olho no olho - os produtores
Produtora de autor
Entrevista com Sara Silveira
por Leonardo Mecchi e Ana D'Angelo,
para o catálogo da Mostra Cine BH 2008, produzida pela Universo Produção


Há alguns meses conversávamos na Cinética sobre a importância e o interesse de conversar com alguns dos produtores brasileiros mais ativos na atualidade, especialmente aqueles menos focados na produção radicalmente comercial. Num momento em que as idéias sobre um mercado alternativo de cinema parecem bastante sob perigo (no mundo todo, mas em especial por aqui), parecia-nos ser essencial buscar algumas destas pessoas que tentam viabilizar propostas distintas de realização de cinema no Brasil. Entre outras coisas, nos interessava saber o que move um produtor de cinema num país cuja cultura cinematográfica é muito mais voltada para os realizadores (tanto assim que uma boa parte dos produtores brasileiros de maior envergadura historicamente possuíam laços familiares com diretores - sendo o modelo "marido cineasta/esposa produtora" particularmente repetido).

Em setembro último, nosso editor Leonardo Mecchi, colaborador da Mostra Cine BH, foi escalado para entrevistar Sara Silveira para o catálogo da edição 2008 do evento, que a homenageou justamente por seu histórico e presença atual no mercado de produção independente (na foto ela aparece ao lado de Carlos Reichenbach, seu parceiro mais antigo). Lendo este material, percebi então que aquela entrevista seria perfeita para abrir esta nossa série de conversas, como o leitor pode conferir abaixo. Agradecemos à Universo Produção por nos ceder a íntegra da entrevista. (Eduardo Valente)

Vamos falar um pouco da sua história. Você começou como assistente de produção com o Roberto Santos.

Sara Silveira – Eu comecei como assistente de produção com o Roberto Santos e com o Filme Demência, do Carlão Reinchenbach. Em seguida eu fui fazer direção de produção em Anjos do Arrabalde, porque eu conheci o Carlão na Boca do Lixo, em 1985. Ele e a Maria Ionescu, trabalhamos juntos até hoje. Depois eu comecei a fazer direção de produção do Carlão e emendei. São mais de 150 longas que eu fiz como diretora de produção. E fiz também algumas produções executivas e agora já nem sei mais em que filme estou.

Como você sempre teve essa proximidade com o set, ao longo de mais de 150 filmes, esse dia-a-dia estreitou sua relação com os diretores?  Afinal, você é uma produtora que valoriza muito um viés autoral do cinema.

Sara – O fato de ter feito direção de produção me aproxima muito da produção em si. Eu sou uma produtora que trabalha para os meus diretores. O fato de eu ter me transformado em produtora e ter todo esse know-how ajuda para tudo, mas eu sou mais voltada para o set. A palavra final é do meu diretor. Se ele não quiser, ninguém dá palpite nos meus filmes não. Eu trabalho muito em consonância com eles. Quem dá palpite nos meus filmes são os diretores, fora eles ninguém, já que trabalhamos nessa chamada produção independente.

E como se dá esse encontro? Você busca os diretores que te interessam ou eles te procuram?

Sara – Não tem regra. Todo mundo me pergunta como escolho meus filmes. Não tem a menor lógica, nenhum princípio. É empatia, sentimentos e pronto. Percepção de talentos. Cada filme é de um jeito, cada filme eu tenho uma razão pela qual o faço. Tenho um diretor novo aqui que escolhi produzi-lo porque, sem querer, um outro diretor me mostrou um trabalho seu. Me mostrou um curta de 9 minutos, olhei e vi que era uma coisa extasiante. É assim: eu sinto na hora, vejo o talento. O Esmir Filho, por exemplo, foi uma exigência da atriz Alice Braga. Ela disse que eu tinha que produzir esse filme, que o menino era um grande talento. E assim vai. A Juliana Rojas e o Marco Dutra, por exemplo, são puro talento. Fizemos o curta deles, fomos para Cannes, ganhamos um prêmio lá com curta deles. É talento. O Carlão é amizade, amor, talento, compreensão, tudo que há de melhor no mundo é o Carlão, por isso eu faço qualquer filme dele e o que ele quiser.

Mas há uma predileção sua por novos talentos?

Sara – A gente tem um desenho na Dezenove de fazer primeiros filmes, da descoberta de talentos, isso é o que eu gosto. Primeiro você tem o sabor da descoberta, segundo você tem orçamentos menores, depois você tem uma participação na realização do filme muito maior, porque os meninos dependem muito do pensamento da gente, dos conselhos para a realização das obras em função de nossa experiência. Mas a Dezenove tem como objetivo fazer primeiros filmes, descobrir talentos, e estamos pautando nosso trabalho todo em cima disso, embora meu sócio seja Carlão Reinchenbach, que já está no décimo quinto, décimo sexto filme, não sei. E tem outros diretores que estão realizando seus segundos filmes conosco: Anna Muylaert, Marcelo Gomes. Às vezes eu escolho um filme ao ver um talento novo que me dá vontade e eu pergunto: você não quer que eu produza? Você, para produzir um filme, tem que ter muita confiança no diretor. Tem que haver um casamento, uma confiança mútua, senão você não consegue realizar obra nenhuma.

