olho no olho - virtual Sentimento
do real, imaginação da história: seis perguntas para
Jia Zhang-ke por Felipe Bragança
Jia
Zhang-ke é hoje o maior nome do novo cinema chinês: um grande, e ainda jovem,
construtor de espaços e dinâmicas-de-cena, em cujo cinema se insere uma sensação
renovada de verdade e de tempo cinematográfico. Tátil, dona de peso e volume,
sua imagética se afirma como acúmulo da história e do presente, onde tramas de
um país em choque são também transformadas em uma sensação de reencontro com o
real. Um realismo de linguagem, de ficção do real como desejo de reflexão e encontro
com o que se dá-em-ato no mundo, hoje. Cinema não se traduz
– a gente ocupa espaços entre-imagens para pensar. Envio perguntas em inglês,
pensadas em português, para serem então traduzidas e respondidas em mandarim,
traduzidas de novo para o inglês, re-traduzidas para o português... 1.
Primeiro de tudo, obrigado por responder as perguntas por e-mail. Queria começar
pela gênese, pelo antes do set. Fale um pouco da relação da sua dramaturgia e
construção de narrativa no desejo de uma imersão em espaços, localidades, personagens
historicamente localizados. Queria que você falasse da forma como você delineia
seus personagens em seus a prioris, como se articulam no processo a construção
do espaço a ser “visitado” pelo filme e os personagens que vão advir dele. O quê
vem antes: personagens e/ou espaços? J.Z.: Eu cada vez
mais me acostumo a pensar meus personagens através e nos espaços em que eles vão
atuar. Me interessa pensar como as ações humanas todas ficam gravadas, lembradas
pelos espaços por onde passam. Esse sentido de atmosfera a ser ocupada e antes
já ocupada é que me leva a imaginar o drama de um filme. Como uma arte da ficção,
um filme tenta apresentar a realidade e, ao contrário do que se poderia pensar,
apresentar a realidade é um ato de imaginação. A realidade não pode causar diretamente
o sentimento de realidade. O que um filme meu tenta fazer é não tentar achar a
realidade como dado, mas o sentimento dela através dos personagens que nos levam
a conhecê-la. 2. Pensando, então, a realidade
como um ato de imaginação, queria que você comentasse o papel e a articulação
entre a cultura pop-industrial contemporânea e as tradições gráficas e narrativas
chineses que parecem permear a criação de seus filmes. Do detalhe da camisa em
chamas do menino de Prazeres Desconhecidos ao macro-cenário do “parque
de imitações” de O Mundo, vemos várias formas de representação desse diálogo
– tanto como transição cultural (Plataforma) como quanto reprodução (O
Mundo), quanto como subtração (Still Life). Queria que você comentasse
essas relações do ponto de vista temático e estrutural dos seus filmes. J.Z:
Essas relações estão no centro do meu interesse. Tento traçar um caminho em meus
filmes que segue o seguinte raciocínio: somente após a Revolução Cultural, já
em meados do século XX, a sociedade chinesa entrou em contato com o universo pop
e desenvolveu o que se poderia chamar de uma cultura pop local. Depois de 30 anos
desse cultivo de cultura pop, já no final de década de 70, os chineses já haviam
modificado bastante seu sentido de visualidade e sonoridade, ampliando um processo
que vem até os dias de hoje. Meu primeiro filme, Artisan Pickpocket (1997),
mesmo antes dos filmes que você citou, procurava exatamente utilizar ao máximo
o diálogo com esse universo pop internacional, em especial o musical, como forma
de levar a audiência do filme a refletir sobre o momento que vivíamos (em meados
dos anos 90): um sentimento de insegurança cultural, de perda de referências,
que se intensificava na China através da afirmação das individualidades advinda
do fortalecimento da dinâmica capitalista em nossa cultura. De outra forma, quase
dez anos depois, em O Mundo (acima), o que ainda tento fazer é desenvolver
algumas das minhas preocupações neste tema: o fato de que o desenvolvimento capitalista
da China hoje é uma forma de cópia simplificada e acelerada do Ocidente, como
uma substituição da história. Ao mesmo tempo em que espaços e ações de tornam
tão abertas e libertárias, a China hoje começa a aparecer aprisionada justamente
nesse “mundo” amplo que tenta espelhar. Meu cinema tem, basicamente se construído
sobre essas minhas preocupações e das nuances que percebo nelas. 3.
Vamos então tentar costurar essas duas idéias – a do sentido de observação da
realidade e o da crítica histórica. Queria que você falasse das suas estratégias
de representação que tem, de diferentes maneiras, procurado combinar um sentido
de topografia gestual com formas de derivação gráfica contemporânea. Como você
pensa essa articulação entre a entrega à navegação da imagem e as proposições/intervenções
poéticas e fantásticas presentes em seus dois últimos filmes (O Mundo e
Still Life)? J.
Z.: Não me interessa a contemplação como gesto final. Alguns dos sentidos de realidade
não podem ser expressados pela mera observação do real. Em muitos momentos, a
intervenção “surrealista” é muito mais verdadeira para essa expressão do mundo.
Em Still Life, uma cidade de 2600 anos (e que tinha 1 milhão de habitantes)
foi totalmente banida, acabada em poucos anos. Essa velocidade com que as coisas
acontecem hoje na China parecem ultrapassar a capacidade dos sentidos realistas
de apreensão da vida e de representação cinematográfica. Daí, pensemos, a “decolagem”
de um edifício inteiro em computação gráfica ou a presença de um disco voador
podem indicar ou apresentar de forma muito mais rica o sentimento daquele espaço.
