olho no olho
A questão humana
Bate-papo com Laurent Cantet
por Rodrigo de Oliveira

Logo que criamos a revista, deixamos claro nosso interesse por falar com realizadores o mais frequentemente que fosse possível – o que, infelizmente, se revelou menos frequente com os anos do que nós gostaríamos, mas isso são outros quinhentos. Também falávamos naquele começo que tentaríamos falar com os diretores sempre que eles não estivessem em processo de lançamento de um novo filme, já que geralmente a massificação deste processo acaba levando a um discurso quase pronto e repetitivo, momento pouco afeito a papos realmente relevantes, por diferentes. Se isso continua sendo verdade no nosso contato com os cineastas brasileiros, não podemos escolher de fato o momento em que se consegue um encontro pessoal com um cineasta internacional. E é fato que, por mais que tenhamos conseguido conversas relevantes nos últimos anos por email com vários de nossos cineastas preferidos (Jia Zhang-ke, Naomi Kawase, Apichatpong Weerasethakul, Miguel Gomes), nada substitui a organicidade de uma conversa, como diz o título desta seção da revista, “olho no olho”. Afinal, é ali que o crítico pode dar continuidade a uma resposta, e articular mais as ideias. Por isso tudo, achamos que a vinda ao Brasil de Laurent Cantet, o diretor do mais recente ganhador da Palma de Ouro (na foto acima, com a mão no queixo), mereceria a quebra dessa nossa “regra de ouro” - algo que a entrevista abaixo comprova. (Eduardo Valente)

Para começar, queria voltar à recepção que Em Direção ao Sul teve na França. Li algumas entrevistas em que você se mostrava um pouco irritado com o fato de alguns críticos apontarem que você estaria traindo um certo caminho político-social que seu cinema havia tomado com seus dois filmes anteriores, que tratavam do ambiente corporativo e trabalhista europeu, que um filme histórico, rodado no Caribe, com gente seminua, seria uma traição à marca política dos filmes anteriores...

Nesse caso eu estive sempre muito seguro que Em Direção ao Sul era um filme ainda mais político que todos os outros, lidando com questões que são muito mais amplas que as anteriores: a relação entre o Norte e o Sul, o significado simbólico e prático de um turista chegar num lugar devastado como o Haiti com seus dólares, e tudo isso, para mim, já dizia o suficiente sobre o que havia de político no filme.

Mesmo não seguindo o tal caminho político pedido pelos críticos lá atrás, em contato com Em Direção ao Sul e, sobretudo, agora com Entre os Muros da Escola fica muito claro que há de fato um interesse seu pelas “grandes questões”, seus filmes, por mais que tenham tramas íntimas muito bem talhadas e específicas, também estão lidando majoritariamente com grandes tópicos da política e do pensamento mundial: não se trata apenas do colonialismo francês, mas de uma idéia de colônia e metrópole que pode ser aplicada a diversos países e situações, não se trata apenas do sistema escolar francês, mas de qualquer sistema escolar que tenha eco neste que você apresenta...

Eu apresentei Entre os Muros da Escola em 25 países até agora, e é impressionante como a cada dia eu recebia as mesmas perguntas, as mesmas relações do filme aplicadas nestes outros lugares. É uma questão que parece universal – não apenas a de um sistema escolar, mas daquele sistema, daquele conjunto de pessoas muito diferentes entre si, marcadas pelas origens sociais ou étnicas, envolvidas numa certa burocracia da estrutura escolar.

E como essas grandes questões surgem para você, no processo criativo? Você pensa nelas antes de começar um projeto, e aí então começa a talhar uma história que sirva a esse propósito inicial? Vendo os seus filmes, eu não sinto uma disposição programática muito forte, no sentido de uma agenda política que não apenas é anterior, mas que é o próprio objetivo daquilo que se filma. Mas esses esbarrões nos grandes tópicos de discussão estão lá, e eles às vezes parecem um bom catalisador, mas outras vezes parecem uma armadura que pode intimidar aquilo que se dá sob ela.

