olho no olho Da
Boca ao Bandido Entrevista com Ícaro
Martins por
Lila Foster
Egresso
da ECA (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo), Ícaro Martins
co-dirigiu com José Antônio Garcia três longas metragens: O olho mágico do
amor (1981), Onda Nova (1983) e Estrela Nua (1985), todos viabilizados
num período em que o projeto embaixo do braço e a capacidade de negociação com
produtores permitiam a produção de projetos próprios que ainda davam dinheiro.
Os filmes, obviamente, não deixam de absorver determinadas exigências de um produtor
da Boca do Lixo, mas são provas da capacidade que estes jovens diretores tiveram
de equilibrar tino comercial, cinema de turma, humor, cinefilia e uma divertida
libertinagem. Um tanto esquecidos hoje, os filmes trazem situações que fazem do
roteiro e do ato de filmar não uma ordenação bem concatenada do mundo, mas uma
brincadeira que transborda para a tela com as suas situações inusitadas (em Estrela
Nua, Carla Camurati faz um baseado com os seus pelos pubianos), as citações
ao cinema brasileiro, a sexualidade. Sem deixar de trazer uma certa tragicidade,
os filmes nos fazem pensar em uma época que o cinema não era feito de estanques
categorias opostas como comercial/autoral, popular/acadêmico, masculino/feminino,
seriedade/escracho. Enquanto José Antônio Garcia dirigiu,
sozinho, dois longas depois destes primeiros trabalhos,
Ícaro Martins só agora volta ao cinema de longa-metragem, mais uma vez dividindo
a direção. Desta vez, junto com Helena Ignez, ele está à frente do aguardado Luz
nas Trevas, roteiro de Rogério Sganzerla que traz o Bandido da Luz Vermelha
para os tempos atuais. No dia 12 de novembro de 2008, conversei com Ícaro sobre
a sua trajetória no cinema, o trabalho em parceria com José Antônio Garcia
(falecido em dezembro de 2005) e a preparação deste
novo filme. Olhando a sua filmografia é possível
perceber um percurso que vai dos curtas produzidos na ECA para os longas produzidos
pela Olympus Filmes, produtora de filmes da Boca do Lixo. Como se deu esse percurso?Ícaro
- Na verdade, enquanto eu fazia os curtas na ECA eu comecei a trabalhar em
outros filmes. Eu fiz assistência de direção do Maldita Coincidência do
Sergio Bianchi. Foi a época da Lei do Curta, então eu fiz som em dois curtas que
o Zé Antônio (N. do E.: José Antônio Garcia, cineasta) fez na Olympus, fiz som,
teatro, trabalhei em outros curtas. Fazia bico em curtas como em longas, tudo
isso enquanto a gente estava na ECA. Você é de que turma? Ícaro
- Eu entrei em 1973, foi o ano que a ECA teve vestibular no meio do ano. E
o Zé Antônio era dessa turma? Ícaro - O
Zé Antônio tinha entrado seis meses antes. Quando eu entrei na ECA eu não cruzei
com o Zé Antônio, eu conheci o Zé Antônio por alguns colegas da minha turma. O
Zé Antônio não foi até o fim na ECA, ele largou, mas alguns amigos dele eram meus
amigos de ECA. Eu tinha uma idéia de um filme policial...o Marilyn Tupi
(1979) que foi um média que o ZA fez, um filme policial em episódios que eu achei
que minha idéia poderia encaixar. Na verdade, era uma história só, em três capítulos
e cada capítulo seria contado do ponto de vista de um dos personagens. Através
desses amigos comuns eu mandei o roteiro para o Zé Antônio, ele gostou, achou
que tinha tudo a ver. Nós trabalhamos um tempo no roteiro para adequar ele melhor. Qual
era a idéia desse roteiro? Ícaro - O roteiro
se chamava O homem ideal versus a mulher fatal, era a história de um cara
que era executivo e diabético. Um homem ideal? (risos) Ícaro
- É, mas o homem ideal quem ia fazer era o Nuno Leal Maia – naquela época
ele era o galã, ele era casado com uma modelo, uma manequim negra, super bonita
– e o personagem estava sendo drogado pelo próprio médico que na verdade era amante
da mulher dele. O médico fornecia uma insulina que tinha uma droga e conforme
ele ia sendo drogado pelo médico, ele começou a ter alucinações em que ele imaginava
a sua própria morte. E no final ele descobre a trama toda do médico e da mulher
para matar ele – mas isso não impediu que ele, numa antevisão meio paranormal,
acabasse morrendo mesmo assim. Nós fizemos o orçamento do filme que na época custava
onze milhões de alguma coisa, nem me lembro qual era a moeda da época. Aí o que
nós fizemos? Nós pegamos o roteiro e saímos passando em todos os grandes produtores
da época: o Massaini, o Luiz Carlos Barreto, o Pedro Rovái no Rio de Janeiro e
a gente sempre chegava falando que tinha quatro, mas que faltavam sete. Mas
tinha? Ícaro - Não, a gente não tinha nada.
