olho no olho
Da Boca ao Bandido
Entrevista com Ícaro Martins
por Lila Foster

Egresso da ECA (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo), Ícaro Martins co-dirigiu com José Antônio Garcia três longas metragens: O olho mágico do amor (1981), Onda Nova (1983) e Estrela Nua (1985), todos viabilizados num período em que o projeto embaixo do braço e a capacidade de negociação com produtores permitiam a produção de projetos próprios que ainda davam dinheiro. Os filmes, obviamente, não deixam de absorver determinadas exigências de um produtor da Boca do Lixo, mas são provas da capacidade que estes jovens diretores tiveram de equilibrar tino comercial, cinema de turma, humor, cinefilia e uma divertida libertinagem. Um tanto esquecidos hoje, os filmes trazem situações que fazem do roteiro e do ato de filmar não uma ordenação bem concatenada do mundo, mas uma brincadeira que transborda para a tela com as suas situações inusitadas (em Estrela Nua, Carla Camurati faz um baseado com os seus pelos pubianos), as citações ao cinema brasileiro, a sexualidade. Sem deixar de trazer uma certa tragicidade, os filmes nos fazem pensar em uma época que o cinema não era feito de estanques categorias opostas como comercial/autoral, popular/acadêmico, masculino/feminino, seriedade/escracho. 

Enquanto José Antônio Garcia dirigiu, sozinho, dois longas depois destes primeiros trabalhos, Ícaro Martins só agora volta ao cinema de longa-metragem, mais uma vez dividindo a direção. Desta vez, junto com Helena Ignez, ele está à frente do aguardado Luz nas Trevas, roteiro de Rogério Sganzerla que traz o Bandido da Luz Vermelha para os tempos atuais. No dia 12 de novembro de 2008, conversei com Ícaro sobre a sua trajetória no cinema, o trabalho em parceria com José Antônio Garcia (falecido em dezembro de 2005) e a preparação deste novo filme.

Olhando a sua filmografia é possível perceber um percurso que vai dos curtas produzidos na ECA para os longas produzidos pela Olympus Filmes, produtora de filmes da Boca do Lixo. Como se deu esse percurso?

Ícaro - Na verdade, enquanto eu fazia os curtas na ECA eu comecei a trabalhar em outros  filmes. Eu fiz assistência de direção do Maldita Coincidência do Sergio Bianchi. Foi a época da Lei do Curta, então eu fiz som em dois curtas que o Zé Antônio (N. do E.: José Antônio Garcia, cineasta) fez na Olympus, fiz som, teatro, trabalhei em outros curtas. Fazia bico em curtas como em longas, tudo isso enquanto a gente estava na ECA.

Você é de que turma?

Ícaro - Eu entrei em 1973, foi o ano que a ECA teve vestibular no meio do ano.

E o Zé Antônio era dessa turma?

Ícaro - O Zé Antônio tinha entrado seis meses antes. Quando eu entrei na ECA eu não cruzei com o Zé Antônio, eu conheci o Zé Antônio por alguns colegas da minha turma. O Zé Antônio não foi até o fim na ECA, ele largou, mas alguns amigos dele eram meus amigos de ECA. Eu tinha uma idéia de um filme policial...o Marilyn Tupi (1979) que foi um média que o ZA fez, um filme policial em episódios que eu achei que minha idéia poderia encaixar. Na verdade, era uma história só, em três capítulos e cada capítulo seria contado do ponto de vista de um dos personagens. Através desses amigos comuns eu mandei o roteiro para o Zé Antônio, ele gostou, achou que tinha tudo a ver. Nós trabalhamos um tempo no roteiro para adequar ele melhor.

Qual era a idéia desse roteiro?

Ícaro - O roteiro se chamava O homem ideal versus a mulher fatal, era a história de um cara que era executivo e diabético.