Algumas coisas estão muito claras para mim quando começo um projeto. Neste filme, por exemplo, era óbvio para mim que eu queria dar uma outra imagem destes meninos. Eu estava convencido de que se você realmente ouve o que eles têm a dizer, eles são muito mais interessantes do que a maneira habitual com que a sociedade os observa. Essa era uma determinação de início para a construção do filme. A segunda era mostrar como a escola poderia de fato ajudar alguém a crescer. Que a escola como ela existe hoje não é algo descolado da sociedade, mas parte dela. Esses muros não a protegem da sociedade, as questões da sociedade lá fora atravessam o ambiente da escola. Esses dois pontos eu queria ilustrar com o filme. E, por outro lado, a história é sempre um ponto importante para mim, mesmo que às vezes ela seja mínima. Eu sempre tento lidar com essas questões fundamentais sem fornecer uma tese sobre elas. Quero mostrar a maneira como os personagens sofrem por algo, ou sentem esta coisa em suas vidas, o que é verdadeiro e diz respeito àqueles personagens, e não apenas “eu sei disso de antemão e direi isto através de você”. Eu não sei de nada, eles sabem.

Na construção do filme, você começou com a história do Souleymane, ele foi o primeiro personagem criado, e que só depois você conheceu o François Bégaudeau e daí o filme tomou o corpo que tomou. Mas o Souleymane é um personagem muito específico: ele tem toda aquela relação com a África, com a maneira com que professa essa origem (através da tatuagem no braço, por exemplo), e também a presença da família, tanto a fantasmática, com um pai que nunca aparece, mas que é temido; como a presencial, o irmão e a mãe que comparecem à escola. De fato ele se torna, em algum momento, o aluno ao qual a narrativa dá mais atenção, assumindo um protagonismo. Imagino que essa possa ter sido uma grande questão que antecedeu o personagem, a origem cultural, a imigração – sobretudo vindo de um filme como Em Direção ao Sul, onde existem personagens muito próximos ao Souleymane. Então como um personagem como ele chama sua atenção neste primeiro momento, para que então se desenvolva o mundo em torno dele?

Eu me lembro de como eu comecei a escrever. Eu imaginei esta reunião de um Conselho de Disciplina, como aquela que aparece no fim do filme, e a primeira frase que eu escrevi foi: a mãe dele não fala francês, então ele precisa traduzir o que ela diz, e o que ele fala é que “ela disse que eu sou um bom garoto”. Esse foi o verdadeiro começo do roteiro. E a partir dessa cena eu pensei que precisaria desenvolver o jeito que ele se posiciona dentro da classe. Algum tempo depois eu conheci o François num programa de rádio, onde ele estava promovendo seu livro, e então quando finalmente li o livro eu vi que havia ali a imagem do que uma classe de alguém como Souleymane poderia ser. Usamos trechos do livro para enriquecer o ambiente daquilo que, no começo, era apenas uma trama. Comecei com essa idéia de um menino que precisa traduzir sua própria mãe: de que as escolas estão lidando com crianças que não tem nenhuma relação real com a cultura que eles supostamente deveriam experimentar nas salas de aula. Souleymane tem que se esforçar dez vezes mais do que eu mesmo precisava me esforçar quando estava na escola, porque eu vivia numa família onde todos falavam francês, onde todos estavam lendo livros, e para ele é tão difícil aceitar o que ele está aprendendo aqui, porque se ele não consegue dar um sentido pessoal para aquilo a que está sendo submetido na escola, ele não consegue aprender nada.