(risos) Nessa época cinema nacional dava dinheiro, dava muito dinheiro. Meses
depois a gente estava na Boca conversando com o Adone Fragano, para quem o Zé
Antônio já tinha feito dois curtas e aí ele topou. Aí nós saímos procurando os
quatro, cinco na verdade, dizendo que nós tínhamos seis. Nessa
época funcionava sair com um projeto embaixo do braço atrás de investimento direto
do produtor. Ícaro - Funcionava. O ZA tinha
uma moto e eu tava com filho pequeno precisando de trabalho e a gente saia batendo
em todas as portas, até em empresa de produtos de beleza para negros na Baixada
Fluminense. Aí, passou-se o tempo, o produtor disse que não tinha seis, só tinha
quatro e que a gente ia ter que procurar o resto e a gente conseguiu no máximo
1,5, uma coisa assim. Depois a gente falou para o produtor que a gente não tinha
conseguido o dinheiro, eu tinha alguma coisa do curta Tatuagem que eu tinha
vendido para o Severiano Ribeiro. Tatuagem você não viu, né? Não,
não vi. O seu primeiro foi Rock? Ícaro - Sim,
Rock (1976) e depois O tamanduá taí ou plus X + 85 b (1980) e paralelo
a ele teve o Tatuagem (1980) que eu usei o equipamento da ECA mas
eu consegui levantar um dinheiro e fiz um curta sobre duas hippies que iam fazer
uma tatuagem no porto de Santos, bem no começo dessa moda da tatuagem, as tatuagens
eram todas pequenininhas...Bom, passando todo esse tempo ficou óbvio que a gente
não ia conseguir juntar esse dinheiro, o Adone chegou, a gente já tinha desenvolvido
uma relação, tinha a equipe mais ou menos “apalavrada”, e ele propôs que a gente
fizesse um filme só com 6 milhões: “me façam um filme com no máximo 3 locações
para filmar em três semanas e que tenha, pelo menos, dezessete cenas de sexo
sendo que seis mais esticadas e uma situação de lesbianismo”. Era o que mais se
aproximava, naquela época, ao sexo explícito. A gente estava tão desesperado para
filmar que em uma semana nós entregamos duas sinopses. Uma eram dois pintores
pintando em uma apartamento, contando histórias e observando vizinhas...se chamava
Pinta como eu pinto (risos). E o outro era a história do Olho mágico
do amor que tinha originalmente o título de La voyeuse (risos). A gente
escolheu esse e em um mês a gente escreveu o roteiro. É
engraçada essa história porque nela você percebe uma diferença nos tempos. O que
me atraiu muito nos seus filmes eram essas mulheres despreendidas mas na verdade
as cenas de lesbianismo e as de sexo tem muito a ver com uma logística de produção:
17 cenas de sexo e uma de lesbianismo. Ícaro
- É, e aí o que a gente imaginou? Para encaixar, já que muitas das situações
eram forçadas, uma das mulheres é uma prostituta. Tinha me inspirado também uma
história de um filme estrangeiro, que foi um grande fracasso de bilheteria, que
era uma história do Cabrera Infante, era um filme assim meio hippie com a música
do George Harrison (N. do R.: o filme é Wonderwall, 1968). Era a história
de um cientista, um cara que trabalhava em um laboratório inglês, ele morava em
um apartamentinho e tinha uma vizinha hippie completamente linda. Ele passava
o dia com o olho no microscópio, o ator era Jack McGowran, o mesmo que fez A
Dança dos Vampiros e um dia ele chega em casa e vê um furo na parede e a imagem
dela projetada dançando e ele fica olhando até se apaixonar por ela. Ela dá festas
louquíssimas, o filme é bem psicodélico, começo da década de 70, da época que
o George Harrison tocava cítara. Eu lembrei desse filme e a história de uma ex-namorada
minha, que era completamente louca também, que tinha trabalhado numa Sociedade
de Amigos dos Pássaros e ela ficava datilografando fichas. No verão, ela ficava
lá sozinha datilografando pelada e aí um dia o velho da sociedade chegou lá e
ela perdeu o emprego. A gente juntou essas três coisas: a prostituta, o buraco
na parede e a história da minha ex-namorada e escreveu o roteiro em duas, três
semanas. Por incrível que pareça não tem nenhuma cena no Olho Mágico que
não tenha sido escrita, tudo que foi escrito tá no filme. Você
e o Zé Antonio escreveram juntos? Ícaro -
Escrevemos juntos. Como foi dividir a direção? Ícaro