Um homem ideal? (risos)

Ícaro - É, mas o homem ideal quem ia fazer era o Nuno Leal Maia – naquela época ele era o galã, ele era casado com uma modelo, uma manequim negra, super bonita – e o personagem estava sendo drogado pelo próprio médico que na verdade era amante da mulher dele. O médico fornecia uma insulina que tinha uma droga e conforme ele ia sendo drogado pelo médico, ele começou a ter alucinações em que ele imaginava a sua própria morte. E no final ele descobre a trama toda do médico e da mulher para matar ele – mas isso não impediu que ele, numa antevisão meio paranormal, acabasse morrendo mesmo assim. Nós fizemos o orçamento do filme que na época custava onze milhões de alguma coisa, nem me lembro qual era a moeda da época. Aí o que nós fizemos? Nós pegamos o roteiro e saímos passando em todos os grandes produtores da época: o Massaini, o Luiz Carlos Barreto, o Pedro Rovái no Rio de Janeiro e a gente sempre chegava falando que tinha quatro, mas que faltavam sete.

Mas tinha?

Ícaro - Não, a gente não tinha nada. (risos) Nessa época cinema nacional dava dinheiro, dava muito dinheiro. Meses depois a gente estava na Boca conversando com o Adone Fragano, para quem o Zé Antônio já tinha feito dois curtas e aí ele topou. Aí nós saímos procurando os quatro, cinco na verdade, dizendo que nós tínhamos seis.

Nessa época funcionava sair com um projeto embaixo do braço atrás de investimento direto do produtor.

Ícaro - Funcionava. O ZA tinha uma moto e eu tava com filho pequeno precisando de trabalho e a gente saia batendo em todas as portas, até em empresa de produtos de beleza para negros na Baixada Fluminense. Aí, passou-se o tempo, o produtor disse que não tinha seis, só tinha quatro e que a gente ia ter que procurar o resto e a gente conseguiu no máximo 1,5, uma coisa assim. Depois a gente falou para o produtor que a gente não tinha conseguido o dinheiro, eu tinha alguma coisa do curta Tatuagem que eu tinha vendido para o Severiano Ribeiro. Tatuagem você não viu, né?

Não, não vi. O seu primeiro foi Rock?

Ícaro - Sim, Rock (1976) e depois O tamanduá taí ou plus  X + 85 b (1980) e paralelo a ele teve o Tatuagem (1980) que eu usei o equipamento da ECA mas eu consegui levantar um dinheiro e fiz um curta sobre duas hippies que iam fazer uma tatuagem no porto de Santos, bem no começo dessa moda da tatuagem, as tatuagens eram todas pequenininhas...Bom, passando todo esse tempo ficou óbvio que a gente não ia conseguir juntar esse dinheiro, o Adone chegou, a gente já tinha desenvolvido uma relação, tinha a equipe mais ou menos “apalavrada”, e ele propôs que a gente fizesse um filme só com 6 milhões: “me façam um filme com no máximo 3 locações para filmar em três semanas e que tenha, pelo menos, dezessete  cenas de sexo sendo que seis mais esticadas e uma situação de lesbianismo”. Era o que mais se aproximava, naquela época, ao sexo explícito. A gente estava tão desesperado para filmar que em uma semana nós entregamos duas sinopses. Uma eram dois pintores pintando em uma apartamento, contando histórias e observando vizinhas...se chamava Pinta como eu pinto (risos). E o outro era a história do Olho mágico do amor que tinha originalmente o título de La voyeuse (risos). A gente escolheu esse e em um mês a gente escreveu o roteiro.

É engraçada essa história porque nela você percebe uma diferença nos tempos. O que me atraiu muito nos seus filmes eram essas mulheres despreendidas mas na verdade as cenas de lesbianismo e as de sexo tem muito a ver com uma logística de produção: 17 cenas de sexo e uma de lesbianismo.

Ícaro - É, e aí o que a gente imaginou? Para encaixar, já que muitas das situações eram forçadas, uma das mulheres é uma prostituta. Tinha me inspirado também uma história de um filme estrangeiro, que foi um grande fracasso de bilheteria, que era uma história do Cabrera Infante, era um filme assim meio hippie com a música do George Harrison (N. do R.: o filme é Wonderwall, 1968). Era a história de um cientista, um cara que trabalhava em um laboratório inglês, ele morava em um apartamentinho e tinha uma vizinha hippie completamente linda. Ele passava o dia com o olho no microscópio, o ator era Jack McGowran, o mesmo que fez A Dança dos Vampiros e um dia ele chega em casa e vê um furo na parede e a imagem dela projetada dançando e ele fica olhando até se apaixonar por ela. Ela dá festas louquíssimas, o filme é bem psicodélico, começo da década de 70, da época que o George Harrison tocava cítara. Eu lembrei desse filme e a história de uma ex-namorada minha, que era completamente louca também, que tinha trabalhado numa Sociedade de Amigos dos Pássaros e ela ficava datilografando fichas. No verão, ela ficava lá sozinha datilografando pelada e aí um dia o velho da sociedade chegou lá e ela perdeu o emprego. A gente juntou essas três coisas: a prostituta, o buraco na parede e a história da minha ex-namorada e escreveu o roteiro em duas, três semanas. Por incrível que pareça não tem nenhuma cena no Olho Mágico que não tenha sido escrita, tudo que foi escrito tá no filme.