Continuando pelo caminho dos outros filmes, eu vejo que para além de lidarem frontalmente com essas grandes questões, seus filmes também tem um modo de operar muito específico. Você se aproxima desses pequenos universos que funcionam como verdadeiros sistemas, como máquinas que já trabalhavam daquele jeito antes do filme chegar até ali, e que continuaram com esse mesmo funcionamento depois que o filme partir. Mas num filme como Recursos Humanos eu sinto que há algo a respeito daquele ambiente que eclipsa o seu modo de filmar: é um ambiente morto, aquela maneira de lidar com as questões trabalhistas, sindicais e familiares chegou a um beco sem saída, e não há mais como revitalizá-lo, tentar preenchê-lo de alguma vida seria atentar contra sua própria natureza. Em Entre os Muros da Escola acontece exatamente o oposto: é um ambiente ainda muito vivo por mais que o sistema que o gere parece também falido, e essa vitalidade se reflete nos personagens. Se em Recursos Humanos os personagens tendem a parecer um pouco unidimensionais, porque acabaram se colando demais ao ambiente morto que habitam, em Entre os Muros da Escola a dinâmica totalmente outra, a escola se revitaliza e ganha novas questões a cada ano, a cada mudança de perfil dos alunos, da configuração das turmas. Como se aproximar desses personagens que recusam a unidimensionalidade, que estão em transformação constante?

Bem, no começo havia o livro. François havia sido professor por 10 anos, mas ali ele descreve apenas um ano, o ano anterior à escritura do livro. E ele se aproxima muito da realidade, não só pelas questões de que apresenta, mas na maneira como as crianças estão falando, na maneira como se comportam, em suas referências. É um livro com espírito de documentário, num certo sentido. E outra coisa é que organizamos, do começo ao fim do ano escolar, ou seja, de outubro até junho, uma oficina na escola com todas as crianças que queriam participar do filme. E realmente ouvimos o que elas tinham a dizer sobre suas próprias vidas. Nós enriquecemos o roteiro com todas essas suas preocupações, com seus sonhos, as crianças foram muito importantes já no processo de escritura. Isso é o que nos permite ser realmente precisos na maneira como os descrevemos.

Há uma coisa muito alardeada no seu filme que é o trabalho com não-atores, com atores não-profissionais. Você trabalhou com não-atores em todos os seus filmes, eu acho, mas neste aqui parece que há uma atração maior para as pessoas, são essas crianças que, como dizem, estão “interpretando uma versão ficcional de si mesmos”.

Às vezes, sabe, eles estão muito distantes mesmo daquilo que são na vida real...

Exato, e é isso que me chama atenção nessas reações. Nessa expressão, as pessoas parecem prestar mais atenção na parte do “si mesmos” do que na parte do “ficcional”. Você já fez um filme com isso, A Agenda, que é sobre como existe a obrigação de uma auto mise-en-scène nas nossas vidas cotidianas, sobre estarmos sempre interpretando papéis de nós mesmos, produzindo encenações...

E na escola é exatamente a mesma coisa. A classe é um teatro onde cada um tem um papel a interpretar. Você é o durão, o que faz as pessoas rirem, o bom estudante, o mau estudante. E os professores estão constantemente representando também: eles precisam ficar atentos se seu público está respondendo àquilo que estão dizendo, ter essa eloqüência que faz com que as pessoas queiram te ouvir. Acho que há mesmo essa mise-en-scène de si mesmo na classe.

Nesse sentido, e você mesmo já falou disso, as pessoas parecem sempre muito excitadas com essa marca documental que há no filme, no próprio registro, mas toda vez que o filme me atinge não é porque ele chegou mais próximo da realidade, mas sim porque chegou ao mais próximo do que a melhor ficção pode fazer.