- No começo seria um filme de episódios, mas aí nós fizemos uma divisão muito
simples. O Zé Antônio dirigia cenas da casa da menina e eu dirigia as cenas do
escritório. As cenas do quarto da Tânia, que era a prostituta, as cenas “filé
mignon”, mais bacanas de serem dirigidas, a gente dividia em lotes. A casa era
a casa onde morava o Zé Antônio, o escritório era o escritório do produtor redecorado,
o quarto da Tânia nós montamos uma parede falsa e era o depósito de equipamentos
da Cinedistri, no prédio do Massaini. Era uma semana em cada locação e quando
um dirigia o outro fazia assistência. Nós decupávamos as cenas juntos, mas na
hora de dirigir a gente revezava por seqüência. E a ligação
entre os três filmes acaba sendo a Carla Camurati. Ícaro
- Não, nós né! Além da Carla Camurati, tem o Antonio Meliande também. E
o contato com a Carla Camurati como foi, porque ela é importantíssima para os
filmes, principalmente pela entrega do corpo... Ícaro
- Ela e a Tânia Alves também. A Tânia Alves, quando ela foi trabalhar no Olho
Mágico, tava numa pior, tinha acabado de ter filho...enfim, ela não tinha
estourado. E a Carla Camurati tinha feito uma participação na série Amizade
Colorida com o Antônio Fagundes. A gente tava procurando a atriz e um dia
o Zé Antônio ligou e disse “liga aí a TV no programa Amizade Colorida porque
tem uma atriz legal”. Aí eu assisti e achei que era isso mesmo, achei ela bacana
e nós ligamos para ela...o filme deu muita sorte também, todo mundo deslanchou
depois do filme. Vocês fizeram dinheiro? Ícaro
- Nunca ganhei tanto dinheiro na vida! Porque nosso salário era porcentagem,
eu tinha esse curta que eu tinha feito pela Lei do Curta que tinha vendido e tinha
aplicado o dinheiro, tinha no total 7,5% do Olho Mágico. O Zé Antônio tinha
um pouco mais porque ele tinha colocado um dinheiro do pai e nós tínhamos cada
um 2,5% pela direção e mais um dinheiro que a gente botou. Eu me lembro que eu
paguei as dívidas, troquei de carro... O Olho Mágico foi um grande sucesso,
deu uns 800 mil espectadores... 800 mil! Ícaro
- Na época não era muito, era bom, mas não era muito. Cinema nacional dava
dinheiro. Eu lembro que só a renda do Rio de Janeiro pagou o filme, o resto todo
foi lucro. Mas era uma proporção de público muito diferente. Poucos filmes como
os dos Trapalhões faziam 5, 6 milhões de espectadores. E
a idéia do Onda Nova? Ícaro - Depois do
Olho Mágico, a gente resolveu fazer um filme nosso, bacana... Um
filme com mais cara de turma... Ícaro - Não,
esse filme seria o Estrela Nua. Eu escrevi o roteiro do Estrela Nua,
era um roteiro mais caro, mais complicado. Para fazer precisava do dinheiro da
Embrafilme, nós e o produtor colocamos o filme na Embrafilme. Nesse meio tempo
o Zé Antônio teve um acidente de moto e ficou um tempo parado. E o produtor nos
procurou, o projeto tava lá na Embrafilme parado, o nosso dinheiro acabou e o
produtor falou “precisamos fazer outro filme enquanto não sai o resultado”. Então,
tinha essa idéia, que veio por sugestão da Cristina Mutarelli, de fazer um filme
sobre um time de futebol feminino – mas era só isso. Aí a gente levou para o Adone
Fragano e ele achou ótimo! Imagina, um time de futebol de mulheres (risos). O
produtor já tinha confiança na gente como diretores, então o roteiro foi basicamente
escrito enquanto ia sendo filmado. A gente tinha um roteiro bem tosco, bem alinhavado,
e todo mundo já confiava na gente. Mas, o Onda Nova (foto acima) teve um
grande problema: quando ele ficou pronto já tinham entrado os filmes de sexo explícito,
e aí o mercado deu uma radicalizada. Ou você tinha filmes com sexo explícito ou
sem sexo, e o Onda Nova era uma comédia erótica leve. Pensando
nisso, existe uma diferença entre o Olho Mágico e o Onda Nova porque no Olho Mágico
você percebe essa quebra “agora as cenas de sexo” e no Onda Nova tem mais a ver
com a libertinagem de um grupo de amigos. Ícaro
- A nossa grande proposta era: “tudo bem, a gente não tem o menor problema
em fazer uma pornochanchada, mas só que não vamos fazer pornochanchadas moralistas”.
