olho no olho
Descobrindo um olhar de cinema:
Gregório Graziosi e Thereza Menezes

A Cinéfondation foi criada dentro do Festival de Cannes em 1998 pelo interesse na aposta em descobrir autores de cinema ainda no seu nascedouro - leia-se nas escolas de cinema. O ganhador da Camera D'Or do ano passado (prêmio para longa de estréia), por exemplo (o romeno Corneliu Porumboiu, com A Leste de Bucareste), teve seu curta de formatura exibido nesta seção, de onde saiu com o Segundo Prêmio. Dos quatro filmes brasileiros selecionados para o programa até este ano, os diretores de dois deles (nosso editor Eduardo Valente e a dupla Marco Dutra e Juliana Rojas) já tiveram filmes seguintes exibidos no Festival. Tudo isso representa uma grande alegria, mas também responsabilidade extra para os representantes brasileiros na Cinéfondation deste ano, os alunos da FAAP Gregório Graziosi e Thereza Menezes, diretores de Saba (foto acima). Como é de se esperar em um primeiro curta, os dois partilham muito mais questões e perguntas do que certezas sobre seu trabalho (atual e futuro), e por isso mesmo bateram um papo bastante franco com nossa equipe sobre suas proximidades (e diferenças) estéticas.

Cinética: Como Saba foi selecionado para Cannes através da Cinéfondation, que reúne curtas de escolas de cinema de todo o mundo, gostaria que vocês contassem um pouco sobre a trajetória de vocês, como chegaram ao cinema, à faculdade e ao filme que fizeram juntos.

Gregório: Eu venho de uma família de arquitetos, então inicialmente comecei o curso de Arquitetura, que larguei no segundo ano da faculdade, e paralelamente estava fazendo um curso técnico de Artes Plásticas na Escola Panamericana de Artes. Eu pensei em fazer cinema para fazer Artes Plásticas. Eu tinha estudado muito desenho e Saba foi a primeira experiência onde eu realmente pude aplicar tudo o que eu estudava, e ele nasceu porque eu conversava muito com a Thereza sobre tempo no cinema. A gente começou a trocar um pouco de experiências. Na sala de aula não tem muita discussão sobre cinema, no máximo um gosto/não gosto, e Thereza é uma pessoa que realmente entende de cinema e tem uma cultura enorme sobre isso. Eu estava fazendo uma série de fotos sobre o tempo morto no cinema, e daí fui para o cinema do Antonioni, quando comecei a conversar bastante com a Thereza e a gente falou: “acho que dá pra fazer um filme inteiro com tempo morto”. Então comecei a fazer uma série de fotos que eu achei que tinha um tempo parecido com o tempo dos meus bisavós. E no caminho do metrô para a minha casa tem a casa dos meus bisavós, e meu avô estava sempre na janela, e foi engraçado pois eu sentia uma certa identificação espacial.

A gente conversou sobre qual filme iríamos fazer, a gente não sabia exatamente que filme iria trabalhar e apostou em fazer isso. A gente discutiu um tempo como seria a estrutura do trabalho e chegamos a algo bem simples: dividimos o filme em três tempos - a primeira parte do filme era a lavagem da casa, a segunda parte era a água passando pelo corpo e a terceira parte do filme eles esperam. O final do filme estava aberto. Durante as gravações a gente achava que iria encontrar as respostas para o final. Foi aí que cheguei para a Thereza e disse: “vamos fazer um zoom até a janela, que não precisa mexer a câmera, e depois a gente acaba com uma pan do sítio em que ele vivia”. Plasticamente é muito simples, mas eu acho interessante pelo deslocamento da câmera, pois Saba é um filme estático, o que flui entre os planos estáticos é a água, então de repente tem um movimento de câmera que você passa pelo zoom, sem a câmera se mexer, e depois pela pan no final do filme que é super simples. Porque eu sempre me perguntava o que meu avô fazia na janela. Sempre que eu ia lá meu avô me falava que a vida era no sítio, então a gente percebeu que isso era uma coisa latente. Então a panorâmica no final foi uma forma de homenageá-lo, de levá-lo onde ele queria estar.