Nós sempre quisemos começar o filme como uma espécie de crônica daquela turma, sem que nenhum personagem se impusesse, um olhar quase neutro que tornaria mais potente o momento em que a ficção chegasse, mesmo que discretamente, no meio desse caos. Eu gosto dessa construção: vir de algo que parece anárquico e então perceber que tudo foi planejado para que se chegasse ao fim do filme com um forte senso de ficção. Na verdade, eu sempre tenho medo de roteiros muito mecânicos, roteiros onde tudo é lógico, onde tudo tem uma razão e toda razão tem uma repercussão na história. Meu diretor preferido é o Roberto Rossellini, e vendo os filmes dele se percebe que ele nunca pensa em termos de lógica, porque a vida não é lógica, de jeito nenhum. A vida é sempre acidental, os personagens não são lineares, eles podem fazer uma coisa agora e outra completamente contraditória dois segundos depois, e isso não invalida nada do que ele tenha feito. Isso é o que torna a vida interessante, para mim. Porque quando se escreve um roteiro você está sempre com tanto medo que as pessoas não entendam o que você quer dizer que você acaba construindo uma linha lógica muito forte, e é difícil escapar dela. Eu tento produzir linhas muito mínimas, tramas muito mínimas, para que as coisas possam de fato acontecer diante da câmera.

Há um plano do filme, um plano muito específico e único de um dos alunos, o Carl, onde não há contexto nenhum – nem mesmo no enquadramento, não se vê as bordas do quadro-negro, apenas sabemos que ele está diante de um, e Carl está falando para a classe, mas como também não há contextualização da classe, ele provavelmente está falando diretamente para a câmera. Não há outro plano assim no filme todo – e esse é um dispositivo que você já havia utilizado no Em Direção ao Sul, em depoimentos com as três mulheres protagonistas. Quando se está lidando com não-atores e com esse sentimento documental, se está lidando com algo muito caro ao cinema que é a noção de verdade. No caso do Em Direção ao Sul me parece que você dá chance a essas mulheres de falar sobre coisas que normalmente elas não falariam nem entre elas mesmas, então a câmera está ali como uma espécie de confidente. Mas no caso específico desse plano do Carl no Entre os Muros da Escola, a coisa opera por outros parâmetros...

Posso te explicar como chegamos àquele plano, e foi na verdade um acidente. Carl devia fazer seu auto-retrato numa outra seqüência, quando estão digitando seus trabalhos no computador e, por fim, lêem os auto-retratos uns para os outros – mas não ficou muito bom. Ele não estava bem, e a reação dos outros estava muito descolada da cena, não ficou bom mesmo. E então decidimos fazer esses auto-retratos em frente ao quadro-negro para cada um deles, a câmera frontal. Pensamos em usar esses planos como leit motifs em vários momentos esparsos do filme. Editando o filme nós tentamos encaixar esses planos descontextualizados, mas não funcionava, porque o filme estava funcionando mesmo à base da energia de cada uma daquelas seqüências de interação entre os alunos, e a cada vez que chegávamos a esses momentos de auto-retrato era como uma queda desta energia. Então decidimos não usá-los, mas como a cena inicial do Carl lendo seu auto-retrato para a classe não havia ficado muito boa, nós colocamos seu momento no quadro-negro ali no meio, pensando só em ocupar o espaço – a idéia era refilmar Carl com a classe e ignorar aquele plano. Mas quando vimos aquilo, esse plano dava uma força ao personagem que ele nunca teria na situação normal de cena. É simplesmente muito mais emocionante desse jeito do que do outro, e decidimos colocá-la mesmo assim, sem nos perguntarmos muito se aquilo acentuava algum aspecto teatral que não existia até então... O plano me emocionou profundamente. A sensação confortável que se tinha até ali de quase um cinema-verdade de repente é quebrada por esse plano dubiamente metalingüístico. E isso marca ainda mais a presença desse personagem, porque ele é um outsider entre os outsiders... Essa é outra das razões de mantermos o plano: ele está chegando agora, ele não tem tempo de se impor na classe, mas tem tempo de se impor no filme.

Você diz que tentou filmar essa sala como um espaço de democracia, e no fim do filme nós sentimos que a democracia que apresentada ali é sempre baseada no conflito e no confrontamento. Isso se expressa de maneira mais direta na figura do professor em relação aos alunos, mas nós não sentimos isso necessariamente através da colocação da câmera.

