olho no olho
Cinema como música
Uma conversa com Mahamat-Saleh
Haroun, diretor de Um Homem que Grita
por Juliano Gomes
Não
é comum termos a oportunidade de conversar pessoalmente com
um cineasta estrangeiro quando do lançamento de seu filme
no Brasil - especialmente não com o diretor de um filme "pequeno"
como este Um Homem que Grita, lançado aos pouquinhos
e em salas selecionadas. Porém, menos comum ainda é
fazer filmes no Chade e levá-los a lugares como a competição
do Festival de Cannes, como foi o caso deste quinto longa de Mahamat-Saleh
Haroun. O cineasta veio ao Brasil no mês passado, e o encontramos
no Rio de Janeiro durante o IV Encontro de Cinema Negro para uma
conversa sobre o seu primeiro trabalho a ser lançado nos
cinemas daqui.
Cinética: Algo que me
impressiona muito em
Um Homem que Grita é que, apesar de haver
imagens muito fortes e as ações muito dramáticas
no filme, ele estabelece esse ritmo calmo, menor. Há uma
calma que o filme transmite, sempre. Essa foi sua intenção
desde o começo do projeto, ou isso foi se estabelecendo
mais concretamente durante a filmagem ou a edição.
Enfim, gostaria que falasse um pouco disso, sobre o quanto isso
é importante pra você no filme
Haroun: A maior violência, para mim, se dá
quando num ambiente de calmaria algo explode, quando você não está esperando. Eu
queria que fosse um pouco como o movimento da água, de um rio, algo que fosse
vindo aos poucos. Como, por exemplo, uma água entrando na sua casa, no seu
apartamento. Era muito importante pra mim não ser
violento com o espectador, não violentá-lo. Me interessa muito mais trabalhar dessa maneira, me parece mais efetivo do que trabalhar com
a violência como espetáculo, o que eu não queria fazer. Enfim, foi realmente
uma posição minha em relação a mostrar isso, desde o começo do projeto e
durante também.
Cinética: Interessante
você ter trazido esta imagem da água, porque ela é um elemento central no filme...
Haroun:
Sem dúvida. A água é vida, mas também
morte. E este cara, Adam (Youssouf Djaoro), no filme, é de um grupo étnico que pertence
à água, que acredita na água como seu principal
elemento, então, ela é realmente algo sagrado pra
eles. Eles colocam os mortos na água. Eu queria falar de
algo que é muito "cultural", muito local, mas
também que, mesmo que você não conheça
esta etnia e não saiba destas informações,
isto não seja um problema para entender o filme. Quis poder
trabalhar com diferentes níveis, e você, como brasileiro,
pode perceber que esse homem não quis enterrar o filho.
Não quis que ele fosse particularmente ligado a nenhuma
religião muito específica. Há ali alguém
que quer fazer aquilo da sua própria maneira. A piscina
é um modo moderno de ter água. E aquilo se torna
como uma cena mesmo, com personagens e movimento. Ele, Adam, é
como que o diretor da cena, como um diretor de cinema, ele "dirige"
aquela porção de água. Quando ele é
despedido, é o começo da frustração
dele.
Cinética: Não
tinha pensado no personagem dele dessa maneira, e isso me faz pensar no teu
filme Bye Bye Africa em que você dirige e atua, fazendo o papel de si
mesmo, e essa imagem do diretor como alguém que faz água correr, que a faz
seguir seu curso próprio... Todo o filme tem um pouco esse ritmo de água
correndo, fazendo curvas, como um rio que flui silenciosamente...
Haroun: Sim, é bastante por aí... mas também há as cachoeiras, e elas são violentas.
Eu gosto muito da
água, não sei por quê. Talvez porque eu seja de um país muito seco e desértico,
então água é muito importante. É o espaço onde as pessoas compartilham muitas
coisas, pois não há muitos lugares onde há água, então, é uma espécie de ponto
de encontro das pessoas. Eu não sei bem, mas acho que o nordeste aqui no Brasil
é meio parecido, não?
Cinética: Sim, há
regiões bem secas por lá, onde há uma relação parecida com água...
Haroun: Nesses lugares você vê todas as pessoas
juntas, também os animais, indo atrás da água. E às vezes as pessoas brigam por
ela. Enfim, é um poder...
Cinética: É político.
Haroun: Sim, político. Sem dúvida...
Cinética: ... e é
o lugar onde tudo, de alguma forma, se iguala, tanto na necessidade dela quanto
na nossa constituição fisiológica, já que somos feitos de água...