Thereza: O Gregório fala tanto mas eu não tenho muito o que falar, então é bom que ele fale bastante mesmo [risos]. Porque minha aproximação do cinema foi muito simples, através dos filmes. Desde que eu me lembro eu gosto de ver filmes, e eu sempre assisti muito filme mesmo. Então quando eu saí do colegial eu me perguntei o que eu queria fazer da minha vida e, como eu não sabia, fui fazer faculdade de cinema, porque eu não saberia o que mais fazer. Na verdade, eu entrei também em Filosofia, fiz o primeiro ano junto. Mas logo larguei porque eu queria ver filmes à tarde. Então eu fiz cinema muito mais porque eu gosto de ver filmes mesmo.

Cinética: Como é que funcionou a co-direção de vocês? Porque os enquadramentos são bem específicos, parece haver muita pesquisa dentro daqueles enquadramentos.

Gregório: Eu estava lendo aquele livro do Jacques Aumont, “O Olho Interminável [Cinema e Pintura]”, e tem um capítulo especial em que ele aborda o enquadramento e outro em que ele aborda o cinema como espaço-tempo. Eu discuti isso com a Thereza e a divisão foi bem simples: eu fazia o espaço e ela fazia o tempo. A Thereza ficava do meu lado enquanto a gente estava filmando e me falava quanto tempo a gente precisava de material para cada cena, ela fez a decupagem, o primeiro corte, depois montamos o som. A primeira versão do filme tinha uns 20 minutos, depois a gente foi acertando. O próprio nome do filme veio dessas discussões. Eu estava lendo Tarkovski e falei pra ela “abre em tal página, porque tem uma palavra que engloba tudo o que a gente queria”. Mas essa presença da Thereza na montagem é o mais importante, porque o tempo desses filmes é fundamental.

Cinética: Aparentemente a Thereza se aproxima do cinema através da cinefilia, e Gregório vai bastante para essa parte da teoria, então as influências são múltiplas. Eu queria que vocês falassem um pouco mais sobre essas influências e como elas atuam no cinema de vocês e, em especial, no Saba.

Gregório: Dá pra levantar fácil. Eu conheci a Agnès Varda quando estava em Paris apresentando o filme no Cinéma du Réel e é engraçado porque o Aumont em seu livro descreve uma parte de um filme dela onde ela filma o corpo do marido como se fosse um pedaço de paisagem, e eu tinha visto um pedacinho desse filme no Janela da Alma e isso ficou como referência. E essa imagem do corpo como paisagem ficou muito tempo na minha cabeça. Depois de um tempo eu vi uma série de um fotógrafo carioca que eu conheci, Vicente Melo, e eu pensei que o filme da Varda deveria ser assim, então eu falei pra Thereza que se a gente fosse filmar, eu gostaria que fosse desse jeito. Então a gente meio que levantou a Varda num primeiro momento, mas depois acabou ficando bem distante. Tínhamos pensado no corpo de uma maneira mais presente no início. E a gente ficou muito impressionado também quando vimos os filmes do Wong Kar-Wai, por causa de seus enquadramentos muito interessantes. E depois eu fui ter contato com o cinema do Ozu e percebi que havia uma relação mesmo sem eu nunca ter visto um filme do Ozu antes. Aquela coisa da câmera baixa, de um enquadramento bidimensional. Esse enquadramento bidimensional veio também porque pensamos que o digital funciona melhor como bidimensional, numa construção como se fosse um desenho e não o tablado italiano. É um espaço como Gauguin, sobrepondo figuras sem a perspectiva para o ponto de fuga.