Nós filmamos exatamente como se filma uma partida. Duas câmeras de um lado e do outro, a bola vem de um lado, depois volta, e as câmeras repetem essa dinâmica, uma geografia e um espaço que é bem simples. Isso deixa os participantes numa espécie de mesmo nível, topográfico até. O professor não é filmado como o mestre da situação, e os outros como receptores daquelas palavras. Todos estão no mesmo nível.

E a câmera não força o conflito. Se você pensa no jeito de filmar dos irmãos Dardenne, por exemplo, a câmera está sempre pressionando os personagens. No seu filme a tensão está lá, ela é palpável, mas a câmera não tenta aumentá-la.

Quando estou filmando, eu sempre tenho medo de situações de paroxismo. Gosto dos momentos onde as tensões são aquelas que se tem normalmente, e não excepcionalmente. Esses pequenos momentos de tensão. Só há uma cena que eu diria que é um tanto violenta, que é quando o professor desce ao pátio da escola. Porque a relação ali é diferente, as regras já não são as mesmas, ele está numa espécie de arena, e ali sim eu acho que o confronto é mais excepcional que a média. Mas dentro da sala de aula existem sempre esses pequenos conflitos, sobretudo com crianças daquela idade. É o momento em que você tenta se opor ao modelo de vida que os adultos te impõem. Todos nós experimentamos aquilo uma vez na vida, e não é uma guerra: é só uma maneira de amadurecer.

As crianças do filme são naturalmente as que atraem maior atenção no filme, mas o personagem do François me parece ocupar um espaço realmente decisivo, e isso se dá desde a primeira vez que ele aparece em cena – o filme dá esse tipo de atenção a ele. É a jornada dele. Isso é um pouco comum nisso que, mal rotulando, eu chamaria de “filmes sociais”, onde o diretor usa um personagem parecido consigo mesmo para entrar num universo que é bastante diferente do seu próprio, um diretor que se duplica em seu personagem. Mas nesse caso me parece mais do que simplesmente você transmitindo ao François aquelas coisas que você pensa sobre esse universo diferente. Como o personagem do François foi criado? Eu imagino que haja muito da história pessoal dele na atuação...

Não exatamente. Na maneira como atuar diante da classe, sim. Ele acredita que o fato de ser o professor não pode condicionar o jeito que ele fala com os alunos, é uma maneira de respeitá-los, falar com eles do mesmo jeito que se fala normalmente na vida, com alguém que se encontra na rua. Ele realmente gosta desse confrontamento, da discussão, ele é assim na vida real – o que me interessa no livro é exatamente isso, e por isso eu decidi trabalhar com ele. O personagem do livro é bem próximo do personagem do filme. Com exceção do final, quando ele está enfrentando o dilema do que fazer com o Souleymane. Eu acho que ele não agiria daquela maneira, isso ele criou a partir do roteiro, para aquele momento. Mas no que tange a prática do ofício, ele é mesmo muito próximo do que está no filme.

Há uma diferença na relação que ele estabelece com os alunos e com a própria dinâmica do registro dentro da sala, e a maneira como ele se deixa ver fora dela – ali é possível ver que não há apenas a migração de uma pessoa do mundo real para o filme, mas de fato uma construção.

Essa construção foi baseada numa coisa em que concordamos desde o início: não queríamos que ele fosse o professor perfeito. Essa figura mágica que sabe exatamente o que dizer a cada momento, que ajuda essas crianças a amadurecer e se tornar pessoas maravilhosas. O professor não devia ser um modelo, um exemplo. Sempre queríamos que ele se confrontasse com seus próprios fracassos, que pensasse nas maneiras como poderia ter agido diferente, sentimentos mais próximos da experiência normal de todo professor.