O que nos incomodava é que as pornochanchadas sempre tinham no fundo um ranço
moralista: a mulher ou o marido infiel no fundo se ferrava, tinha um julgamento
moral, tinha uma maneira preconceituosa de lidar com a homossexualidade, com a
mulher. Tanto que o Olho Mágico já tem essa tentativa de não ser tão moralista
e no Onda Nova (foto) já não tem absolutamente. O
Onda Nova foi o primeiro filme que eu assisti e eu gostei muito do filme por causa
disso: vamos falar de sexo numa boa, das traições, dos desejos, da homossexualidade,
as mulheres transando no carro... Ícaro - É,
mas as cenas de lesbianismo eram uma obrigação. Bom, pelo
menos as cenas não eram filmadas como cenas “homens, olhem e fiquem loucos”. Ícaro
- É, era filmado mais casualmente. Bom, o outro tinha a situação da prostituta,
de abrir uma janela mesmo. Porque no primeiro a dúvida era como a gente ia inserir
17 cenas de sexo! Mas, o que eu acho genial é que a personagem
da Carla Camurati em Olho Mágico se apaixona por aquele universo, se apaixona
pela Tânia Alves tanto até que elas terminam juntas e em festa e ela ainda mata
o algoz, o cafetão (risos). O Estrela Nua já flerta mais com o gênero. Ícaro
- É... o Estrela Nua tem um problema porque o roteiro não está tão
bem resolvido. Hoje em dia julgando a coisa a posteriori eu acho que a
gente queria mostrar que a gente tinha cultura, então ele é todo cheio de referências
ao universo do Nelson Rodrigues e uma referência direta à Adriana Pietro. Era
um filme declaradamente de cinéfilo e vendo hoje em dia talvez ele tenha citações
demais. Ele é um filme mais truncado porque transita
em diferentes níveis, a vida passada da atriz, a loucura, a dubladora que se relaciona
com esse universo mórbido. Ícaro - É, a
pessoa tem que ter muita referência cinematográfica. Hoje em dia eu fico pensando
se talvez não teria sido bom usar alguns efeitos de trucagem para delimitar claramente
o que era o filme dentro do filme e o que era verdade porque, na época, a gente
achou que conseguiríamos fazer isso através da linguagem do cinema e da direção
de arte. Esse teve dinheiro da Embrafilme. Ícaro
- Foi co-produção sim. O Onda Nova foi um grande fracasso, foi o nosso
filme que foi pior. Quando a gente tava terminando o Onda Nova, a Embrafilme
aprovou o Estrela Nua. Tinha outra questão, que era a seguinte: quando
foi para a censura, a gente tinha pedido 18 anos, mas a primeira comissão que
assistiu liberou para 16 anos com cortes. A gente queria o filme sem cortes, e
a segunda comissão liberou para 18 anos sem cortes. Aí, deu aquele impasse entre
as duas comissões. Então foi acionada a famigerada Solange Hernandez, a diretora
do Departamento de Censura durante muitos anos, bem no final do regime militar,
e ela interditou o filme julgando que ele era amoral. Na época, esses filmes só
eram liberados com mandato de segurança, mas custava dinheiro. E, estava começando