Nesse sentido você possui um perfil bastante específico, de produzir os curtas, passar para os primeiros longas...

Sara – Nós produzimos vários assim. Por exemplo, a Juliana e o Marco Dutra. Nós produzimos o curta (Um Ramo - foto), colocamos em Cannes e ganhamos a Semana da Crítica. Quando eu vou para Cannes com um curta, não vou para perder tempo. Eu vou para Cannes já com um projeto de longa, uma coisa consistente que se apresente, porque se estamos concorrendo em Cannes, é o momento de soltá-los no mercado, começar a plantar no mercado internacional. E eu vislumbro muito o mercado internacional, porque o mercado nacional é muito pequeno. Temos problemas seríssimos de distribuição e o mercado internacional na verdade é o que chega a nos render algum dinheiro e dá projeção para nossos filmes e para nós enquanto produtores.

Mas, para além do mercado internacional como potencial de venda e circulação, como você vê a questão da co-produção, com a qual você já trabalhou em um filme como Sólo Dios Sabe?

Sara – Traz benefícios sim, mas é muito trabalhosa. Os incentivos, o dinheiro, são os mesmos para uma produção nacional e uma co-produção. Você concorre junto com as produções 100% brasileiras, o que dificulta muito no momento da captação. As autoridades têm vontade de estimular a co-produção, mas a gente não tem uma cultura de co-produção. Então quando você vai concorrer no BNDES com uma co-produção, você não vai ganhar. Porque você não consegue captar mais que R$ 100 mil, R$ 200 mil, salvo atrás do Artigo 3º, quando a major passa a ter interesse, pois ao invés de pagar o imposto sobre a remessa de lucros para o exterior pode investir na co-produção, como fizemos com Sólo Dios Sabe

E nesse sentido do sucesso de vendas e circulação no exterior, Cinema, Aspirinas e Urubus foi seu projeto mais bem-sucedido?

Sara – No exterior sim. Foi vendido para uns 20 países. Mas é muito demorado, trabalho difícil, filme lento, com uma cor estranha, dois atores. Tudo feito no sertão. Nem posso falar tanto porque Aspirinas teve 150 mil espectadores no Brasil, mas porque foi a Cannes e representou o Brasil no Oscar. Se não tivesse posto ele em Cannes, certamente não teria acontecido nada com ele.

É verdade que Aspirinas foi lançado com mais cópias na França do que no Brasil?

Sara – Não foi bem assim não, mas quase. Aqui nós saímos com 17 cópias e em Paris foram 15. Mas tem o caso, por exemplo, de Estômago, que é o trabalho de pessoas inexperientes, mas um trabalho excepcional. Este filme teve na Bélgica e na França 17, 19 cópias, e no Brasil sete ou oito. Um absurdo. Holanda tinha 15 cópias do filme. O Brasil com distribuição é um verdadeiro... E Estômago é um filme magnífico. Mas qual o reconhecimento no Brasil? Ele está em uma ou outra sala pelo trabalho do pessoal do filme, porque pelo distribuidor e pelo exibidor ele já estava fora há muito tempo. Essa é a minha briga, todo mundo sabe. Os distribuidores até gostam de mim, mas os exibidores... Porque estou sempre falando sobre isso, sobre a dificuldade de colocar o nosso filme no mercado. Os meus filmes então... Meus filmes são muito autorais.

Com a produção crescendo sem parar, esse problema tende a aumentar.

Sara – O problema gravíssimo, o gargalo do cinema brasileiro é exibição. Não existe exibição nem proteção bacana para nós. São poucas as salas que respeitam as obrigações e ninguém tem interesse em mexer isso. Eu, por exemplo, cedo meus filmes para formação de platéias, para os surdos, os cegos, os mudos. Nós cedemos para formação de platéia direto e reto. Mas será que o exibidor tem interesse nisso também? Eles ficam furiosos com isso. Não tem uma política, falta uma política para exibição. Como a França resolveu o problema dela? Como a Argentina aqui do lado resolveu? A Argentina está com quase 50% de público. No Brasil, só há interesses. Os exibidores são muito fortes, mandam muito. Os distribuidores são muito poucos e, os menores, enfrentam verdadeiras batalhas com os exibidores para conseguir as salas. Muitas vezes nós produtores temos que interferir, pedir pelo amor de Deus para os exibidores deixarem nossas fitas entrarem, é assim.

Você fez um trabalho com a Globo Filmes...

Sara – Tivemos apoio de mídia da Globo Filmes no Aspirinas, mas foi totalmente desnecessário. São 25 chamadas que representam em teoria R$ 500 mil, mas você tem uma retenção no que arrecada na bilheteria de R$ 60 mil, que num filme pequeno é o que ele dá. A TV funciona com Casas Bahia: trezentas, quatrocentas chamadas. 25 chamadas na TV não tem o menor efeito. TV funciona com a repetição. Esse apoio da Rede Globo é ínfimo no resultado e na retenção é tudo, enorme. O único dinheiro que você podia ganhar ele retém. Nossos filmes quando são um sucesso dão 100 mil espectadores. Aspirinas deu 150 mil; Bicho de Sete Cabeças, 450 mil; e Ó Pai Ó, 400 mil. São minhas únicas bilheterias. O resto é tudo abaixo de 100 mil.

