olho no olho - virtual A
dimensão física dos sonhos e assombrações Cinco
perguntas para João Pedro Rodrigues por Felipe
Bragança No
meio da correria da cobertura dos festivais de cinema no Brasil, com sua oferta
de títulos e falta de tempo para dar conta de tudo que é visto entre
o Festival do Rio e a Mostra de SP, de vez em quando acontece, lamentavelmente,
que um dos filmes que mais nos tenha marcado acabe não sendo coberto como
devido pela revista (ou até nem receba texto algum!). Foi o que aconteceu
nesse ano de 2009 com Morrer Como Um Homem (foto), do português João
Pedro Rodrigues, que acabou sendo mencionado
na revista apenas brevemente, na cobertura do Festival de Cannes. Por sorte, a
partir de um breve contato feito no Festival de Santa Maria da Feira, onde também
se maravilhou com o filme, Felipe Bragança correu atrás deste rápido
papo com o diretor, que nos ajuda a começar a tirar este atraso com um
filme especial. Num formato já usado anteriormente por ele para falar com Naomi
Kawase, Jia Zhang-ke, Apichatpong Weerasethakul e Miguel
Gomes, segue mais uma conversa transoceânica sobre o trabalho de um
cineasta que admiramos. (Eduardo Valente)1. Seus três
filmes com que tive contato (O Fantasma, Odete, Morrer como um
Homem) parecem partir de desejos e impulsos do corpo onde se encenam possibilidades
de sua afirmação e transformação de maneira muito radical e limítrofe. Parece
não haver medo que derrote a alma desesperada de seus personagens, ou quando há,
o caminho do filme parece ser o de um enfrentamento poderoso entre os personagens
e os limites impostos ou pre-definidos sobre seus desejos e atitudes. Queria que
você comentasse algo em torno desse sentido trágico-heróico do desejo e
do impulso de transformação do corpo dos teus filmes. JPR:
O impulso/instinto – penso que são duas características fundamentais da minha
escrita. Quando escrevo os argumentos dos meus filmes funciono muitas vezes por
impulso/instinto. Uma espécie de intuição que tento não racionalizar demasiado.
Penso que os meus filmes não são teóricos, por isso tenho alguma dificuldade em
responder algumas formulações que fazes na pergunta. Mas penso, desde O Fantasma
(foto), em como figurar o corpo no cinema, como o corpo se metamorfoseia torturado
pelo desejo, o corpo como desejo exacerbado, desde a ponta dos pés até à ponta
dos cabelos. E finalmente o corpo como desejo final, o corpo da morte.
2.
Seguindo esse caminho do desejo que eu estava pensando, seu primeiro longa (O
Fantasma) lança mão de uma iconografia que nos remete aos filmes de herois
mascarados, desejosos e isolados, que na noite exprimem suas ações por trás de
um disfarce. Assim como em Morrer Como um Homem, o lugar do delírio desejoso
transparece na floresta (e nas próprias transformações da protagonista) e é definidor
da trajetória daquele corpo. Esse diálogo entre a fantasia encantadora de algumas
de suas imagens com a secura naturalista de outras passagens dos filmes nos coloca
em um jogo de desconforto e constante vigília, já que nem o território do naturalismo
nem o da fantasia estacionam como portos seguros para o espectador. Queria que
você falasse um pouco dessa relação entre “cinema de sonho” e crônica realista
de personagens. JPR: Eu parto sempre da realidade, como se houvesse
uma vontade documental em todas as minhas histórias – por isso é que é tão importante
a pesquisa que antecede a escrita de todos os meus argumentos (antes de escrever
O Fantasma acompanhei durante vários meses um grupo de trabalhadores da
recolha do lixo, antes do Odete pesquisei a “gravidez histérica” junto
a médicos, psicólogos e psiquiatras, antes do Morrer Como um Homem entrevistei
transexuais, travestis, médicos, psiquiatras, etç). Quero chegar ao território
do “fantástico” e do onírico mas partindo sempre do concreto e do físico – talvez
seja a minha maneira de transfigurar a realidade. 3. Apesar de seus
filmes parecerem partir de um retrato individual muito forte dos personagens,
me chama atenção a presença relevante da cidade de Lisboa servindo não como pano
de fundo, mas como habitat sugerido donde eles flutuam. Talvez o sentido maior
seja mesmo o de dizer que seus personagens agem e circulam como “fantasmas” dessa
Lisboa que passa longe dos clichês da cidade antiga cristalizada, mas encontra
lugar em depósitos de lixo, conjunto habitacionais, esquinas escuras, avenidas
vazias. O plano-sequência final de Morrer como um Homem é uma jóia rara
por fazer esse trajeto: figura-fantasia, no protagonista que canta, depois traço
narrativo na imagem do enterro e no encontro dos coadjuvantes daquele universo,
e depois uma amplidão da cidade e da Ponte 25 de Abril que leva para fora dali.