De forma distinta, mas também partindo do mesmo sentido de verdade como afirmação
de um sentimento, em O Mundo eu optei pela utilização de inserts
de animação em flash (foto acima) por entender que ali ela revelava um
olhar para um novo espaço de existência que foi trazido pelas redes digitais de
informação. É um espaço virtual, mas um espaço virtual que realmente existe e
por isso, é parte integrante do mundo real – ainda que como imitação do sonho.
Portanto, são dois caminhos diferentes de se utilizar essas intervenções gráficas
de que você fala. Cada qual pensando uma forma de discurso diferente que dialoga
com as imagens de observação cotidiana. Ambas me interessam. Ambas enriquecem
o sentido de imersão que me interessa. 4. Pensando, então,
esse seu desejo de imersão e crítica dos espaços, queria que você falasse dos
formatos de set e equipe que você tem utilizado desde seus primeiros filmes, como
você procura construir sua equipe de parceiros para tatear esse seu olhar de cinema,
renovado, jovem, desbravador dentro do cenário do audiovisual chinês e na sua
circulação por cenários, formas de interpretação e encenação? J.Z:
Quando eu filmei Plataforma, praticamente toda minha equipe tinha menos
de 30 anos. Queríamos conseguir fugir das regras da criação industrial de imagens
e encontrar formatos de criação que dessem mais vitalidade a nosso cinema. Um
modelo de produção define a temperatura de um filme! A jornada dos personagens
do filme foi também vivida pela nossa equipe – o que fazia com que o próprio deslocamento
para os sets funcionasse como um acúmulo de memórias para a realização. Eu cheguei
de fato a transformar situações que vivemos nas viagens em situações de filme,
em plots novos para o filme. Apesar de ser um filme histórico, queríamos
conseguir que Plataforma tivesse o sangue quente de um filme sobre o presente.
Dessa forma, o que tentamos fazer foi representar a história como fragmentos presentes
de memórias afetivas nossas – não reproduzindo a história, mas criando pequenas
situações históricas, como esquetes através da memória. Essa narrativa fragmentada
nos deu liberdade para procurar esse novo modelo de filmagem e set. Hoje, tenho
certeza: para se criar uma nova forma de cinema é preciso encontrar novas formas
de produção. Assim, tenho procurado seguir três idéias básicas: 1) equipes pequenas
que me permitam uma maior flexibilidade de organização e improviso; 2) atores
não-profissionais ou de formação não tradicional que me permitam uma maior proximidade
com suas vidas e uma mistura mais fácil com personagens reais; 3) o uso de tecnologia
digital para tornar a produção mais leve e deixar mais possibilidades de manipulação
e acertos fotográficos para a pós-produção, fazendo com que o set se torne mais
livre e, especialmente, dinâmico. 5. Pensando nessa vontade
de juventude e de reformas nos modelos de produção, queria que você falasse sobre
a forma como você se vê inserido no universo cultural chinês hoje. Que outros
cineastas, artistas plásticos e pensadores da cultura lhe parecem mais caros dentro
dessa perspectiva, digamos, “geracional” da qual você seria um dos expoentes mais
reconhecidos? Você se sente parte de uma movimentação cultural? J.Z:
Eu tento manter contato com alguns artistas contemporâneos como forma de me manter
interagindo com a minha geração na China: em Plataforma eu tive a participação
de uma série de artistas performáticos, em O Mundo eu colaborei com o animador
de flash Wang Bo; em Dong em me debrucei sobre a obra do renomado pintor
Liu Xiao Dong, assim como a trilha sonora de meus dois últimos filmes foram realizadas
pelo jovem e elogiado compositor taiwanês Lim Giong. O que eu procuro fazer é
pensar o cinema chinês como parte de um universo que é composto pela realidade
chinesa e por suas diferentes formas de arte. Não gosto do isolamento do cinema
como arte industrial, gosto do cinema como forma de arte moderna, como arte da
mistura. O cinema precisa olhar para as outras artes como forma de enriquecer
sua forma de olhar o mundo e as relações humanas. Infelizmente, a maioria dos
filmes que vejo, na China e fora dela, continua repetindo certas formas narrativas
e de representação de um sentimento humano que era genuíno na década de 30 do
século passado! A grande questão do cinema é a procura do tempo presente. Então,
o que se deve fazer, o que eu procuro fazer, é, através desse contato com outros
artistas e outras formas de expressão artística, influenciar de maneira
inovadora os próprios modelos da indústria de cinema hoje. Em especial, da chinesa. 6.
Fica claro agora, pra mim, que 6 perguntas não eram suficientes para tantas questões...
Mas vamos tentar terminar por aqui como combinado. Queria saber, rapidamente,
se você podia nos contar um pouco sobre seu novo filme, Tattoo Age (adaptado
de um romance histórico de Sue Tong)? Sobre o que é essa nova empreitada? Ou melhor:
“onde” e “quando” ele é? J.Z: Tattoo
Age narra a história de jovens gângsters que viveram durante a Revolução Cultural
chinesa. Enquanto o país estava sob o jugo da centralização cultural, alguns adolescentes
formavam sua própria associação folclória-cultural. É na verdade uma história
sobre a autoridade. Para mim, a Revolução Cultural foi um produto de conflitos
de autoridade e seus desafios. O filme narra a história de um menino de 14 anos
que, de uma hora para outra, se vê no poder dentro da sua “comunidade”... O que
acontece a partir daí?... Esse é o filme. É isso. Até breve. Entrevista
realizada em Junho de 2007.
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