Thereza: Já eu não trabalho com referências, eu não sei o que são referências. Referências pra mim são tudo o que eu já vi na minha vida e é algo totalmente instintivo. O que eu posso falar é que eu gosto de ver isso ou aquilo, que meus cineastas preferidos são Tarkovski e Bergman, dos clássicos, e hoje em dia eu diria Wong Kar-Wai, Sokurov. Aí, claro, você vai vendo que se você se relaciona com essas pessoas você quer fazer algo parecido com o que elas têm feito, mas pra mim de uma maneira instintiva. Provavelmente muita coisa eu copiei mesmo sem nem ter me dado conta. Por exemplo, eu sei que o Wong Kar-Wai trabalha com o desenquadramento, então tem muito dele no filme, mas quando estávamos filmando eu não pensava nisso. Eu pensava que era legal colocar aquela parede entre a câmera e o personagem, mas eu nem pensava em Kar-Wai.

Cinética: É curiosa essa relação de vocês, pois o Gregório traz bastante a teoria, traz bastante a reflexão, enquanto a Thereza quer muito instinto, quer muito a sensibilidade.

Thereza: Eu aprendi isso trabalhando com o Gregório. Eu aprendi que eu sou totalmente instinto, que hoje em dia eu quero falar do amor, do medo. A gente vai aprendendo sobre a gente. De tanto ouvir o Gregório falar dessas coisas de conceito, enquadramento, eu penso que eu não sei nada do que ele tá falando. Eu quero ver duas pessoas apaixonadas, só isso.

Cinética: Mas nesse sentido, Thereza, você não sente falta do personagem, da vida do personagem.

Thereza: Claro! Eu sinto. Claro que agora o filme tá feito, não tem muito o que falar agora. Mas hoje em dia eu adoro uma câmera próxima, na cara de uma pessoa, expressões, e o Gregório não. Mesmo o Saba, que é um filme de close, é um filme de close em outro sentido. O Gregório gosta de filmar gente de costas, gosta de Gente de Sicília, Straub, e eu quero filmar alguém chorando.

Cinética: Apesar de Saba ser um filme sobre pessoas próximas, vocês retiram toda essa dimensão familiar do filme.

Gregório: Sim, a gente conversou muito sobre isso, sobre retirar essa dimensão familiar. Eu não queria nenhuma cartela, nenhuma explicação de quem são aquelas pessoas. Tanto que no começo as pessoas falavam que o filme era universal, que era sobre os avós de qualquer um, mas aí vinha aquele plano final que não tinha nada a ver com o filme [risos]. A gente chegou a pensar se tinha sido um equívoco cinematográfico aquele plano, se a gente prejudicava nosso trabalho, depois decidimos que não, que o filme era daquele jeito. Meu novo filme, Saltos, ia começar onde termina Saba, com uma pan voltando da direita para a esquerda. Aí eu percebi que esse plano iria atrapalhar o filme e cortei ele. É importante saber isso, quando um plano atrapalha ou não o filme. Isso de trabalhar com a Thereza é fantástico, porque ela tem um repertório enorme e ajuda nesse discernimento.

Cinética: Essa questão do último plano de Saba passa pela questão da personagem. Quando estávamos conversando com o Marco e a Juliana sobre o filme deles (Um Ramo) e eles estavam falando como existe uma identificação com os personagens, mas não existe uma compreensão, porque você nunca entra realmente na intimidade daqueles personagens. Isso porque eles têm um pudor de ir além da pele das personagens, de entrar na subjetividade deles. Eles tem esse pudor e isso é uma coisa assumida. E no Saba, o que acontece é que você não constrói uma intimidade com aquelas personagens, sempre há um distanciamento delas tanto no plano, com barreiras entre a câmera e elas, quanto na própria aproximação tua com os personagens. Parece que há um respeito que chega ao ponto de evitar realmente essa intimidade, embora seja de uma história relativamente pessoal como você fala. E no plano final você entra diretamente na subjetividade dele, sem ter construído uma aproximação com essa intimidade, então eu acho que é isso que causa esse estranhamento do plano final e esse incômodo dele parecer destacado do restante do filme.