O que mudou de quando você começou a trabalhar com o Carlão e agora? O que mudou para você como produtora?

Sara – O que mudou foi fazer filmes. As leis de incentivo proporcionaram a produção, existe produção de filmes hoje, a gente já não sofre mais com isso. Claro, os gargalos vão se fechando porque não sei quem disse que só com filmes comerciais o cinema brasileiro vai vingar, o que é uma verdadeira bobagem. Porque filmes comerciais não fazem história. Quem faz história são os filmes autorais. Os comerciais eles passam. Deve estar no 15º Batman. Qual o Batman que você lembra? Qualquer um, não importa, Batman é sempre o mesmo. Um Alma Corsária faz muito mais história que 20 Batmans. Mas isso é o mercado. O que mudou nesses anos todos? Foi a produção, a produção aumentou. Vamos dizer que a distribuição/exibição deram uns passinhos, mas uns passinhos muito modestos perto do que é a produção. É só pegar as estatísticas e ver a quantidade de filmes que estão sendo feitos e a quantidade de filmes que não são lançados porque ninguém quer. Eu não posso nem reclamar porque Alma Corsária é um filme que deu 80 mil espectadores. O Dois Córregos tem quase 40 mil. São filmes até bem-sucedidos dentro deste quadro pavoroso da exibição no Brasil.

Então uma política pública para fazer estes filmes chegarem ao público teria que sair dessa lógica do mercado.

Sara – Exatamente, sair dessa lógica do mercado. Da mesma forma que a política pública resolveu o problema da produção, essa mesma política tem a obrigação de fazer com que exibam os nossos filmes. Porque muita gente está produzindo e não tem filme saindo, não consegue exibição. Dificilmente uma major vai pegar um filme autoral, um Aspirinas por exemplo.

Mas agora você vai começar a trabalhar com majors...

Sara – Não é que eu vou começar. As majors me descobriram, não sou eu que fui atrás. Eu já sabia deles e eles nunca me quiseram. Mas agora eles vieram atrás de mim. A Warner não quis Aspirinas, por exemplo. Fiquei seis meses discutindo com eles e eles não quiseram. Não tinha perfil. Depois que eu entrei em Cannes, todas as majors vieram me procurar. Mas eu já tinha negociado, fechado com o meu querido Jean-Thomas (Bernardini, proprietário da distribuidora Imovision), que é do meu tamanho, e ele tinha pegado o filme. Eles não querem. “Filme lento, não acontece nada”, é o que me diziam. Eu tenho um depoimento de um distribuidor carioca sobre Aspirinas que me ligou e disse “olha, Sara, você é uma pessoa muito bacana, eu admiro seu trabalho, agora o que eu faço com esse filme? Onde eu jogo isso? O que é isso, que nome é esse? Você tem coragem de me mostrar um filme como esse?” Nunca mais mandei filme nenhum para ele, que não entende nada de cinema. Então estou eu em Cannes, no topo do tapete vermelho, e quem estava lá? É uma vergonha, vergonha. Falei para quem quisesse ouvir: “tem distribuidor aqui que disse que esse filme que nós temos aqui, eu deveria jogar na lata do lixo”. Eu o desmoralizei mesmo, porque eles acham que sabem de cinema. Agora um distribuidor dizer que o filme é um lixo, um filme que vai para Cannes e ganha um prêmio, que autoridade esse cara tem para falar de cinema? É isso que fazem com a gente, o tempo inteiro, com os filmes autorais, porque não é um Didi, uma Xuxa, filmes que têm público e que têm que ser feitos. Não sou contra, sou a favor da Xuxa, do Didi, do Tropa de Elite. Eu posso não gostar do tipo de filme, mas Tropa de Elite ter ganhado em Berlim foi uma beleza. O Linha de Passe, que não está na mesma corrente porque o Walter faz filmes pequenos, foi lá em Cannes e ganhou. Maravilhoso ter ganho.

Isso abre espaço para o cinema brasileiro no mundo?

Sara – Com certeza, para todo mundo, não tem esse papo não. Não tenha a menor dúvida. Linha de Passe é um filme de autor, foi lá em Cannes e arrebatou o prêmio. O Blindness é um filme enorme, um trabalho de produção de primeiríssima linha da O2, trabalho que é exemplo de co-produção internacional. Este tipo de trabalho você tem que reconhecer. Não é mérito de exibidor e distribuidor, é mérito do produtor e diretor. Então eu dou os dois exemplos, que são maravilhosos: um pequeno, que é o Estômago, vendido para 22 países, e um desse tamanho de R$ 40 milhões que é o Blindness. São trabalhos magníficos, maravilhosos, bem realizados, e que abrem espaço para todos nós no mercado internacional.

Dezembro de 2008

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