Você e o Zé Antonio escreveram juntos?

Ícaro - Escrevemos juntos.

Como foi dividir a direção?

Ícaro - No começo seria um filme de episódios, mas aí nós fizemos uma divisão muito simples. O Zé Antônio dirigia cenas da casa da menina e eu dirigia as cenas do escritório. As cenas do quarto da Tânia, que era a prostituta, as cenas “filé mignon”, mais bacanas de serem dirigidas, a gente dividia em lotes. A casa era a casa onde morava o Zé Antônio, o escritório era o escritório do produtor redecorado, o quarto da Tânia nós montamos uma parede falsa e era o depósito de equipamentos da Cinedistri, no prédio do Massaini. Era uma semana em cada locação e quando um dirigia o outro fazia assistência. Nós decupávamos as cenas juntos, mas na hora de dirigir a gente revezava por seqüência.

E a ligação entre os três filmes acaba sendo a Carla Camurati.

Ícaro - Não, nós né! Além da Carla Camurati, tem o Antonio Meliande também.

E o contato com a Carla Camurati como foi, porque ela é importantíssima para os filmes, principalmente pela entrega do corpo...

Ícaro - Ela e a Tânia Alves também. A Tânia Alves, quando ela foi trabalhar no Olho Mágico, tava numa pior, tinha acabado de ter filho...enfim, ela não tinha estourado. E a Carla Camurati tinha feito uma participação na série Amizade Colorida com o Antônio Fagundes. A gente tava procurando a atriz e um dia o Zé Antônio ligou e disse “liga aí a TV no programa Amizade Colorida porque tem uma atriz legal”. Aí eu assisti e achei que era isso mesmo, achei ela bacana e nós ligamos para ela...o filme deu muita sorte também, todo mundo deslanchou depois do filme.

Vocês fizeram dinheiro?

Ícaro - Nunca ganhei tanto dinheiro na vida! Porque nosso salário era porcentagem, eu tinha esse curta que eu tinha feito pela Lei do Curta que tinha vendido e tinha aplicado o dinheiro, tinha no total 7,5% do Olho Mágico. O Zé Antônio tinha um pouco mais porque ele tinha colocado um dinheiro do pai e nós tínhamos cada um 2,5% pela direção e mais um dinheiro que a gente botou. Eu me lembro que eu paguei as dívidas, troquei de carro... O Olho Mágico foi um grande sucesso, deu uns 800 mil espectadores...

800 mil!

Ícaro - Na época não era muito, era bom, mas não era muito. Cinema nacional dava dinheiro. Eu lembro que só a renda do Rio de Janeiro pagou o filme, o resto todo foi lucro. Mas era uma proporção de público muito diferente. Poucos filmes como os dos Trapalhões faziam 5, 6 milhões de espectadores.

E a idéia do Onda Nova?

Ícaro - Depois do Olho Mágico, a gente resolveu fazer um filme nosso, bacana...

Um filme com mais cara de turma...

