olho no olho
Vamos filmar tudo
Uma conversa com Gonçalo Tocha
por Gustavo Beck (colaboração especial)

Esta conversa com Gonçalo Tocha se deu por email durante o mês de março. Na ocasião, seu novo filme, É na Terra, Não É na Lua, ainda não havia sido exibido no Brasil - algo que aconteceria pouco depois, no festival É Tudo Verdade. A motivação maior era escutar do realizador quais caminhos foram necessários tomar para encontrar esse filme, e assim aproximar o leitor de um cinema que não encontra espaço maior no circuito de exibição nacional, e que ainda assim merece toda atenção. (Gustavo Beck)

Podemos começar pelo mar, falando um pouco da sua relação com ele, e de como o estabelece enquanto espaço para seus filmes.

KMFPode ser capricho meu, mas penso que o Mar é o elemento fundamental da vida. Por isso as ilhas são os limites de conhecimento, porque nos colocam no devido lugar. Antes de haver Terra, há Mar, e ao Mar retornaremos um dia. O Mar é o último símbolo da morte, o Homem sozinho no meio do Mar não pode sobreviver. No meu primeiro filme, Balaou, uma viagem de barco à vela pelo Atlântico, estou 8 dias isolado no meio do mar para curar uma morte. No filme seguinte, este É Na Terra Não É Na Lua, estou dois anos numa minúscula ilha de 17km2, bem isolada no meio do Atlântico. Aqui o barco-ilha não se mexe, mas o mar entra adentro e é o elemento que coloca a ilha num contexto geográfico extremo, totalmente exposto aos mandos da Natureza. Apesar disso, uma pequena comunidade aqui se instalou e sobreviveu durante perto de 500 anos. Para quem aqui vive, a Terra é a certeza e o Mar o imponderável, o mistério.

Mas nesta vivência, antes pelo barco e agora pela ilha, como definir as supostas regras dessa convivência? Como se aproximar da ilha e de seus moradores, pelo cinema?

A convivência começa e estabelece-se na tensão, a tensão de não se saber o que pode acontecer, a tensão de nada ser dado à partida, a tensão de não conhecer ninguém e ninguém me conhecer. A rodagem acaba por acompanhar este processo de nos conhecermos e, talvez, enamorarmos. Filmar é sempre podermos apaixonarmos, pelos lugares, pelas pessoas, e no final querermos dignificar essa experiência. Na Ilha do Corvo, lugar tão secreto quanto protectivo em relação ao que vem de fora, tive de assumir a personagem do homem-câmara que tudo filma e que nesse acto se quer tornar num "corvino", um homem do Corvo. Quando ali cheguei tinha aquela quimera de querer pertencer a algum lugar.

Para além de ser aceito, para poder estar dentro, para se tornar um corvino, é preciso também saber distanciar-se como homem-câmera e como homem-som. Como funciona essa negociação? Como medir este passo atrás ou ao lado, para seguir filmando? Pois parece haver um forte desejo de se catalogar como anunciado no que se aproxima da ilha.

KMFEm 2007 chego à ilha e ninguém me conhece, pior: sou um estranho com uma câmara de filmar em punho. O desejo de tudo ver na ilha, de toda a gente conhecer já existia previamente, antes de desembarcar no Corvo. E é desse desejo que vou falando a quem filmo. Depois são técnicas de sedução entre pessoas. Por um lado, tratar todos os temas e todas as pessoas da mesma forma, porque à partida tudo o que filmava, desde o fabrico do pão a um casamento, teria a mesma importância para o filme. Depois ir revelando, a quem filmava, as imagens que fazia ao longo do tempo de rodagem. Descobri que o uso que fazemos de uma imagem de um local tão pouco representado adquire uma relevância imensa. Foi isso que a comunidade corvina me fez ver, na justa medida da sua resistência e na dignidade com que me encaravam. A partir daqui, quem filma e quem é filmado está exactamente ao mesmo nível e tudo se mistura. O que filmava ia transformando a vida da ilha e a vida da ilha transformava a maneira como a filmava. Quando chegamos ao fim, do filme e do meu tempo enquanto habitante "corvino", tudo está diferente.

E esse entendimento de que terminou, de que agora tem-se um filme, como o recebeu? Como foi deixar a ilha e voltar para casa? Como foi revisitar através da montagem essas pessoas e esses lugares? Como adentrar essa imensa coleta de imagens e sons, e saber selecionar o que pode ser bom ou não ao filme que se quer fazer? E há ainda o arquivo. Como toma conhecimento dele e propõe essa mediação?

Quando um projecto de filme adquire esta grandeza e imensidão, é muito difícil poder cortar e terminar. De alguma forma, tentamos adiar o seu fim, a sua conclusão, para continuar a eternizar o fulgor da descoberta. Mas nunca terminar é o grande perigo que nos espera. Nesse aspecto, a montagem é sempre o medo, o medo de falhar. Com 180 horas gravadas de imagem, 300 horas de som, e centenas de personagens e situações, a coisa torna-se ainda mais perigosa. Ao início, tudo tem valor, tudo é importante, nada está a mais. E esse de facto é o sentimento verdadeiro. Mas há uma diferença entre um arquivo e um filme. Na essência, o que eu filmei é e será sempre um arquivo de acontecimentos, notas e apontamento, tal qual fez o Óscar Nunes (o antigo cabo-do-mar do Corvo) durante 40 anos. Mas o filme, como roteiro de uma experiência de "ver", quando começa a delinear-se não tem assim tantas estradas possíveis. No final, é sempre o material cinematográfico que fala, porque as imagens nunca são funcionais. Quando filmo, já estou a pensar em cinema.

