olho no olho
"Quero entrar no fogo e me queimar!"
por Cléber Eduardo e Lila Foster

Depois de cinco curtas-metragens, que começaram a ser realizados na primeira metade dos anos 90, e dois longas-metragens concluídos nos anos 2000 (Subterrâneos - foto ao lado - e A Concepção), o paulistano e flamenguista José Eduardo Belmonte, crescido e formado em Brasília, faz uma retrospectiva verbal de sua trajetória para a Cinética – ainda sem revelar muitos detalhes de seu terceiro longa, atualmente em montagem (a não ser que foi rodado em São Paulo, quase todo nas ruas do centro, com improvisos de atores em uma estrutura de melodrama, mas sem explosões dos atores). A conversa durou mais de três horas. Começou na casa do editor Cléber Eduardo, com a presença da redatora candanga Lila Foster, e estendeu-se pelo boteco libanês Chez Samir, no Paraíso, em São Paulo, onde muitas cervejas foram consumidas para acompanhar um falafel já cult. Abaixo, um resumo desse encontro

Cinética: Você realizou cinco curtas em Brasília, todos em 35mm – mas reza a lenda de que, ao menos nessa época, os anos 90, Brasília não tinha câmera em 35mm. Como era produzir sem equipamento e laboratório na sua cidade?

José Eduardo Belmonte: Tinha um agravante que era a fase do Collor. O único filme então sendo rodado no país era A Terceira Margem do Rio, do Nelson Pereira dos Santos, do qual participei como estagiário de direção. Era terra arrasada. O curso de cinema era eu e André Luiz Cunha. Então, vimos uma saída, sinceramente, marqueteira. Tinha uma câmera 35mm, que estava sucateada, mas funcionava: era a câmera reserva do filme do Nelson Pereira. Eu e André pensamos em pegar essa câmera, fazer um curta e ver se o colocávamos no Festival de Brasília, na competição principal – porque o segmento de 16mm estava sucateado, exibido em uma parede do Hotel Nacional. Bastava não fazermos nenhuma besteira para conseguir uma vaga no festival.

Cinética: A opção por filmar em 35 mm era mais questão estratégica, de visibilidade, que de fato uma escolha estética  para você naquele momento?

Belmonte: Sempre achei mais barato filmar em 35mm, porque, organizando bem a produção e filmando pouco, o custo de pós-produção é menor. Além de ser o mais próximo, em termos de imagem, do que eu imaginava.

Cinética: A produção de cinema passa muito pela UnB em Brasília. Também foi seu caminho?

Belmonte: Quando fiz comunicação, era tudo junto, de jornalismo a publicidade, passando pelo cinema. Meu pai queria que eu fizesse jornalismo, porque cinema era uma coisa E.T. no Brasil, ainda mais em Brasília. Mas, na hora da matrícula, de escolher um curso, eu falei cinema em vez de jornalismo. Conheci o André na fila de inscrição, falei para ele que faria cinema e, sem nem saber que lá tinha cinema, ele decidiu na hora fazer também. Éramos nós dois e mais um cara. Curso precário. Não tínhamos nem negativo. Depois, chegou lá uma câmera de vídeo e uma de 35mm. O curso durou de 1988 a 1994.

Cinética: Tiveram aulas com o Vladimir Carvalho?

Belmonte: Fomos os últimos da turma do Vladimir. Era uma época muito deprimente. Ninguém acreditava no que estava fazendo ali. Para que estávamos fazendo aquilo? Vladimir tinha terminado de fazer Conterrâneos Velhos de Guerra, tinha vendido o apartamento. Era um momento em que, para fazer cinema, vendia-se carro e apartamento. Ele morava na casa da namorada porque não tinha mais onde morar. Tinha sido aposentado compulsoriamente pelo Collor. Era uma aula de documentário. E ele era o mais atualizado de nós, porque via muitos filmes novos. Nos apresentou o Terence Davies, o Godfrey Reggio.

Cinética: Qual era a visão de documentário nas aulas do Vladimir? Ele é sobretudo um documentarista da memória, da presentificação do passado.