Thereza: Perfeito, é exatamente isso. Eu já ouvi muito que nós não nos mantivemos radicais ao nosso conceito. Era quase como se estivéssemos dando uma compensação aos personagens depois de tê-los maltratado tanto. Mas não é que isso tenha sido pensado. Da minha parte, pelo menos, foi a primeira cena que eu montei, era a primeira que eu tinha claro na cabeça. Porque o resto era muito mais complicado, muito mais difícil de eu conseguir visualizar. Então eu acho que tem muito a ver com isso, de ser uma coisa mais fácil de entender, uma coisa de transcendência da própria personagem. Eu gosto da cena. Mas no final das contas, ficou isso, ficou um pouco destoando do filme em geral.

Cinética: Você falou de seu histórico com a arquitetura, tanto na sua família quanto no curso que você começou, e Saba e suas fotografias têm um olhar para o espaço que eu acho que tem uma relação direta com esse passado com a arquitetura. Então essa questão com a arquitetura e com a fotografia, como ela se relaciona com seu processo de trabalho?

Gregório: Depois do Saba eu comecei a trabalhar numa série de fotografias em que eu procurava os personagens de Antonioni na arquitetura do Niemeyer, e foi só depois disso que eu comecei a entender a questão do tempo nos filmes dele. Então eu trabalhei isso no Saltos e o terceiro filme, que vou começar agora, é só isso. Esses três filmes são muito parecidos porque têm uma relação entre figura e espaço muito grande. Porque uma coisa que me incomodava muito, desde sempre, é que há mais de cem anos a abstração está dentro das artes plásticas, e dentro do cinema você evita a abstração, o cinema ainda está muito colado no personagem, na pessoa.

Cinética: No caso do Saba você fez um ensaio fotográfico antes?

Gregório: Sim, e foi mais tranqüilo pois quando chegou o momento eu já sabia o que filmar. Eu fiz isso nos três filmes na verdade. Eu gosto muito de definir o que está dentro do quadro, o que está fora do quadro, e qual a importância da voz pra preencher o extra-campo.

Cinética: A partir disso, não se corre o risco de você ter um projeto estético que é anterior ao filme e que, muitas vezes, independe do filme? Por que passar do ensaio fotográfico para o filme?

Gregório: Pelo tempo. Porque a arquitetura e o cinema inserem o tempo dentro da parte plástica. A fotografia tem uma questão temporal, mas limitada à construção do quadro. Eu acho o tempo do filme uma coisa gostosa, você poder fluir pelo espaço vazio, pela natureza morta.

Cinética: Mas de certa forma você divide as duas coisas, quando diz que a Thereza vai trabalhar o tempo e você vai trabalhar o espaço. Porque tem uma coisa que é o tempo morto do quadro, que é a duração do plano estático, e depois tem o tempo encontrado na montagem.

Gregório: Realmente, essa confiança na Thereza é meio cega. A gente conversou muito sobre as teorias do Tarkovski, que dizia que o diretor precisa entender o tempo a ser construído dentro da imagem, e se ele entender isso ele acerta o filme. E é verdade, pois cada quadro tem o tempo certo dele.

Cinética: Há, entretanto, muitos momentos dentro de Saba que o tempo do quadro, daquela cena específica, acaba ficando curto demais porque se acabava buscando um encadeamento de imagens que já estavam pré-definidas no ensaio fotográfico. Havia a intenção de se trabalhar um tempo esgarçado, mas ao mesmo tempo tinha um encadeamento de cenas relativamente rápido para abarcar determinados quadros, e é aí que eu queria chegar com essa questão do projeto estético que antecede o filme, porque parece que aquelas imagens, aqueles enquadramentos, já estavam prontos e você precisava colocar no filme e isso acabou atrapalhando o andamento do próprio filme, que deveria ter um tempo maior dos planos.