Para transpassar esse grande arquivo e compor uma dramaturgia, ou uma certa cadência narrativa, como pensa a divisão do filme em capítulos? E quando surge a ideia de trazer os comentários, seus e os de Didio Pestana, que pontuam o filme? O humor me parece um tanto raro e especial nesse caso.

KMFOs capítulos não são funcionais ou temáticos, são simplesmente separadores na continuidade da vivência, como se faz nos livros, nos andamentos de um romance, nos capítulos de um diário etc… Por outro lado, sim, têm em si a ideia de acumulação, de acrescento, de qualquer coisa que vai aumentando à medida que avançamos na experiência da ilha e do filme. Os comentários entre mim e o Dídio (o homem do som) são retornos à nossa emoção primordial, quando ouvimos as histórias pela primeira vez. Filmávamos muito e por vezes, enquanto deixávamos um plano longo das nuvens ou do mar, íamos falando de pequenas histórias que as pessoas nos contavam, coisas dispersas, apontamentos históricos, lendas, piadas. Mais tarde, quando a montagem já estava bem avançada, fomos gravando as vozes por blocos bem específicos dentro do filme, recriando essa experiência no presente. Eu e o Dídio conhecemo-nos há muito tempo e sabemos que ambos representamos personagens distintas, um mais crente outro mais céptico, e por aí afora. Daí nas nossas conversas chegamos ao burlesco.

Para alguns filmes, em especial projetos que dependem desse tempo dedicado ao encontro com o que se filma, quase sempre realizados em vídeo, e em geral compostos por equipes mínimas, ou mesmo de um homem só, parece ser uma forte constância hoje decidir por filmar e não por aguardar os recursos necessários para então iniciar a filmagem.  O que, de alguma forma, aproxima ainda mais filme e realizador. Não o ter como um trabalho, mas como vida diária. Seria isso uma independência a ser conquistada?

Até agora foi dessa maneira que fiz os meus dois filmes, não propriamente por necessidade mas porque foi assim que aprendi a fazer. Ou seja: a filmar sozinho, a ver os outros filmar, com uma pequena câmara de video, comprada já faz dez anos, câmara que conheço muito bem. E nesse sentido tem a haver, sim, com o filmar diário, como uma caneta com a qual escrevemos todos os dias. Não é exclusivo do video, o Super 8 já o tinha anunciado, mas as cassetes de video continuam a ser mais baratas. Aprendi a filmar com pouco, com o estritamente necessário: uma câmara, um tripé (ou não), um microfone. De resto é tempo, ter tempo e dedicação extrema. Não cair na tentação de querer terminar o filme logo, só porque queremos ver o resultado. Porque filmar ao longo de muito tempo, viajando, vivendo, é ter o resultado do filme ao longo do processo, a clássica afirmação: o destino é o caminho. Desta forma estou também muito mais livre, não tenho prazo nem pressão de produção, ou seja a produção de um filme torna-se também acto de fazer o filme. Mas a liberdade também queima. Quando estamos sozinhos sabemos que somos responsáveis por tudo. O resultado do teu filme é também as circunstâncias em que ele foi feito. Por isso, nesta intenção a perfeição é um termo vago e perigoso. O teu filme solitário estará também cheio de todas as agruras, rugosidades típicas de quem muito caminhou.

As notícias que chegam ao Brasil sobre o cinema português não são das mais animadoras. Embora o momento seja de reconhecimento nos festivais internacionais, o mercado interno parece viver um momento um tanto delicado. Com o atraso do pagamento do ICA e agora o fechamento da Tobis, como os realizadores vêm se organizando e encontrando caminhos para produzir e distribuir seus filmes? E como poderia enxergar o desdobrar disso para os próximos anos?

Não faço bem ideia de como a situação se vai desenrolar. O que eu sei é que os realizadores portugueses sempre se habituaram a encontrar várias soluções para fazer um filme. Eu continuo a dizer que o cinema português não tem quase nenhum realizador profissional, que consiga viver muito tempo de fazer filmes. Os apoios são poucos e cada vez menos. Para além disso, o senso comum da opinião pública portuguesa é não perceber o sentido de apoiar os filmes portugueses, como se não lhes pertencessem. Nesse sentido há ainda um divórcio entre o cinema português e o seu público local. Estamos num ciclo positivo, com muitos e bons filmes, novos cineastas e ainda por cima com vários prémios internacionais. O poder político aproveita-se, claro, desse mediatismo, mas fora dele não lhe interessa a criação. Trágico era sermos obrigados a fazer filmes fora de Portugal, para conseguir apoio e financiamento.

KMFPara terminar, queria te convidar a falar sobre filmes e autores que tenham recentemente te interessado no cinema. E aproveito para perguntar se já existe um próximo projeto encaminhado ou que esteja te motivando a trabalhar no momento.

Cineastas recentes...hum... Custa um pouco nomear, tendo sempre a falar dos autores já não muito recentens que me marcaram, cineastas aventurosos, viajantes, que levam longe a ideia de fazer um filme como extensão de uma aventura pessoal. Robert Kramer, Rouch, Glauber, Herzog ou os maravilhosos e irrepetíveis filmes de Haroun Tazieff. Mais recentemente, gostei de ver a obra do americano Jim Finn (que faz belas encenações de acontecimentos reais), coisas dispersas do francês Nicolas Rey, Pedro Costa é um marco e Miguel Gomes é frescura. Neste momento é difícil pensar noutro filme, há muita coisa que morreu em mim ao terminar este. Foram 4 anos muito intensos e onde joguei tudo o que tinha: tempo, dinheiro, paixão e a minha velhinha câmara mini-dv que já não está em condições de continuar. Para além dos convites para duas curtas ainda este ano, procuro renascer para uma outra longa, no desejo de ter uma nova missão, daquelas grandiosas e inesgotáveis. Talvez os Açores ainda estejam no horizonte.

Junho de 2012

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