em primeira pessoa Domingo
nas entranhas do BBB por Eduardo Valente
No final de março, passei um
domingo acompanhando um dia de trabalho da equipe do Big Brother Brasil
– do começo dos trabalhos de idealização da edição do dia à transmissão ao vivo
de um programa particularmente “movimentado” (no qual houve uma eliminação, uma
nova eleição de “líder” e votação para um paredão – o último antes dos finalistas).
Cabe anotar, antes de qualquer coisa, que esta experiência aconteceu por um convite
pessoal de Pedro Bial, após a leitura do artigo em
que tratei da minha experiência como espectador do programa, e que esta visita
se deu com o compromisso de não publicar nada enquanto o programa estivesse no
ar ou logo após o seu final – não porque houvesse algum grande segredo em jogo,
mas porque o programa sempre evitou tornar seus bastidores um “evento midiático”. Chegando
à central de produção do Big Brother Brasil, localizada numa casa contígua
à que habitam os participantes do programa, a primeira impressão é que todos os
(muitos) profissionais envolvidos na realização do trabalho estão tão confinados
quanto os “brothers”. Claro, com a diferença de que eles estão servindo em “regime
aberto”, divididos em turnos de oito horas – mas, ainda assim, a sensação nítida
é que todos estão ali “tirando um tempo”. Sejam os controladores da Unidade Móvel
(UM para os íntimos – eu, certamente, não era um deles), que posicionam as câmeras
e filtram as primeiras imagens em meio a um frio glacial (necessário para o funcionamento
dos equipamentos); sejam os editores (ou melhor, editoras – já que na imensa maioria
são mulheres, uma observação que poderia render um raciocínio sobre a necessidade
de um olhar femininamente sensível para a “brutalidade” daquele material), que
labutam numa verdadeira linha de produção de computadores tentando começar a dar
sentido ao material bruto que recebem; sejam principalmente os seis câmeras que
“habitam” o camera cross, labirinto de corredores escuros que circundam
toda a casa e de onde, por trás de espelhos, “roubam” as imagens dos participantes. Curiosamente,
nesta “casa de detenção”, há duas diferenças marcantes para as prisões tradicionais:
a primeira é que o diretor da instituição também é um confinado – talvez até o
maior deles, já que o “big boss” Boninho é praticamente “assombrado” pelo programa
ao longo dos três meses da sua realização (a ponto de seu aparelho de celular
ter conexão com o sistema de som da casa, para que ele possa fazer algum comunicado
urgente da sua própria cama, se for necessário). A segunda diferença, ainda mais
notável, é que estes “detentos” são todos voluntários – e mais, são voluntários
felizes. A equipe principal do programa (o finalizador, que funciona como uma
espécie de redator-chefe; os produtores principais, os diretores de corte, etc)
quase toda já acompanha Boninho há algumas edições, e divide com ele uma alegre
obsessão com o programa. Gostam do que fazem, de verdade (embora, depois de dois
meses de trabalho duro, não sem alguma exasperação – como a ouvida de um trabalhador
da produção no momento da eliminação de um participante: “menos um!”). De
fato, ao longo do dia que passei por lá pouco vi de profissionais estressados
e desestimulados, o que é uma constante imagem que temos dos trabalhos “industriais”
da TV. A impressão que fica é que o programa, por conta de seu formato, tem uma
dinâmica muito curiosa onde todos (do câmera ao finalizador – pontas extremas
do processo) têm uma mão no produto que chegará ao lar do espectador. Como não
há roteiro, e ele se escreve a cada minuto, qualquer decisão tomada por qualquer
um deles será determinante na história que será contada pelo BBB: focar ou não
este personagem, anotar ou não a importância de um momento no software
de arquivo e acesso ao material filmado, editar ou não um trecho de conversa,
sonorizar ou não um espaço – além de, claro, pensar como fazer cada uma dessas
coisas. Ao longo da cadeia produtiva, a autoria parece se espalhar por todos.
