olho no olho - virtual Seis
perguntas para Apichatpong Weerasethakul por Felipe
Bragança Já
descrito como um mágico ou um hipnotizador, o maior nome do cinema tailandês hoje
é também o maior poeta do audiovisual surgido na primeira década do século XXI.
Com uma obra ao mesmo tempo misteriosa, enigmática e doce, Apichatpong Weerasethakul
(ou “Joe” como prefere ser chamado no Ocidente) começou a trabalhar na videoarte
e em vídeo-instalações na Tailândia, migrando para o cinema de longa-metragem
com o surpreendente Mysterious Object at Noon (2000). Com a exibição em
Cannes, dentro da mostra Un Certain Regard, de seu segundo longa, Blissfully
Yours (2002 - foto mais abaixo), Joe se colocou na linha de frente do cinema
contemporâneo – tanto que, dois anos depois, seu quarto longa, Tropical Malady
(2004), ganhou o Prêmio do Júri no mesmo Festival de Cannes. Inquieto, não
pára de realizar trabalhos em curta, média e longa-metragem, usando desde câmeras
de celular até as produções em 35mm ou para TV. Apresentada de forma bissexta
nos festivais por aqui, sua obra têm passado longe do circuito “comercial-de-arte”
brasileiro. Seu mais novo filme, o fantástico Síndromes e um Século, por
exemplo, só foi exibido no Brasil até o momento na Mostra de SP, em duas sessões
– mas, que quem testemunhou não esquece fácil. Por isso mesmo, neste momento de
rever as imagens de 2006, enviamos estas 6 perguntas por email, e “Joe” respondeu
com a maior gentileza. Cinética: Seus filmes tem apreensão
semelhante a uma peça musical, no sentido de uma imersão em que a imagem parece
ser um lugar antes a ser habitado do que observado. Queria saber como é o processo
de construção sonora de seus filmes e como esse processo se relaciona com o resultado
final das imagens, nessa constituição de um audiovisual cuja pulsão maior é o
encantamento físico do corpo. AW: O processo é contínuo.
É uma mistura de preparação, set e pós-produção em que eu trabalho muito próximo
do meu desenhista de som (sound designer). Gosto de tê-lo sempre no set
comigo, antes mesmo da edição de som e da mixagem porque é ali que eu começo a
mapear os sentidos dos sons e das imagens conjuntamente, em cada locação em que
eu chego para filmar. É um misto das sensações circunstanciais com algo que me
vem também da narrativa prevista – se a narrativa muda, a textura do som também
muda como um reflexo. Mas é claro que esses sons estão em grande parte na minha
cabeça e a realidade é sempre mais complexa e trabalhosa do que a primeira intenção
que se tem. Porque tudo depende também do dia de filmagem, do clima e do humor
dos atores, e todas essas variáveis. O que me interessa é que o som e a imagem
componham um todo em que mesmo a fala de meus personagens, a voz deles e os diálogos
escritos, estejam ali como componente musicais do ambiente sonoro e imagético. Cinética:
Vamos falar da alegria, e do sentido renovado de “feel-good” presente em
seus filmes, que aparecem quase como uma afronta diante de um certo sentido de
mal-estar e melancolia que se acomodou como regra geral de uma certa arte contemporânea.
Qual a busca e que tipo de afirmação estética você acredita ou busca com a o sentido
da alegria e do encantamento em seus filmes? AW:
Viver, respirar, é uma alegria. E nisso eu acredito. Eu tento que meu trabalho
reflita a forma como eu vivo e sinto a vida, ou seja: a forma de meu prazer se
relacionar com as imagens. Nem sempre é possível porque o cinema não é a vida,
e é cheio de pequenas complexidades técnicas. É por isso que de alguma forma eu
quero que meus filmes reflitam ao menos a “alegria de poder filmar e de estar
filmando”, como que em um olhar reverso para dentro dos filmes. É uma forma de
combinar e colocar em diálogo a minha vida sem filmes e a minha vida enquanto
eu filmo. É o mais próximo que eu posso chegar da verdade. Uma interação dupla
entre essas minhas duas formas de estar vivo, esse duplo. Cinética:
O sentido de fábula e imaginação estão presentes nos seus filmes de maneira muito
particular, porque dissociadas da idéia de uma sublimação ou de uma fuga do real.