Queria que você comentasse um pouco essa relação que você exprime entre personagens
tão auto-alimentados por seus dramas e sua relação de assombração e decalque com
a cidade de Lisboa. JPR:
Penso que apesar de a cidade de Lisboa ser às vezes reconhecível, o que eu tento
é criar uma Lisboa mental, feita de imagens que conheço há muito tempo (algumas
desde a minha infância). Tento encontrar uma geografia pessoal dentro da cidade
de Lisboa – todos os lugares onde filmei até hoje estão de algum modo ligados
à minha experiência pessoal da cidade – muitas das ideias dramáticas das minhas
histórias nasceram de lugares na cidade (e agora no Morrer como um Homem,
no campo) que me assombram há muito tempo – são lugares que permanecem na minha
cabeça e que encontram naturalmente um lugar nas minhas histórias.
4. Como esta é nossa primeira conversa, queria que você comentasse um pouco
sobre influências, predileções e interesses seja no cinema contemporâneo seja
em realizadores mais antigos do cinema clássico narrativo. Como sua relação com
outros filmes te serve de premissa ou fonte de inspiração para personagens e cenas
e tons? Vejo traços de Fassbinder, do primeiro Almodóvar, de Sirk, Genet (numa
esfera fora do cinema), mas com uma suavidade e tonalidade muito particular. Fale
um pouco da onde vem teu olhar, até onde lhe for possível esse espelho.
JPR: A minha vontade de fazer filmes veio de ter começado a ir muito ao cinema
a partir dos 15 anos, ia à Cinemateca em Lisboa e Paris e via filmes compulsivamente
(agora já não vou tantas vezes, mas continuo a ir sempre que posso). Penso que
se aprende a fazer filmes vendo e revendo filmes. Gosto de muitos filmes
muito diferentes, mas há amores q estão sempre presentes: Bresson, Stroheim, Griffith,
Mizoguchi, Ozu, Ford, Hawks, Walsh, Lang, Sirk, Ophuls, Fassbinder, Godard, Straub/Huillet
e, mais recentemente Tsai Ming-liang e Apichatpong Weerasethakul. Gosto também
dos filmes alemães recentes da escola de Berlim. Outras influências: a pintura
clássica do sec. XIV ao XVII: Giotto, Piero della Francesca, os venezianos Tiziano,
Tintoretto e Veronese, o Michelangelo, o Caravaggio, o Rembrandt, o Vermeer...
E na literatura: coisas desde as leituras de Homero, até Conrad, Proust e Genet.
5. Para terminar, peço que fale-me um pouco de seus próximos projetos
e filmes, se já há algo no horizonte que você esteja preparando para breve.
JPR: Estou neste momento a fazer um “documentário” em Macau, ex-colónia
portuguesa onde eu nunca tinha vindo e só conhecia do cinema (o Macao do
Josef von Sternberg que também é um ponto de partida para este filme) – co-realizado
com o João Rui Guerra da Mata que é o art director de todos os meus filmes
e também colabora comigo na escrita. Acrescento que o João Rui viveu em Macau
em criança. O filme é uma espécie de confronto entre duas memórias ficcionadas,
a infantil e a cinematográfica. Fevereiro de 2010 editoria@revistacinetica.com.br |