o movimento de filmes como Império dos Sentidos e Calígula, estavam
começando a chegar muitos filmes pornôs de fora. Digo, esses filmes que não eram
pornôs mas que poderiam ser pornográficos... O Império dos Sentidos é um
grande filme. E aí o produtor não ia gastar dinheiro com o mandato de segurança
para um filme que não tinha sexo explícito, só se a gente colocasse cenas de sexo
explícito no meio do filme, o que a gente absolutamente não queria fazer, porque
isso não era o combinado com nenhum dos atores e das atrizes. Então o filme ficou
6 meses parado na censura, passou por todos os trâmites legais e no final foi
liberado para 18 anos – só que quando foi liberado o filme o mercado já tinha
dado aquela radicalizada. O filme foi lançado no centro da cidade, no Cine Marrocos,
e na outra sala estava passando o primeiro ou segundo filme de sexo explícito
feito aqui no Brasil, na Boca, chamava-se Penetrações. O público chegava
e olhava Onda Nova e Penetrações e imagina...a gente ficava desesperado,
o filme foi muito mal, embora hoje eu ache que talvez tenha sido o filme que envelheceu
melhor. Mas aí, a gente estava com o Estrela Nua saindo, então acho que
superamos bem o trauma. Porque o advento do sexo explícito foi uma catástrofe
na Boca do Lixo, muita gente perdeu emprego. Porque importavam
muito filmes? Ícaro - Não só porque importava,
mas você não precisava de ator. Todos os atores faziam filmes na Boca do Lixo,
o Fagundes, o grande galã da Boca era o Nuno Leal Maia com Bem Dotado, O Homem
de Itu (1978), a Renata Sorrah fez Lua de Mel e Amendoim (1971), a
Lílian Lemmertz, a Selma Egrey, a Vera Fischer era a rainha da pornochanchada,
quer dizer as pessoas pararam de trabalhar. Porque aí os atores eram profissionais
do sexo. Os técnicos também largaram porque os filmes não pagavam, só os dois
primeiros pagavam bem e aí depois pagavam cada vez menos porque já não importava
tanto a fotografia. Mas o Antônio Meliande continuou. Ícaro
- Continuou com um nome falso, Tony Mel (risos). Mas também parou logo depois.
Os produtores pararam de produzir, o Galante parou de produzir, o Massaini fez
uma ou outra coisa, os montadores pararam, foi uma catástrofe trabalhista na Boca
do Lixo. E o Estrela Nua, rendeu? Ele é mais difícil
do que os outros dois. Ícaro - Ele é mais
difícil do que os outros dois, mas ele não foi de todo mal. Ele pegou um ano ruim,
1985, foi na época da inflação galopante e tinha caído muito a renda do cinema
nacional. O filme saiu de cartaz e pouco depois entrou o Plano Cruzado que congelou
os preços e as filas do cinema aumentaram uma barbaridade. Quem segurou o filme
e lançou depois se deu muito bem. E depois do Estrela
Nua? Ícaro - Bom, depois do Estrela
Nua, eu e o Zé Antônio já não estávamos tão afinados, tínhamos decidido que
não dava mais para dividir o salário de diretor já que ninguém queria pagar dois
diretores e eu estava em um outro projeto que eu estava começando a escrever.