A fabulação em seus filmes representa uma espécie de transmutação do real presente
e não uma negação. Queria que você comentasse esse aspecto. AW:
É a forma como eu procuro traçar e desenhar a memória e as lembranças que nos
compõem. São acumulações de fatos que se modificam em função do presente, em função
do ponto de vista em que se narra e que apontam para a imaginação. Essa é a questão
central. O fato de tantas coisas poderem viver dentro da cabeça de um individuo
é o que me interessa no final. Não creio que seja imaginação, exatamente. Acho
que é mesmo a forma como nós, humanos, existimos e funcionamos. É a realidade
que temos em nós. Cinética: Sobre as formas de produção
e cooperação com seus parceiros da Kick the Machine (sua produtora cujos sócios
trabalham em funções técnicas em seus filmes), como é o tipo de set e interação
de equipe que te interessa que vocês procuram construir – e como isso se exprime
nos filmes? AW: Acho que, no fundo, fazer um filme
é sempre algo muito similar em várias partes do mundo. Mesmo em Hollywood eu acredito
que cada produção é a criação de uma espécie de família, de coletivismo momentâneo.
Existem muitas formas e fontes de verba para se fazer um filme – isso não importa
quando a questão principal é manter a magia das pessoas que o fazem. Nós, minha
equipe, estamos de alguma forma tentando sempre absorver o que está a nosso redor,
perto de nós, aprendendo de todas as fontes possíveis. A Tailândia tem uma longa
e vasta cultura baseada no sentido da imitação, da mímese e da simulação – esse
aspecto nos interessa. Então o que nós fazemos é tentar que nossa forma de filmar
reflita a forma como tentamos interagir entre nós, entre as pessoas da equipe
– no fundo, no fundo, o que nós queremos é que os filmes reflitam a nossa simulação,
a forma do nosso “teatro” de estarmos fazendo filmes... Isso é central para nós.
Cinética: Seu começo no audiovisual foi na videoarte. Queria
que você comentasse essa transição para o cinema de longa-metragem, de que forma
suas influências das artes plásticas e da videoarte estão na sua forma de ver
o cinema tailandês hoje. Existem realizadores locais que te interessam em especial
e que são menos conhecidos no Ocidente? Você se sente parte de uma geração? AW:
Descobri que fazer videoarte ou curtas é a mesma coisa que fazer um longa-metragem
– para mim pelo menos. Mesmo que a forma de pensar o processo de feitura e sua
representação sejam diferentes, no fundo são a mesma coisa: reflexos de como vemos
a vida através deles. Então eu não me sinto diferente agora do que quando eu comecei.
Sobre outros realizadores tailandeses e com o público de filmes tailandeses por
aqui: eu nunca tenho certeza exatamente se eu estou entendendo o que eles estão
fazendo e prefiro não falar muito... Às vezes, me parece que os filmes tailandeses
são muito abstratos, fora da vida, dissociados das coisas a seu redor. Uma tradição
de escapismo em que a realidade é ignorada como objeto de interesse. Por isso,
eu me sinto mais confortável e muito interessado ao olhar o trabalho de jovens
realizadores de vídeo como Thunska Pansittivorakul ou Nitipong Thintubthai, cujos
trabalhos falam sobre objetos do cotidiano deles, como seus próprios ambientes
de vida e sua sexualidade. Isso me interessa muito.
Cinética: Para terminar, uma pergunta de pura curiosidade: fale um pouco
sobre seu próximo filme, UTOPIA. O release soa como uma ficção científica pós-apocalíptica.
O que é que você está vislumbrando dessa vez? AW: Antes
de qualquer coisa: obrigado pelas perguntas. Um grande 2007 para vocês. Sobre
o UTOPIA? Olha, posso dizer que será, literalmente, meu filme utopista!! Está
constantemente evoluindo na minha cabeça então eu não tenho certeza exatamente
ainda se consigo explicá-lo agora. Basicamente, eu quero desmembrar e embarcar
na idéia utópica da Civilização Ocidental e falar dela a partir dessa premissa.
Mas ainda não sei ao certo. Espero que esse filme se realize nos próximos dez
anos, pelo menos! Entrevista
realizada em Dezembro de 2006.
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