No fim, o professor assume uma convicção social muito forte do seu papel dentro do jogo daquela escola, mas ele também está tomado por pura culpa, sente-se culpado em relação ao episódio do xingamento com as alunas.

Na verdade eu acho que ele está bem próximo dos protagonistas de todos os meus outros filmes. Ele é um tipo de idealista, que tem uma maneira muito firme de se posicionar diante do mundo, mas que se confronta com um mundo onde estas opções não têm espaço. E no fim, como em todos os meus filmes, meus personagens sempre precisam voltar a funcionar sob as regras que no começo eles haviam recusado. Em A Agenda, especialmente com um personagem que está tentando escrever sua própria história, que inventa uma persona diferente, mas no fim ele volta à ordem social porque a pressão é forte demais. Em Recursos Humanos, os mais jovens, sonhando com uma nova maneira de compreender a fábrica, tentando ser mais humanos com a maneira como lida com a fábrica, e no fim também é obrigado a encarar seu fracasso.

Falando de François, você dá atenção tanto aos professores quanto aos alunos, eles têm seqüências próprias, dilemas e encenações próprias. Foi uma preocupação sua, ao opor estes dois grupos de pessoas, que os alunos acabassem parecendo as vítimas, ou os mocinhos incompreendidos, enquanto os professores surgiriam como os vilões, os bandidos sem muito tato. Há um professor de tecnologia que tem uma explosão muito violenta contra os alunos, bastante ofensiva até...

Primeiro, quando eu filmo sempre tento não julgar meus personagens. Tento dar conta da complexidade da situação na qual eles são convocados a agir. E essa complexidade torna impossível escolher entre um e outro. Todos estão trabalhando juntos, lidando um com os outros, e acho que não existe de fato um grupo protagonista entre estes dois. Ambos estão encarando as mesmas dificuldades, tentando ser quem você espera ser. Nessa cena em que um dos professores perde a cabeça, e diz que não quer trabalhar mais, que os alunos são animais... a próxima vez que este professor surge em cena, ele é o que parece mais dedicado à defesa dos alunos, sem que para isso precisássemos vê-lo passar por um exame de consciência dentro de cena ou nada disso. A sociedade é tão complexa que você tem sempre que se confrontar com suas próprias contradições, e com as contradições de um sistema, sem que para isso haja alguma linha lógica a qual se segurar – não é mesmo uma questão de lógica. Eles também estão improvisando aquilo que estão fazendo. Quando se é professor, você tem 40 crianças sob sua guarda, sempre perguntando, sempre falando, e você não tem tempo para pensar completamente na sua resposta, é preciso ser eficiente. Eles não te dão tempo para hesitar. E todas as questões que estão discutindo, sobretudo ao fim, antes do Conselho Disciplinar, quando eles estão decidindo se expulsam ou não um aluno, nenhum deles tem essa resposta, eles estão improvisando suas posições na hora. Eles são pessoas no trabalho, lidando com uma questão do trabalho, e também com uma questão humana.

Voltando ao jeito como você filma aquele ambiente, as únicas fugas da câmera para o espaço de convivência das crianças, o pátio da escola, se dão sempre das janelas para baixo, a câmera nunca se atreve a ocupar aquele espaço do mesmo modo que ocupa a sala de aula. São apenas duas as exceções, a primeira na grande discussão em que François é colocado pelos alunos numa espécie de arena, como você mesmo disse, e a outra na seqüência final, na partida de futebol que reúne professores e alunos. Há um sentimento inevitável de “final feliz” nesta confraternização.

Aquela partida significa mais que todos ali desejam que o sistema continue a funcionar. É uma falsa reconciliação. “As férias chegaram e podemos todos ser amigos...”. Mas é por isso também que eu quis aquelas tomadas da sala de aula vazia no final: aquele cenário está apenas esperando pelo novo ano, que será exatamente igual a este ano, e no fim eles jogarão futebol porque, bem, estão todos no mesmo barco.

Março de 2009

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