Gregório: Já falaram isso pra mim. Eu tinha pensado o filme como planos mais longos, mas eu adorei o corte que a Thereza deu pra ele. Eu acho que isso deixa o filme não ficar chato e por isso que o filme flui.

Thereza: Quando o filme era mais longo, as pessoas reclamavam mais.

Gregório: Eu acho que o filme já é suficientemente desconfortável. O fato dele não ter uma narrativa explícita, não ter diálogos, trabalhar bastante o tempo morto. Eu acho que o filme acertou em cheio.

Thereza: É uma coisa muito complicada, porque com 20 minutos tinha um desconforto, mas não era aquele desconforto que a gente buscava. As pessoas não pegavam. Aí de repente, com esse corte, as pessoas se relacionavam melhor com o filme. O filme fluía melhor.

Gregório: Eu acho que o filme não fica pedante, as pessoas gostam, porque o corte permite um novo estímulo, não apenas visual, mas sensorial. Porque eu acho que a imagem que está lá no filme não é só plástica, há toda uma narrativa visual que funciona dentro do quadro. Por mais mínimo que seja, ele passa alguma coisa, então eu não acho que seja apenas estético e vazio.

Thereza: Não é só estético e vazio [risos]. Olha a crítica que ele tira da sua!

Cinética: Eu não falei que era vazio [risos].

Gregório: É que a gente ouviu bastante isso...

Thereza: É uma coisa complicada mesmo, porque a partir do ponto que você faz um filme sem diálogo, com um monte de imagens estáticas, você já pressupõe que alguém vai chegar pra você e dizer “quem vocês pensam que são pra fazer isso?” O que eu acho uma crítica extremamente pertinente [risos].

Cinética: Havia um filme no “É Tudo Verdade” chamado Construção, e tem muito essa questão do tempo alargado, do enquadramento, da falta de diálogos, do som, e é muito similar com o trabalho de vocês. Há vários outros filmes trabalhando essas questões. Vocês acham que isso é uma tendência?

Thereza: É verdade, é uma coisa que está muito em voga mesmo. Primeiro porque é difícil escrever diálogo bom. Eu sempre acho que tem a ver com isso.

Gregório: A gente pensou no que a gente tinha em mãos. A gente não tinha acesso a película, então íamos usar câmera digital. Uma câmera digital e tripé. A gente não queria trabalhar com uma equipe e material de fotografia, então decidimos trabalhar com luz natural. Captamos o som depois. A gente não tinha experiência pra lidar com uma estrutura grande, então decidimos fazer algo simples. Assim, se a gente não souber fazer algo, a gente não vai passar vergonha em público. Entre nós, a gente finge que não aconteceu [risos]. Eu acho que esse tipo de cinema é importante pra começar, pra aprender o que funciona ou não funciona.

Thereza: Mas em relação ao que você tinha falado, você tem razão, esse tipo de cinema tá enchendo mesmo.

Gregório: Mas tem uma diferença entre esses cineastas que trabalham sem diálogos. Você pega o Tarkovski ou Sokurov, que até tem bastante diálogo, mas parece que não, você tem uma estética mais sensorial. Eles trabalham com uma palheta de cor, com um tipo de luz diferente, parece uma coisa mais mística. É diferente do cinema asiático, que é mais cru, a câmera está lá e o cinema está acontecendo. Essas duas narrativas são muito diferentes. Apesar de ambas trabalharem com a ausência de diálogos e serem estendidas, os resultados simbólicos são dois extremos. Que é algo completamente diferente também dos momentos sem diálogos do Ozu e do Antonioni.

Cinética: E referências brasileiras?

Gregório: Olha, eu adoro arte concreta brasileira.

Thereza: Não, filmes [risos]!

Cinética: Olhando o panorama cinematográfico brasileiro hoje, vocês se identificam com algum cinema que está sendo feito? Porque está muito em evidência hoje um cinema colado na personagem, que parece não te interessar tanto.