Belmonte: Eu tinha uma rixa muito grande com o Vladimir, porque eu queria fazer ficção, mas ele tentava me convencer de que, em Brasília, naquelas condições, a opção natural era o documentário. Ele era dogmático nisso e eu pensava o contrário. A relação era tensa. Tínhamos um pé atrás por conta da figura emblemática dele em Brasília. Mas preciso admitir que o Vladimir nunca impôs o método dele. Víamos filmes do Herzog, do Joaquim Pedro, várias opções de documentário. Ele era muito generoso. Nunca interferiu no projeto de documentário de final de curso. Era um outro tempo de faculdade, sem internet, então o conhecimento vinha do professor. Mas há muitos filmes de diplomata na cidade e a gente conseguia alguns filmes importados. Chris Marker, por exemplo, poucos tinham acesso, mas conseguíamos cópias.

Cinética: Qual a razão da opção pela ficção?

Belmonte: Descobri o cinema com 16 anos, em uma mostra de cinema fantástico, que tinha Gaviões e Passarinhos, do Pasolini. E como sou muito influenciado pelos sonhos, como sempre tive essa relação entre cinema e sonho, a ficção era o caminho natural. O documentário, para mim, era realidade crua. E eu queria o delírio, a abstração, o inconsciente.

Cinética: Essa opção pela ficção é uma questão muito pessoal sua ou também uma resposta ao espaço onde você vivia (Brasília nos anos 80/90)?

Belmonte: Tem a ver com o espaço também. Os documentários de Brasília eram sobre o entorno de Brasília. Não eram sobre Brasília. Tudo muito regional e pouco urbano. População do Planalto Central, Cora Coralina. Eu achava a realidade de minha cidade muito subjetiva, e que seria melhor expressada pela ficção. Agora, não posso negar, havia vaidade. É mais fácil ser visto fazendo ficção. Não queria fazer cinema para a universidade ou para meus amigos. Queria sair do gueto. Até hoje continuo nesse gueto, mas continuo com a minha meta. O curioso é que, nas minhas ficções, eu tenho sido documental. Quase psicanalítico isso. Nega o pai, nega o pai e volta ao pai. Então foi boa essa coisa meio fora e meio dentro.

Cinética: É impressionante a mudança entre seus curtas e seus dois longas. Os curtas dialogam com o gênero enquanto os longas são menos narrativos e mais delirantes. E no Subterrâneos você faz um raio-x do Conic, em Brasília, que apresenta a parte central da cidade no cinema.

Belmonte: Na verdade, não é do curta para o longa, mas de um filme para outro.

Cinética: Tem consciência dessas mudanças?

Belmonte: Tenho um tanto de consciência. E consciência da crise. Antes de decidir pelo longa, pelo Subterrâneos, eu me fiz essa pergunta: e agora farei o quê? Não podia continuar fazendo curtas e queria fazer filmes para além de mim. Foi uma grande crise pessoal, financeira, tinha acabado de me tornar pai, estava entediado de fazer publicidade, porque, embora pareça uma coisa messiânica babaca, eu buscava, no audiovisual, a verdade das coisas. Agia pela revelação das coisas. E ai, percebi que estava errado. Tinha de adquirir ciência da minha ignorância. Também fiquei deprimido por ter batido um edital de baixo orçamento, que premiou Betse de Paula e Renato Barbieri. Meu roteiro era muito bobinho, mas me deprimi mesmo assim. Subterrâneos nasce dessa crise, dessa necessidade de se jogar às cegas em um labirinto. Parti do escuro, da loucura.

Cinética: Você pode desenvolver o que você falou sobre sua opção pelo 35mm? Você diz que, por filmar em 35mm, filma menos e mais barato, mas para isso, é preciso haver planejamento e repetir pouco as tomadas. Faço essa observação porque, em seus dois longas, em vez de economia de imagens, eu percebo um registro de excessos, com muitos planos, muitos cortes e, ao mesmo tempo, com alto investimento no plano-sequência. Até acho que você filme economicamente, em plano-sequência, e depois corta por dentro das sequências, mas o resultado parecer ser, quando montado, de uma multiplicidade de imagens.

Belmonte: Parece um paradoxo, mas é isso mesmo. É difícil falar em método porque cada filme tem o seu. Eu filmo com um processo catártico, tirando o máximo dos atores nas situações propostas, filmando como um documentário, com a câmera se comportando como um espectador. Eu incentivo a explosão na filmagem e organizo na montagem.

Cinética: Qual a importância do roteiro na filmagem?

