em processo
Filmar por necessidade
Conversa com Jonas Mekas
por Juliano Gomes

Há um estranhamento específico de conversar face a face com alguém que faz um cinema como o de Jonas Mekas. Antes dessa conversa rolar, em um banco no jardim interno do Museu Reina Sofia em Madri, eu já havia visto seu dois filhos nascerem e crescerem (incluindo o parto de um deles), seu casamento, seus primeiros dias em Nova Iorque no anos 40, seu reencontro com sua mãe depois de 27 anos, e por aí vai. Pensando em termos tradicionais, trata-se de alguém que "conheço", pois compartilhei, de alguma forma, alguns dos acontecimentos mais importantes de sua vida. Encontrar esse vivaz quase nonagenário (completa 90 anos em 2012) me parece também perceber em presença o abismo que separa o cinema da vida. Ao nosso redor, uma equipe de TV espanhola prepara uma entrevista cuja brecha permitiu que essa aqui se realizasse, e que lhe deu o tom um pouco mais apressado que o desejado. No simpático jardim do museu, um cenário muito justo por sinal, que remete diretamente às imagens dos parques e plantas que povoam a obra de Mekas, as pausas que precediam suas lúcidas e firmes respostas me jogavam para dentro de seus filmes enquanto era preciso pensar na próxima pergunta. Desse agradável curto-circuito resultou esse papo.

KMFComo você se sente em relação a este presente tão filmado, tão documentado, onde as câmeras estão tão presentes. Eu sinto que a relação do público com os seus filmes acaba mudando também a partir desta situação, onde essas imagens ocupam um lugar de destaque no cotidiano.

A única mudança é a da tecnologia, que muda sempre, como tudo. São mudanças normais. Primeiro filme, depois vídeo... É bastante normal. Tem que mudar. Se não mudar é que é chato. Nos anos 60, eram muito comuns filmagens caseiras. Em 1966 havia seis ou sete milhões de câmeras super 8 ou de 16mm nos EUA. Estavam fazendo filmes caseiros, em suas viagens, em suas festas. Esses filmes são feitos desde os anos 30. A diferença é que eles filmavam, assistiam uma vez, guardavam e não usavam de novo. Não começou nos anos 60. Já era feito há muito tempo.

Já com os Irmãos Lumière?

Não. Eles não estavam fazendo filmes caseiros. Eram muito precisos, orquestrados, concentrados e dirigidos para atingir o máximo naquele um minuto de rolo. Eles não são amadores.

É, mas eles filmam exteriores, há o vento, as folhas ao fundo...

Sim, mas eles escolheram o momento! Escolheram o momento. A hora exata, o dia... eles escolheram exatamente o momento, calcularam. Henri Langlois que me chamou atenção em relação a estes filmes e acho que ele estava certo. Só estou repetindo o que ele falou sobre os filmes dos Lumière.

Pensando desta maneira, é interessante que você dedique Walden a eles.

É porque eles filmam a vida real, e escolhem um momento. Na vida real não é assim, tão concentrado. Eles concentram. Eu faço o mesmo. Escolho momentos. De certa maneira estou falsificando a realidade.

Uma coisa que me impressiona muito nos seus filmes é o ritmo que você dá a eles...

É tudo montado na câmera, durante a filmagem. No material bruto. Você não consegue atingir aquilo com "edição". Se você não consegue ter isso durante o momento da filmagem você não vai conseguir ter isso na edição.

É uma forma de se colocar na filmagem...


Sim, de reagir ao momento exato com a câmera

KMFÉ algo que não se pode conseguir filmando em vídeo não?


Não... Porque não se pode fazer single-frames em vídeo. Só estas pequenas câmeras Bolex podiam fazer isso, de reagir ao momento com a câmera no instante em que acontece.

Essa técnica é muito importante nos seus diários em filme...


É como qualquer instrumento. Como um órgão de igreja e um saxofone. Em um órgão as notas são longas. Quanto maior o instrumento, menos se pode controlá-lo, acho. Se alguma coisa acontece e estou com a Bolex, eu posso pegar imediatamente. Com uma Mitchell ou outra câmera, demora segundos para começar a filmar. Com vídeo também não se pode pegar imediatamente. Não é imediato.

Uma coisa que realmente me envolve ao assistir os seus diários, e que dificilmente encontro em outro trabalho dessa natureza, é que ao mesmo tempo em que é tudo muito pessoal, é a sua vida particular, eu me projeto ali muito facilmente, naquelas pessoas, vejo a minha família...


Há uma carta que um jovem escritor escreveu para Dostoiévsky que dizia: "estou tentando ser muito universal, e acaba ficando tão parecido comigo, tão pessoal, não consigo ser como você ou Tolstói, Senhor Dostoiévsky". E ele respondeu: "para ser universal você tem que ser muito, mas muito pessoal, e é essa a coisa mais difícil". Foi muito difícil pra mim. Eu também fui pego pela onda do "documentário" nos anos 40 e 50. E levou pelo menos dez anos para eu achar minha própria maneira de fazer. Levou este tempo para que pudesse dominar esta câmera, pra que ela se tornasse uma extensão dos meus dedos, do meu corpo, de forma que não precise nem pensar para operá-la. É este tipo de estado que se precisa atingir. Como um músico de jazz, que leva muito tempo para descobrir a sua maneira de tocar seu instrumento, isso leva anos, em qualquer arte, na verdade. É preciso dominar seu instrumento como um músico de jazz.

Como foi a mudança do filme pro vídeo?


KMFEm Lost, Lost, Lost (foto) você pode ver a mudança na maneira de filmar. Na primeira parte, um estilo documental, ligado ao documentário daquela época, com planos bem compostos, luz equilibrada, com fotômetro. E depois uma forma bem mais solta, no material dos anos 60 e 70. Em 1989, quando as pessoas me perguntavam como eu usava a Bolex, me dei conta de que estava me repetindo um pouco na maneira de filmar, e vi que era hora de uma mudança. Foi aí que mudei para o vídeo. Eu usei cinco Bolex durante este período, e ainda as tenho. A principio, pensei: video é muito fácil de usar, não é como a Bolex... E descobri que não é assim tão fácil. E posso dizer que levei outros 10 anos para descobrir o que posso fazer com a câmera de vídeo. Não foi uma transição simples. Todo instrumento cria novas áreas de conteúdo. O que você faz com aquarela você não pode fazer com grafite e aí por diante.

Queria que você falasse um pouco do seu envolvimento com a crítica, já desde os anos 50 com a criação da Film Culture.


Naquela época não havia boas publicações de cinema nos EUA. Havia na França, a Cahiers, talvez a Positif. Na Inglaterra, a Sight and Sound. Nos EUA, só a Film Quarterly, que saía esporadicamente. Havia muitos jovens fazendo filmes, conversando, discutindo cinema com paixão naquele momento, trocando idéias, então, havia uma real necessidade de uma revista. E pensei que, se ninguém vai fazer, eu vou fazer uma. E fiz, e os filmes foram aparecendo. Havia várias exibições desses filmes novos por todo o pais e não havia nada escrito, refletindo sobre aquilo, ninguém estava escrevendo. Nasceu da necessidade, assim como a Filmmakers' Cooperative e o Anthology Film Archives. Tínhamos que mostrar nossos filmes, torná-los disponíveis para quem quisesse vê-los. Mas eles são frágeis, onde vamos guardá-los e conservá-los para que possam ser vistos daqui a trinta anos? Tudo que faço é por necessidade. Se não fizesse filmes, podiam me internar num manicômio.

Setembro de 2011

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