Haroun:
Sim, e no mar, na água, está um território
de ninguém, indiferente. Qualquer um pode vir, pode chegar,
ninguém é dono daquilo. Enfim, eu queria falar desse
lugar onde qualquer um pode vir, onde todos podem se encontrar,
onde há esses corpos e onde são todos iguais. E
há também uma outra água, a guerra, também
caminhando na sua velocidade própria, que está no
filme principalmente pelos sons. O que eu queria mostrar era como
a guerra civil, assim como a água, pode adentrar o espaço
privado. Como quando você está na sua casa, dividindo
uma melancia com a sua esposa, e os sons e as imagens da TV invadem
a cena, e há essa convivência de vibrações
no mesmo espaço.
Cinética: O filme
tem um trabalho muito interessante de som, especialmente do espaço off, há sempre
algo que não vemos mas ouvimos, e vamos sentindo que alguma coisa está cada vez
mais próxima, e não sabemos bem o quê. Parece que há algo mais, algo além. Fico
curioso pra saber como isso foi trabalhado e pensado.
Haroun: Sim porque
afinal um plano é como uma janela, você vê
uma parte, mas ele está sempre escondendo coisas. Eu não
quero passar a impressão para as pessoas que o que elas
estão vendo é toda a realidade. Você pode
ter um acidente, você ouve um barulho muito alto, mas você
não vê o acidente. Eu acho que é muito importante
esta parte "de fora" do enquadramento, pra que saiba
que está vendo somente uma parte da história. Eu
escrevi uma espécie de roteiro de som, para o som do fora-de-campo,
com indicações para meu editor, uma espécie
de segundo roteiro do filme. Eu gosto que as cenas tenham como
que uma parte de dentro e uma parte de fora.
Cinética: Provavelmente
você já deve ter respondido muito em outras entrevistas sobre a relação entre a
primeira parte de seu filme e A Última
Gargalhada do Murnau, e, pensando em outros
filmes que vi refletidos ali no Um Homem
que Grita, me veio também Paisá,
do Rossellini, a partir da imagem do cadáver na água...
Haroun: Essa última
imagem, do rio, eu queria que ela evocasse algo mais... metafísico.
Como que se ele deixasse de ser um corpo, e fosse se misturando
naquelas cores... Rossellini é um dos meus mestres, não
sei se pensei nele para rodar esta cena, mas estes filmes se tornam
parte da gente, né? Estava ali em algum lugar. Alguém
também já me falou que é parecido com Dead
Man do Jim Jarmusch, enfim, eu adoro os filmes dele também,
então é algo que está ali, misturado
também. Em relação ao Murnau, eu comecei
a escrever o roteiro e depois fui me lembrar do filme, e então
o assisti várias vezes. Mas Murnau está mais próximo
de uma estética expressionista, eu não quis fazer
exatamente isso. E no filme do Murnau, o uniforme é um
símbolo de poder, e aqui é um pouco como o inverso,
é o símbolo de uma frustração, no
sentido que ele deixa de se diferenciar dos outros, ao deixar
a piscina. Ninguém quer ser anônimo. O que acontece
é que Adam se torna um pouco invisível naquele uniforme.
E eu acho que uma das maiores violências que se pode cometer,
em qualquer lugar, é fazer com que as pessoas se sintam
invisíveis. Essa é a violência "suave",
implícita, silenciosa. Eu acho que maior violência
está aí: mais do que quando você é
despedido, quando você se torna invisível. Eu acho
que essa violência é mais forte, e quis mostrar um
pouco como essa violência acontece.
Cinética: O
apelido de Adam, "campeão", acaba gerando várias
situações de humor, mesmo que tragicamente, no filme.
Gostaria que você comentasse um pouco a presença
do humor no filme, porque ele me parece bastante importante, na
personagem da vizinha por exemplo...
Haroun: Mesmo não sendo uma comédia me
interessava que houvesse humor no filme, pois ele coloca uma distância em
relação aos acontecimentos. A situação é trágica, mas a vida caminha, do mesmo
jeito. A entrada do humor na cena é importante por conta disso. A vizinha,
aliás, não estava no roteiro, nós a descobrimos na
filmagem. Em uma das cenas vi aquela mulher olhando para a gente fascinada com
tudo aquilo, com uma equipe de cinema. Ela nunca havia atuado. Eu pensei que
podíamos tentar algo com ela e acabou indo muito bem.
Cinética: O quanto
de improviso há no filme, em relação aos atores e às locações? Porque há
claramente uma decupagem muito consciente do espaço e da luz dos ambientes, com
alguns planos muito calculados e ao mesmo tempo uma espontaneidade um pouco
documental da atuação que me deixa na dúvida o quanto tudo foi pré planejado.