Tudo isso bate com a observação feita pela “face pública”
do programa, Pedro Bial (que, aliás, também um apaixonado pelo projeto, faz muito
mais do que apenas apresentar o programa: passa os dias de entrada ao vivo na
casa de produção acompanhando as diferentes fases e pensando o andamento da narrativa,
assiste horas da casa em pay-per-view quando está “de folga”): segundo
Bial, a TV se diferenciaria do cinema exatamente por esta “autoria fluida”. Tendo
ele mesmo tido a experiência de dirigir um longa-metragem de cinema, esta “arte
do diretor”, Bial diz achar refrescante esta produção “sem autor” que caracteriza
a TV nos seus produtos mais industriais – ainda mais no BBB, que não tem nem mesmo
um “autor” no sentido da telenovela. Uma coisa que me impressionou
no BBB foi justamente a ausência de grandes “reuniões de roteiro”, que eu imaginava
acontecerem frequentemente entre os principais “cabeças” do programa: toda a narrativa
se articula de maneira muito mais orgânica do que pensada. De fato, a sensação
que fica após um dia acompanhando os trabalhos é que no Big Brother Brasil o verdadeiro
autor é uma máquina – não no sentido de um frio equipamento sem cérebro, mas sim
um coletivo de pessoas que funciona com tal “azeitamento” que parece um grande
organismo vivo. Claro, como no nosso corpo, este organismo
tem um cérebro, e nisso não resta dúvida que estamos falando de Boninho. Mas até
este fato é significativo, pois, como cérebro, Boninho é profissional de uma linhagem
claramente anti-intelectual: aos conceitos, prefere impor os sentidos aguçados
da experiência, trabalhando de maneira quase instintiva. Exerce inconfundível
liderança dentro da casa (e, tendo sua sala pessoal um pouco isolada do resto
– embora eu mesmo não tenha visto ele passar um só minuto lá no dia que passei
–, os paralelos com o “líder” no BBB são curiosos), mas ao mesmo tempo não parece
tanto um mastermind daquele jogo, e sim muito mais um habilíssimo gerente
– de pessoal, de conteúdo, de logística. Só nos damos conta do “domínio” que ele
exerce quando o vemos sentado na sala de comando do programa ao vivo, e aí sim
temos a impressão de um “Big Brother”, em frente a várias telas. Mas, ainda assim,
ele menos “controla” do que parece dirigir uma orquestra, cortando de dentro da
casa para o estúdio, deste para o VT, etc, tudo com a tranqüilidade e o ritmo
de quem “nasceu fazendo aquilo”. E ali, realmente, tanto melhor que se pense pouco
e se “sinta” muito: um raciocínio mais longo é um equívoco no ar, um vacilo num
botão é um erro de transmissão. É importante anotar que
estamos falando de uma visita na última semana de uma edição do Big Brother,
o que faz toda a diferença em relação ao começo: temos uma casa mais vazia (com
cinco participantes ao invés dos 16 iniciais), portanto mais fácil de monitorar;
temos uma equipe com mais de 70 dias de trabalho, portanto já bastante segura
de seu funcionamento interno; e, acima de tudo, temos uma “narrativa” já bastante
desenvolvida nos papéis que cada personagem joga, portanto mais simples de “roteirizar”
e “editar” (embora, neste dia em especial, eu tenha podido conferir como os “presos
de dentro” ainda podem surpreender os “de fora”: quando Bruna escolheu salvar
Alemão ao invés de Carol na prova do líder, ou quando Analy indicou Carol e não
Bruna para ser sua oponente no penúltimo paredão do programa, as expressões de
surpresa na equipe de produção eram tão claras quanto a minha). Uma visita na
primeira semana de trabalho certamente mostraria toda uma outra dinâmica interna
– nas duas casas, a de dentro e a de fora. Bem-vindo à
casa de bonecasSe mergulhar na rotina da equipe de produção
é desvendar uma série de realidades “ocultas” que parecem bem mais simples do
que pareciam de fora, ter o acesso “real” ao mundo interno da casa do BBB é uma
experiência no mínimo desestabilizadora. A virtualidade daqueles personagens,
que entram, todas as noites durante 3 meses, pela tela da nossa TV, ganha uma
dimensão completamente distinta quando entramos no “mundo subterrâneo” do camera
cross – um mundo paralelo e secreto que começa a ser delineado como ritual
quando somos obrigados a vestir um manto preto para ali entrar, por conta da necessidade
de não refletir luz, através dos espelhos, para os olhos dos ocupantes da casa.
Ali sim, naquele labirinto separado da casa por um constante
abrir e fechar de cortinas pretas, sentimos todo o peso do lado “cobaias de experiência”
que Bial de vez em quando cita nas suas apresentações do programa. A começar pelo
fato de que a casa, como quase tudo em televisão, parece bem menor quando vista
in loco – especialmente os quartos. Quando entrei no camera cross,
a maioria dos participantes estava dormindo (o que, aliás, eles fazem bastante,
especialmente quando estão em menor número), e causa forte impressão ver o quanto
eles parecem personagens de algum conto de fadas no meio daquela decoração fake,
quase infantil, onde seus corpos parecem desproporcionalmente grandes em relação
às camas, paredes e aos (poucos) móveis. O efeito inicial
de se ver frente a frente com aquelas pessoas (e aqui falo literalmente, porque
às vezes estive a centímetros de distância dos participantes, que se ajeitavam
olhando para o espelho onde eu me encontrava) é desconcertante. Quase abstrações
dramáticas na tela da TV, ali na nossa frente se tornam um corpo dúbio: reais
ao ponto de podermos sentir passando através das paredes o cheiro do desodorante
que usam; e ao mesmo tempo ainda mais irreais em sua dimensão clara de personagens
em meio a um cenário tão mais artificial quando chegamos perto dele (e vemos,
por exemplo, o imenso rack de iluminação que ocupa todo o espaço do alto,
no jardim da casa). Se nunca tive um impulso mais voyeurístico
frente ao programa (nunca assinei pay-per-view ou quetais), dentro daquele
espaço tão assemelhado a um peep show, com sua escuridão, cortinas e espelhos,
encenação e espectador tão claramente separados, o impulso escópico é inevitável.