Ícaro - Não, esse filme seria o Estrela Nua. Eu escrevi o roteiro do Estrela Nua, era um roteiro mais caro, mais complicado. Para fazer precisava do dinheiro da Embrafilme, nós e o produtor colocamos o filme na Embrafilme. Nesse meio tempo o Zé Antônio teve um acidente de moto e ficou um tempo parado. E o produtor nos procurou, o projeto tava lá na Embrafilme parado, o nosso dinheiro acabou e o produtor falou “precisamos fazer outro filme enquanto não sai o resultado”.  Então, tinha essa idéia, que veio por sugestão da Cristina Mutarelli, de fazer um filme sobre um time de futebol feminino – mas era só isso. Aí a gente levou para o Adone Fragano e ele achou ótimo! Imagina, um time de futebol de mulheres (risos). O produtor já tinha confiança na gente como diretores, então o roteiro foi basicamente escrito enquanto ia sendo filmado. A gente tinha um roteiro bem tosco, bem alinhavado, e todo mundo já confiava na gente. Mas, o Onda Nova (foto acima) teve um grande problema: quando ele ficou pronto já tinham entrado os filmes de sexo explícito, e aí o mercado deu uma radicalizada. Ou você tinha filmes com sexo explícito ou sem sexo, e o Onda Nova era uma comédia erótica leve.

Pensando nisso, existe uma diferença entre o Olho Mágico e o Onda Nova porque no Olho Mágico você percebe essa quebra “agora as cenas de sexo” e no Onda Nova tem mais a ver com a libertinagem de um grupo de amigos.

Ícaro - A nossa grande proposta era: “tudo bem, a gente não tem o menor problema em fazer uma pornochanchada, mas só que não vamos fazer pornochanchadas moralistas”. O que nos incomodava é que as pornochanchadas sempre tinham no fundo um ranço moralista: a mulher ou o marido infiel no fundo se ferrava, tinha um julgamento moral, tinha uma maneira preconceituosa de lidar com a homossexualidade, com a mulher. Tanto que o Olho Mágico já tem essa tentativa de não ser tão moralista e no Onda Nova (foto) já não tem absolutamente.

O Onda Nova foi o primeiro filme que eu assisti e eu gostei muito do filme por causa disso: vamos falar de sexo numa boa, das traições, dos desejos, da homossexualidade, as mulheres transando no carro...

Ícaro - É, mas as cenas de lesbianismo eram uma obrigação.

Bom, pelo menos as cenas não eram filmadas como cenas “homens, olhem e fiquem loucos”.

Ícaro - É, era filmado mais casualmente. Bom, o outro tinha a situação da prostituta, de abrir uma janela mesmo. Porque no primeiro a dúvida era como a gente ia inserir 17 cenas de sexo!

Mas, o que eu acho genial é que a personagem da Carla Camurati em Olho Mágico se apaixona por aquele universo, se apaixona pela Tânia Alves tanto até que elas terminam juntas e em festa e ela ainda mata o algoz, o cafetão (risos). O Estrela Nua já flerta mais com o gênero.

Ícaro - É... o Estrela Nua tem um problema porque o roteiro não está tão bem resolvido. Hoje em dia julgando a coisa a posteriori eu acho que a gente queria mostrar que a gente tinha cultura, então ele é todo cheio de referências ao universo do Nelson Rodrigues e uma referência direta à Adriana Pietro. Era um filme declaradamente de cinéfilo e vendo hoje em dia talvez ele tenha citações demais. 

Ele é um filme mais truncado porque transita em diferentes níveis, a vida passada da atriz, a loucura, a dubladora que se relaciona com esse universo mórbido.

Ícaro - É, a pessoa tem que ter muita referência cinematográfica. Hoje em dia eu fico pensando se talvez não teria sido bom usar alguns efeitos de trucagem para delimitar claramente o que era o filme dentro do filme e o que era verdade porque, na época, a gente achou que conseguiríamos fazer isso através da linguagem do cinema e da direção de arte.

Esse teve dinheiro da Embrafilme.