Belmonte: Cacá Diegues tem uma frase ótima, segunda a qual o roteiro é a tese, a filmagem é a antítese e a montagem é a síntese. Eu tenho respeito pelo roteiro, pelos esquemas e pela organização, mas a filmagem é outra coisa, tem de haver espaço para os atores, para a própria câmera. O roteiro é apenas um guia, uma tema para o jazz, por exemplo. Subterrâneos não tinha um roteiro, mas uma estrutura, que foi mantida na montagem. A Concepção tinha um roteiro caótico e a montagem organizou o discurso.

Cinética: Seus filmes me dão a impressão de que o momento da filmagem é um laboratório cênico, um ensaio de atores e câmera registrado pela câmera, com amplo espaço para improviso e desvios de rumo, mais ou menos como fazia o Cassavetes, ou seja, com uma ação que parece surgir na hora. Por outro lado, a estrutura dos filmes, assim me parece, é extremamente controlada. Não é um outro paradoxo?

Belmonte: Isso é um método mesmo. Eu sei o que quero sempre, mas me coloco à prova. Tem de ir além de mim, fugir da minha mão. Faço o que é mais imprudente, porque o roteiro tem de estar na pele dos atores, que tem um rumo, mas inventam em cima desse rumo.

Cinética: Subterrâneos tem muitas situações com não atores

Belmonte: Isso me abriu uma porta para atuações com alto grau de despojamento, que na verdade exige muita técnica para parecer não atuação. Não estou falando dessa coisa Fátima Toledo, que tem essa procura pelo visceral, mas uma coisa mais zenbudista, no sentido de zerar mesmo. Tentei isso nesse filme novo, que estou montando, um zero de artifícios. Pego a lógica do Subterrâneos e coloco no melodrama, que tem uma estrutura rígida. É uma atuação na rua, captada em digital – e o digital é muito cru, qualquer artifício de atuação fica explícito, expõe demais a atuação. Nesse filme novo, a atuação não é atuação, é um fluxo de pensamentos

Cinética: Nessa busca da imagem e da atuação autêntica, você usou a câmera escondida em alguns momentos de Subterrâneos?

Belmonte: Achei interessante fazer um jogo, mas algumas situações são e outras não, ou seja, como disse o Murilo Grossi (ator dos filmes de Belmonte), eu caminhava no fio da navalha moral. Decidi radicalizar isso para ninguém ter certeza o que era da ordem da ficção e o que era da ordem do roubo da imagem. Até com retake. Algumas imagens roubadas, porém, são simulações de roubo de imagem. Gosto das fronteiras entre uma coisa e outra.

Cinética: Por que o produtor de televisão é italiano? Parece haver um questionamento ali sobre o uso da imagem, sobre esse olhar estrangeiro atrás do típico brasileiro, explorando nossas misérias para seu lucro.

Belmonte: Eu me sentia uma puta fazendo publicidade. Tem sua dignidade, mas, naquele momento, não achava nada digno. Subterrâneos surgiu em parte depois de um turno meu na publicidade. Acabei uma gravação e fui dar uma volta no Conic. Pensei enquanto caminhava que estava desperdiçando talento. Ao mesmo tempo, eu não conheço a realidade. Esse é o personagem do Subterrâneos, o italiano: um sujeito em crise com uma coisa, que  quer filmar uma realidade desconhecida e lida com ela como um labirinto. Um estrangeiro seria uma maneira de salientar esse desconhecimento e esse desejo de realidade. A crise do filme, em relação a como expor uma realidade, está escancarada. Conic é uma Babel. Nós pesquisávamos, pesquisávamos, mas as coisas escapam. É informação demais. Originalmente, o Conic seria a condensação espacial da crise de uma cidade, que, planejada como utopia, não deu em nada. Na verdade, vi que o filme, antes de mais nada, era sobre a representação. Como retratar essa crise de um espaço e de um sujeito? O filme é essa pergunta.

Cinética: Subterrâneos e A Concepção são sobre a incapacidade de entender os acontecimentos vividos pelos personagens. Não se chega ao final com uma conclusão sobre quais os sentidos do ocorrido durante o filme. E nos dois casos há colapsos de percepção, individual em um e em grupo no outro, que acentua essa dificuldade de obtenção de sentido para as experiências. De qualquer forma, menos pelos filmes, mais pelo que você está falando, parece haver de sua parte uma relação quase religiosa com a imagem, no sentido de que ela pode trazer algo não detectável sem a câmera. Enfim, uma busca de sentido, esse mesmo sentido que escapa a seus personagens.

