disso é excesso ou falta
de cinefilia ou de contemporaneidade; é apenas a adoção
da aparência como se ela fosse dotada de significado, dos
procedimentos como bálsamo dos efeitos.
É
sintomático que, no recente Festival de Brasília
do qual saiu vencedor, cinco dos seis filmes de ficção
em competição tivessem imagens quase idênticas
de corpos femininos boiando em grandes concentrações
de água natural (mar, lago, rio, etc). Vivemos uma era
de totalitarismo de uma sensibilidade específica, aguçada
apenas o suficiente para detectar os problemas (a desconexão
das mulheres com sua própria interioridade) e acomodada
o suficiente para buscar solução sempre nas mesmas
imagens, da mesma maneira. Boiando na água, sendo levado
por cada pequena onda, o corpo troca a ação no mundo
pela impressão de um contato com seu interior. O problema
não é a imagem, pois as imagens sempre estiveram
aí, mas o automatismo dentro de um nicho de autor que se
nega a olhar para aquilo que o bom cinema industrial norte-americano
sempre teve como maior encanto: a criatividade de suas soluções.
Aqui, não há “era uma vez” que não
termine em um “eu”, mas este “eu”, de
tão ingênuo em seu orgulho em primeira pessoa do
singular, não percebe que está apenas a reproduzir
padrões subterrâneos determinados pelos outros. E
que o mar em que se bóia... bom, o mar é mar, é
água, é sal, é concreto.
Era Uma Vez Eu, Verônica é o paroxismo desse
corpo que bóia, pois toda imagem aqui vem dotada dessa
mesma sensibilidade, dessa lógica do efeito e do espetáculo.
Dessa doença que torna tudo fabular, não há
filme possível. Ficam apenas alguns momentos de intimidade
aqui e ali, uns velhos bêbados a dormir sobre a mesa da
sala (em um dos momentos genuinamente fortes do filme), a lembrança
de identificação em um show de Karina Buhr e uma
pilha de discos de vinil empoeirados que hão de sobreviver
ao seu próprio dono. Marcelo Gomes, diretor que parecia
promissor em Cinemas, Aspirinias e Urubus (filme que
demanda revisão urgente), empalidecido ao lado de Karim
Aïnouz em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo,
chega em Era Uma Vez Eu, Verônica cheio de bons
sentimentos, mas sem ter muita idéia de o que fazer. E,
nesta desorientação, Suely trocou novamente de nome
e se convenceu que é feliz o suficiente para não
se dar mais sequer a chance de ir embora.
Setembro de 2012
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