Thereza: Eu acho que bom cineasta é bom cineasta. Por exemplo, o Karim Aïnouz é muito bom, embora não tenha nada a ver comigo, eu acho que eu não entendo nada do que ele faz e nem poderia fazer o que ele faz. Mas o Beto Brant, por exemplo, nos dois últimos filmes, me fez pensar “nossa, alguém fez alguma coisa diferente”. Porque esse negócio de ser brasileiro, de ter que fazer um determinado tipo de cinema, eu não me identifico, não faria, não consigo. Então essa coisa do clima bem frio do Beto Brant no Crime Delicado, as cores bem frias, pra mim é muito mais perto do que O Céu de Suely, por exemplo, que eu também acho maravilhoso, mas que é uma coisa completamente diferente, muito no personagem, no corpo. Mesmo Cidade Baixa, que é um filme que eu gosto, é muito diferente de mim.

Cinética: E vocês vêem espaço para o tipo de filme que vocês querem fazer?

Gregório: Eu acho que só tem um jeito de continuar fazendo esse tipo de filme, que é tendo projeção internacional. Só, não existe uma outra opção. Se os primeiros projetos engrenarem, tiverem algum êxito, vai abrir espaço pra fazer esse tipo de trabalho, senão é igual a filme do Bressane. E é bacana porque nosso filme tem tido uma resposta muito boa, tem circulado em vários festivais pelo mundo. Foi até estranho ter entrado em Cannes, porque achávamos que a carreira do filme já havia acabado. E de repente vem Cannes e a gente joga fora todo o currículo, porque o que importa agora é Cannes, o que falam é que entrou em Cannes e só. A gente fez um filme que a gente não sabia se ia ser assistido por alguma outra pessoa que não fosse nós, e de repente temos essa repercussão toda. A gente está muito orgulhoso. Até porque a Cinéfondation procura autores que eles querem acompanhar, que estão fazendo algo que lhes interesse.

Cinética: Como você falou, a partir do momento que teu filme entrou em Cannes e mesmo nesse circuito todo de festivais em que Saba passou, significa que esse projeto estético que vocês estão propondo tem uma recepção, tem uma demanda pra ele, tem um interesse nesse tipo de filme. Então até que ponto isso não é um risco de vocês acabarem se prendendo a essa proposta porque vocês já sabem que há uma demanda e que vocês terão uma certa visibilidade?

Gregório: Eu acho que todo cineasta bom faz o mesmo filme a vida inteira.

Thereza: Não, eu não concordo. Eu acho que quando a pessoa começa a se repetir é muito claro. Porque uma coisa é você ver um filme e reconhecer o cineasta nela, o que é ótimo. Outra é você ver um filme e dizer “eu já vi esse filme”, tá errado, eu acho. É até uma crítica a esses festivais, como eles procuram as coisas que são diferentes, como eles fazem um filme ir mais longe apenas porque não é uma coisa que está sendo feito comumente. Então você pensa o quanto eles realmente gostam do filme ou apreciam apenas o fato dele ser diferente. Porque às vezes você vê um filme que é mais “comum”, que trata de uma temática mais comum, que são ótimos, mas não fazem tanto sucesso.

Gregório: Saba foi um projeto muito despretensioso, era um exercício. Acho que o importante é estar dentro do teu desenvolvimento pessoal. Você tem que fazer o teu trabalho e depois ver a projeção no que dá. Calhou da gente ter uma projeção muito boa, mas se tivesse sido ruim a gente tinha feito o filme que queria, e é isso o que vale.

Cinética: É esse tipo de risco que eu coloco, porque esse tipo de despretensão que vocês tiveram, talvez vocês não tenham no próximo filme por causa de toda a expectativa que já se constrói.

Thereza: Eu costumo pensar que se a gente quisesse ter feito alguma coisa, a gente não teria conseguido nada. Você pode dizer que não seria afetado por esse tipo de coisa, mas é mentira. Você teve alguém falando bem do seu primeiro filme, você quer isso no segundo. A expectativa é sua também.

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