Sinto que poderia passar dias ali, naquele aquário, observando aquelas criaturas
estranhas. Ali, por alguns minutos, deixei de lado o interesse da operação audiovisual
que sempre me fascinou e adentrei de fato o lado do laboratório humano quase científico.
É uma sensação esquisita, sem dúvida – e tento entender o que se passa na cabeça
dos câmeras – vejo alguns que, incrivelmente jovens, buscam o melhor ângulo do
corpo perfeito da sua contemporânea Carol, a centímetros de distância. O que há
naquele olhar deles, que se reproduz na lente: distância profissional? Tédio?
Resquícios de um aparentemente inevitável desejo? Os câmeras, naquele labirinto
(também ele controlado por câmeras, aliás), parecem cobaias de algum experimento
complementar. Na hora do programa entrar ao vivo, surgem
novos personagens curiosamente dúbios: os familiares dos participantes. Com direito
a camarim próprio, eles têm seus dias de brilho – mas um brilho “de fora”, um
brilho “refletido”. Só existem como “apêndices” dos que lá dentro estão – são
aqueles que, toda semana, nos lembram que há um mundo externo à casa de bonecas.
Os familiares de Diego Alemão estão ali para o quinto paredão, e já parecem absolutamente
íntimos dos procedimentos e da situação esquisita. No entanto, assistem e torcem
junto com os outros espectadores: fora do ar a maior parte do tempo, nos seus
olhos eu vi todo um outro programa. Na comemoração silenciosa do pai (figura importante
como “personagem” no discurso de Alemão) ao ouvir uma frase especialmente bem
colocada pelo seu filho no programa, eles se tornam de novo humanos. Chega
a hora da eliminação (neste dia, de Airton), e ali acontece a operação que talvez
mais me fascine no programa: a passagem pela porta que sai da casa de bonecas
e dá acesso ao mundo exterior. Nesta passagem, o personagem se torna, de novo,
pessoa – mas uma pessoa que não é mais o que era antes: é personagem, agora, de
um outro enredo (o das celebridades – em geral, fugazes). Tento procurar nos olhos
de Airton a dimensão exata desta sequência de momentos: saída da “prisão”, volta
ao mundo conhecido (parentes, amigos), apresentação ao mundo novo (fotos para
fotógrafos da imprensa, correria para o chat ao vivo). Pouco desvendo neste
olhar – o ser humano se adapta a tudo, aparentemente. Logo, o programa sai do
ar, as luzes do estúdio se apagam, a audiência vai saindo das arquibancadas. Lá
dentro, quatro pessoas continuam na casa de bonecas, e um exército de profissionais
continua seu trabalho em torno deles, madrugada adentro. Uma
visita aos bastidores de um dia de trabalho no Big Brother Brasil é uma
experiência desmistificadora, em todos os sentidos. No lado dos participantes,
concede uma dimensão quase “patética” àquelas figuras que entram pela tela das
nossas casas, que se não chega a justificar de todo a hipérbole de heroísmo que
Bial tanto usa, certamente aumenta o respeito pelo tanto de provação que tem aquela
experiência; já no lado da equipe, torna uma operação complexa de articulação
de discurso e de sentidos em um trabalho executado de maneira absurdamente eficiente,
quase automática (no melhor dos sentidos), por um grupo de pessoas que têm sobre
o programa um olhar muito mais parecido com o do espectador do que eu seria capaz
de supor. Acima e apesar de ambos os grupos, paira uma entidade geradora constante
de sentidos para além de suas vontades: os olhares, coletivos e individuais, que
recebem as imagens que todos eles juntos (corpos em cena, corpos em trabalho,
máquinas) geram. Vê-los em seu trabalho não altera a potência
deste olhar, mas reitera o óbvio – que muitas vezes passa desapercebido quando
estamos à distância ou se decidimos seguir o caminho mais fácil que é nos munirmos
de um tanto de má fé e outro tanto de má vontade: todos são, nem menos nem mais,
pessoas iguaizinhas a todas as outras – e, ainda que de maneiras bem distintas,
simplesmente fazem o seu trabalho. Nesse sentido talvez o Big Brother seja
o presídio-modelo: constantemente ressocializando seus “detentos”, os libertando
para o convívio social depois de um período. Mudados, com certeza; se melhorados
ou não, fica a dúvida – como sempre, aliás. editoria@revistacinetica.com.br
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