Ícaro - Foi co-produção sim. O Onda Nova foi um grande fracasso, foi o nosso filme que foi pior. Quando a gente tava terminando o Onda Nova, a Embrafilme aprovou o Estrela Nua. Tinha outra questão, que era a seguinte: quando foi para a censura, a gente tinha pedido 18 anos, mas a primeira comissão que assistiu liberou para 16 anos com cortes. A gente queria o filme sem cortes, e a segunda comissão liberou para 18 anos sem cortes. Aí, deu aquele impasse entre as duas comissões. Então foi acionada a famigerada Solange Hernandez, a diretora do Departamento de Censura durante muitos anos, bem no final do regime militar, e ela interditou o filme julgando que ele era amoral. Na época, esses filmes só eram liberados com mandato de segurança, mas custava dinheiro. E, estava começando o movimento de filmes como Império dos Sentidos e Calígula, estavam começando a chegar muitos filmes pornôs de fora. Digo, esses filmes que não eram pornôs mas que poderiam ser pornográficos... O Império dos Sentidos é um grande filme. E aí o produtor não ia gastar dinheiro com o mandato de segurança para um filme que não tinha sexo explícito, só se a gente colocasse cenas de sexo explícito no meio do filme, o que a gente absolutamente não queria fazer, porque isso não era o combinado com nenhum dos atores e das atrizes. Então o filme ficou 6 meses parado na censura, passou por todos os trâmites legais e no final foi liberado para 18 anos – só que quando foi liberado o filme o mercado já tinha dado aquela radicalizada. O filme foi lançado no centro da cidade, no Cine Marrocos, e na outra sala estava passando o primeiro ou segundo filme de sexo explícito feito aqui no Brasil, na Boca, chamava-se Penetrações. O público chegava e olhava Onda Nova e Penetrações e imagina...a gente ficava desesperado, o filme foi muito mal, embora hoje eu ache que talvez tenha sido o filme que envelheceu melhor. Mas aí, a gente estava com o Estrela Nua saindo, então acho que superamos bem o trauma. Porque o advento do sexo explícito foi uma catástrofe na Boca do Lixo, muita gente perdeu emprego.

Porque importavam muito filmes?

Ícaro - Não só porque importava, mas você não precisava de ator. Todos os atores faziam filmes na Boca do Lixo, o Fagundes, o grande galã da Boca era o Nuno Leal Maia com Bem Dotado, O Homem de Itu (1978), a Renata Sorrah fez Lua de Mel e Amendoim (1971), a Lílian Lemmertz, a Selma Egrey, a Vera Fischer era a rainha da pornochanchada, quer dizer as pessoas pararam de trabalhar. Porque aí os atores eram profissionais do sexo. Os técnicos também largaram porque os filmes não pagavam, só os dois primeiros pagavam bem e aí depois pagavam cada vez menos porque já não importava tanto a fotografia.

Mas o Antônio Meliande continuou.

Ícaro - Continuou com um nome falso, Tony Mel (risos). Mas também parou logo depois. Os produtores pararam de produzir, o Galante parou de produzir, o Massaini fez uma ou outra coisa, os montadores pararam, foi uma catástrofe trabalhista na Boca do Lixo.

E o Estrela Nua, rendeu? Ele é mais difícil do que os outros dois.

Ícaro - Ele é mais difícil do que os outros dois, mas ele não foi de todo mal. Ele pegou um ano ruim, 1985, foi na época da inflação galopante e tinha caído muito a renda do cinema nacional. O filme saiu de cartaz e pouco depois entrou o Plano Cruzado que congelou os preços e as filas do cinema aumentaram uma barbaridade. Quem segurou o filme e lançou depois se deu muito bem.

E depois do Estrela Nua?

Ícaro - Bom, depois do Estrela Nua, eu e o Zé Antônio já não estávamos tão afinados, tínhamos decidido que não dava mais para dividir o salário de diretor já que ninguém queria pagar dois diretores e eu estava em um outro projeto que eu estava começando a escrever. Eu fiz algumas coisas de publicidade, outros roteiros e tinha um projeto que eu estava acertando com a Embrafilme que se chamava A Tela Rasgada e era a história do começo do filme pornô na Boca, a história de um montador sem trabalho na Boca destruída e juntava com a história de um estúdio que fazia filme pornô e fazia tráfico de mulheres para lugares distantes. Eu tinha outros roteiros, mas nesse meio tempo acabou a Embrafilme. Então eu fiz publicidade, fiz coisas para TV, documentário, tive que me virar porque ninguém tava fazendo nada. O Zé Antônio ainda conseguiu filmar porque o projeto de O Corpo foi um dos últimos a ser aprovado pela Embrafilme. No ano que saiu O Corpo tinha um ou dois filmes brasileiros.

E qual foi a conexão com o Luz nas Trevas?