Eu fiz algumas coisas de publicidade, outros roteiros e tinha um projeto que eu
estava acertando com a Embrafilme que se chamava A Tela Rasgada e era a
história do começo do filme pornô na Boca, a história de um montador sem trabalho
na Boca destruída e juntava com a história de um estúdio que fazia filme pornô
e fazia tráfico de mulheres para lugares distantes. Eu tinha outros roteiros,
mas nesse meio tempo acabou a Embrafilme. Então eu fiz publicidade, fiz coisas
para TV, documentário, tive que me virar porque ninguém tava fazendo nada. O Zé
Antônio ainda conseguiu filmar porque o projeto de O Corpo foi um dos últimos
a ser aprovado pela Embrafilme. No ano que saiu O Corpo tinha um ou dois
filmes brasileiros. E qual foi a conexão com o Luz nas
Trevas? Ícaro - Eu estava em uma comissão
do fomento e tinha um monte de projetos. O projeto do Luz nas Trevas não
foi aprovado, mas quando eu comecei a ler eu achei incrível. Eu falei com o Joel
Pizzini e ele me chamou para conversar com a Helena Ignez e eu disse que tinha
adorado e que se eu tivesse dinheiro eu compraria os direitos do filme, mas, eu
estava com um outro projeto uma comédia chamada La Cucaracha, inspirado
em A metamorfose, trazido para o Brasil. Foi assim que eu conheci a Helena
e sempre que a gente se encontrava eu perguntava como andavam as coisas, mas parecia
que não estava rolando. Aí no ano passado eu encontrei com ela na Jornada de Cinema
Silencioso na Cinemateca, perguntei sobre o projeto, ela disse que não estava
conseguindo captar e no dia seguinte ela me ligou e perguntou se eu não queria
dirigir o filme com ela. Eu dei mais uma olhada no roteiro e no dia seguinte eu
liguei para ela e topamos fazer o filme. A gente deu uma reformatada, uma organizada
no projeto. Nesse meio tempo, ela estava muito empenhada com o Canção de Baal
e a gente se entendeu muito bem. Basicamente é o mesmo projeto, o roteiro é essencialmente
o mesmo, mas a partir daí a gente começou a ganhar vários editais, tem filme que
tem a sua hora. Mas e a obra do Sganzerla? Você a tem
como referência? Ícaro - Eu resolvi fazer
cinema quando eu vi o Bandido da Luz Vermelha. Eu freqüentava o Clube de
Cinema de Santos, via os filmes do Cinema Novo, mas quando eu vi o Bandido
da Luz Vermelha (foto abaixo) eu resolvi que eu realmente queria fazer cinema.
Quando eu estava assistindo aos seus filmes e fiquei
tentando achar conexões entre os seus filmes e o Sganzerla. Ícaro
- É completamente diferente, porque quando a gente caiu na realidade da Boca
já era um esquemão. Mas, mesmo no esquemão, eles nos davam muita liberdade para
filmar, se você se encaixasse dentro daquela receita você fazia. O que tem principalmente
é que, por exemplo, o cineclube da ECA que eu fazia parte se chamava Cineclube
Luz Vermelha; toda a minha geração da ECA o Sganzerla foi o cineasta que nós nos
identificávamos: a quebra godardiana, a quebra brechtniana com humor
e a referência ao cinema, de um cinema que dialoga com o cinema. Mesmo o Olho
Mágico, naquela época já se dizia que a pornochanchada estava decadente e
a gente brincava que o filme era a última pornochanchada. Na verdade, a última
chanchada acabou sendo o Onda Nova. Tem também o império da cena. A cena
além de ter uma função narrativa ela deve valer por ela própria, poderíamos dizer
que tudo isso faz parte do processo “sganzerliano”. E
como está o processo do Luz nas Trevas? Ícaro
- Está super bem, a gente acabou de receber a notícia que a gente ganhou o
PAC e assim a gente vai conseguir fechar o orçamento para a filmagem que deve
começar no início do ano que vem. Tem muito humor no
Luz nas Trevas também? Ícaro - Tem. A idéia
do filme em termos de tratamento é de que nós não vamos copiar o Bandido.
O Rogério tinha deixado umas 600 páginas escritas, dava uns dois filmes e tinha
duas versões. Ele deixou duas versões, com muitas cenas repetidas, mas duas versões.
Em uma delas, o Bandido revia a vida dele; e a outra versão, que foi a que nós
adotamos, era a relação do Bandido com o seu filho. A gente não quis refazer o
que já era uma obra-prima então a gente adotou a linha do filho, mas todas as
cenas foram escritas pelo Sganzerla, a gente são acrescentou nada, só tiramos,
fizemos opções. Já tem ator? Ícaro
- O Ney Matogrosso vai fazer o Bandido velho e o novo vai ser o André Guerreiro
que é ator e diretor de teatro. É o Bandido 35 anos depois, quando o filho, que
é um trombadinha, descobre que ele está na cadeia e vai visitá-lo. O menino vira
um grande bandido, no estilo do pai, que se chama Tudo ou nada. É
bem parecido com o Encarnação do Demônio: um personagem em retrospecto, 30 anos
depois, e o que é feito desse personagem nesse mundo de hoje. Ícaro
- Na verdade, muito pouca coisa mudou. O Bandido da Luz Vermelha de
certa maneira é um filme profético porque tudo aquilo que tem no Bandido
só se acentuou: a violência, a globalização, o caos urbano. Dezembro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br |