Haroun:
Há uma cena na janela (onde vemos pelo ponto de vista de
Adam, através da persiana, seu filho sendo levado para
guerra), que não estava dessa maneira no roteiro. Mas eu
pensei que aquilo não estava do jeito certo no roteiro,
cheguei no set pensando que aquilo não podia ser
filmado de uma maneira simplista, mostrando o pai, a mãe
e o filho... Queríamos algo que "bloqueasse"
Adam, e pensei então
em filmar através da janela. E, em relação
à luz, a gente tenta sempre usar luz natural, naturalista,
eu não gosto muito do sentimento de uma luz artificial.
Meu fotógrafo (Laurent Brunet) é um grande profissional,
ganhou o César ano passado, e ele também gosta de
tentar iluminar as cenas dessa maneira. Primeiro, pensamos no
sentido e depois a partir do que os espaços nos oferecem
pensamos o quadro e a luz a partir desse sentido. Acho que não
sou o único a fazer desta maneira, né? Mas é
assim que acho as imagens.
Cinética: E como
foi trabalhar com um formato cinemascope pela
primeira vez, como fica esta relação com os espaços?
Haroun: No começo era terrível. Mas aos poucos você
se acostuma. É uma visão muito pouco natural.
Cinética: E a
cena da melancia? Ela me parece que sintetiza e anuncia a forma como o filme se
estrutura estabelecendo essa relação com o fora, com uma ameaça que vem de
fora, e também um grande afeto e intimidade no espaço da casa.
Haroun: No Chade é muito difícil mostrar pessoas
em situações de intimidade, fazendo amor, por questões religiosas.
Cinética: Mas essa
é uma cena muito erótica...
Haroun: Sim, sim... Pra mim essa cena é central
porque ali nos vemos como o espaço privado é invadido pela imagem da guerra.
Você estabelece essa conexão desde o início. E você vê as imagens do
noticiário, documentais, de gente morta de verdade. Mas eu não queria fazer O Resgate do Soldado Ryan, então peguei
alguns arquivos da TV do Chade. Mas é como aqui no Brasil: também há a
violência e as pessoas não param de viver; mesmo que haja risco, elas saem, é
um modo de sobrevivência e também de resistência. Nós temos a guerra civil, mas
as pessoas estão tentando sobreviver. É um instinto de sobrevivência
Cinética: Há
muito pouca música no filme, mas quando ela vem é muito forte. Na cena da fita,
por exemplo, é quase uma explosão, uma implosão. Qual a importância do uso da
música naquela cena?
Haroun: A música
é um artifício. Eu prefiro usar a música
da cena mesmo, diegética, até por respeito à
própria música. Acho que silêncio é
muito importante. Quanto menos você põe música
no filme mais forte ela fica quando aparece. E esta cena nós
filmamos só uma vez, um só take,
e quando ela começou a cantar ninguém sabia, era
um segredo meu e dela. Filmamos a cena, e quando eu disse "corta"
vi que todos os técnicos estavam muito emocionados, e então
percebi que era aquilo mesmo, que já estava do jeito que
eu queria. E ela não é atriz, é cantora,
e muito jovem, tem dezessete anos, então ali percebi que
consegui uma emoção muito autêntica.
Cinética: Fiquei
curioso se há muitos não atores no filme.
Haroun: Na maioria, são atores profissionais mesmo
Cinética: Do
Chade?
Haroun: Não, de Paris mesmo, são africanos que
moram em Paris, com exceção de Adam, que mora no Chade e não é profissional. E
fiquei muito orgulhoso quando em Cannes muitos jornalistas cogitavam dar o
prêmio de interpretação para ele, diziam que o prêmio estava entre ele e Javier Bardem. Era a primeira vez que um ator africano tinha
uma possibilidade real de ganhar um prêmio dessa importância internacional. Mas
ele ganhou um prêmio há três semanas, no festival de Chicago, competindo com
outros dezenove filmes, com atores americanos... Mas a verdade do trabalho dele
vem de um amor genuíno ao cinema, ele estava entregue ali, com amor, e isso deu
a qualidade ao trabalho, não por ser uma estrela, mas pelo amor. É como quando
você ama uma mulher, você quer ter um filho, morar junto, é como ficar louco
por alguém, eu acho que o cinema é muito assim. Um pouco como a música também,
e eu tento editar como uma peça musical, com silêncios, e às vezes as pessoas falam
que o ritmo está muito lento, mas acho que elas nunca falam isso da música
clássica por exemplo. Cada peça musical, cada filme, tem seu próprio ritmo.
Dezembro de 2010 editoria@revistacinetica.com.br |