Ícaro - Eu estava em uma comissão do fomento e tinha um monte de projetos. O projeto do Luz nas Trevas não foi aprovado, mas quando eu comecei a ler eu achei incrível. Eu falei com o Joel Pizzini e ele me chamou para conversar com a Helena Ignez e eu disse que tinha adorado e que se eu tivesse dinheiro eu compraria os direitos do filme, mas, eu estava com um outro projeto uma comédia chamada La Cucaracha, inspirado em A metamorfose, trazido para o Brasil. Foi assim que eu conheci a Helena e sempre que a gente se encontrava eu perguntava como andavam as coisas, mas parecia que não estava rolando. Aí no ano passado eu encontrei com ela na Jornada de Cinema Silencioso na Cinemateca, perguntei sobre o projeto, ela disse que não estava conseguindo captar e no dia seguinte ela me ligou e perguntou se eu não queria dirigir o filme com ela. Eu dei mais uma olhada no roteiro e no dia seguinte eu liguei para ela e topamos fazer o filme. A gente deu uma reformatada, uma organizada no projeto. Nesse meio tempo, ela estava muito empenhada com o Canção de Baal e a gente se entendeu muito bem. Basicamente é o mesmo projeto, o roteiro é essencialmente o mesmo, mas a partir daí a gente começou a ganhar vários editais, tem filme que tem a sua hora.

Mas e a obra do Sganzerla? Você a tem como referência?

Ícaro -  Eu resolvi fazer cinema quando eu vi o Bandido da Luz Vermelha. Eu freqüentava o Clube de Cinema de Santos, via os filmes do Cinema Novo, mas quando eu vi o Bandido da Luz Vermelha (foto abaixo) eu resolvi que eu realmente queria fazer cinema.

Quando eu estava assistindo aos seus filmes e fiquei tentando achar conexões entre os seus filmes e o Sganzerla.

Ícaro - É completamente diferente, porque quando a gente caiu na realidade da Boca já era um esquemão. Mas, mesmo no esquemão, eles nos davam muita liberdade para filmar, se você se encaixasse dentro daquela receita você fazia. O que tem principalmente é que, por exemplo, o cineclube da ECA que eu fazia parte se chamava Cineclube Luz Vermelha; toda a minha geração da ECA o Sganzerla foi o cineasta que nós nos identificávamos: a quebra godardiana, a quebra brechtniana com humor e a referência ao cinema, de um cinema que dialoga com o cinema. Mesmo o Olho Mágico, naquela época já se dizia que a pornochanchada estava decadente e a gente brincava que o filme era a última pornochanchada. Na verdade, a última chanchada acabou sendo o Onda Nova. Tem também o império da cena. A cena além de ter uma função narrativa ela deve valer por ela própria, poderíamos dizer que tudo isso faz parte do processo “sganzerliano”.

E como está o processo do Luz nas Trevas?

Ícaro - Está super bem, a gente acabou de receber a notícia que a gente ganhou o PAC e assim a gente vai conseguir fechar o orçamento para a filmagem que deve começar no início do ano que vem.

Tem muito humor no Luz nas Trevas também?

Ícaro - Tem. A idéia do filme em termos de tratamento é de que nós não vamos copiar o Bandido. O Rogério tinha deixado umas 600 páginas escritas, dava uns dois filmes e tinha duas versões. Ele deixou duas versões, com muitas cenas repetidas, mas duas versões. Em uma delas, o Bandido revia a vida dele; e a outra versão, que foi a que nós adotamos, era a relação do Bandido com o seu filho. A gente não quis refazer o que já era uma obra-prima então a gente adotou a linha do filho, mas todas as cenas foram escritas pelo Sganzerla, a gente são acrescentou nada, só tiramos, fizemos opções.

Já tem ator?

Ícaro - O Ney Matogrosso vai fazer o Bandido velho e o novo vai ser o André Guerreiro que é ator e diretor de teatro. É o Bandido 35 anos depois, quando o filho, que é um trombadinha, descobre que ele está na cadeia e vai visitá-lo. O menino vira um grande bandido, no estilo do pai, que se chama Tudo ou nada.

É bem parecido com o Encarnação do Demônio: um personagem em retrospecto, 30 anos depois, e o que é feito desse personagem nesse mundo de hoje.

Ícaro - Na verdade, muito pouca coisa mudou. O Bandido da Luz Vermelha de certa maneira é um filme profético porque tudo aquilo que tem no Bandido só se acentuou: a violência, a globalização, o caos urbano.

Dezembro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br

« Volta