Belmonte: É verdade. É um processo no qual sou agente, uma coisa religiosa, kardecista de certa forma, porque sou o veículo do processo. Nos curtas, eu era o narrador, com poder, com ciência. Nos longas, sai da narração, entrei para dentro do fogo, querendo me queimar junto.

Cinética: Pode parecer abstrato falar nesses termos, mas é como se a instância narradora, o diretor, se tornasse mais um dos personagens, sendo narrado também pelo filme em realização, sem controle total sobre a obra. Você não mostra saber mais que os personagens

Belmonte: É porque os filmes não são conclusivos, porque isso seria desonesto com os personagens, porque eu estaria vendo de fora, vendo mais e vendo melhor. Tinha de me queimar lá dentro aderindo à narrativa e à crise do filme sem tentar resumir aquela crise. Poderia até resumir, seria mais fácil, mais aceitável, mas não poderia ser de outra jeito.

Cinética: Um professor da USP afirmou na saída de A Concepção, não sem alívio, que o filme rompe com a tradição do cinema brasileiro. No entanto, vejo uma sintonia com experiências do cinema marginal, já presente em Subterrâneos, mas agora com maior evidências de influências externas. Brasília me parece ser mais um paradoxo, essa palavrinha recorrente aqui nessa conversa, porque ela é uma explosão de natureza, com aquele cerrado para todos os lados, mas é também urbana e cosmopolita, ao menos nas informações culturais consumidas. A Concepção sintetiza isso o que estou falando em linguagem audiovisual: uma geração de moradores de Brasília, a relação com as referências musicais, com o espaço urbano, mas principalmente com a contemporaneidade. Talvez isso motive a impressão de o filme romper com uma tradição brasileira, porque o que se chama de tradição, no fundo, busca nossas raízes não contaminadas pelo de fora. Já A Concepção é uma esponja, aberto a tudo, tanto na trilha sonora como nos fluxos visuais. Há momentos que poderiam, guardadas as proporções e contextos, estar em um filme do Danny Boyle. Penso em Cova rasa e Trainspotting. Te pergunto, finalmente, se essa linguagem só é possível por você ser de onde você é.

Belmonte: Acho que sim. Não tenho certeza, mas acho que sim. Quando eu estava em Brasília, nunca ninguém era de Brasília. Mesmo quem é de Brasília tem relações com as origens dos pais. Eu sou paulista, flamenguista, filho de cariocas e criado em Brasília. Me sentia estranho.

Cinética: Você realmente é um concepcionista.

Belmonte: Fui criado numa babel, com filho de diplomatas. E teve a influência do horizonte permanente de Brasília, uma certa melancolia e um acesso a tudo, apesar de ser extremamente provinciana, cada vez mais provinciana, porque a tradicional família goiana tomou conta de Brasília. Havia uma utopia em Brasilia e isso não deu em nada. Isso influencia na formação da gente, essa relação de dentro e de fora, de uma utopia que não aconteceu. Brasília tem um outro paradigma de cidade e de pensamento muito diferente do resto do Brasil. Tinha uma melancolia de quem estava no mundo sem participar dele de fato por estar lá em Brasília. Uma coisa alimenta a outra. A Concepção é uma consciência disso tudo, com jovens não tão niilistas como as pessoas enxergam, mas principalmente saudosos da utopia perdida, cientes de que ela ficou para trás.

Cinética: Brasília não chegou a ter uma turma de novos diretores de longas-metragens. Os casos são isolados. Na turma dos novos diretores de curtas, apesar da movimentação intensa, não sinto uma energia estética maior, que possa nos levar a ter expectativas com futuros longas, criando uma cena de Brasília, como tem acontecido nos últimos anos em Pernambuco. O que impediu o estabelecimento de uma geração em Brasília e o que mudou de sua geração de curtas para a seguinte?

Belmonte: O problema de Brasília extrapola gerações. É síndrome de cidade pequena. Em São Paulo, você não se acha maior que a cidade de forma alguma. Em Brasília, você se sente maior que a cidade. Isso cria um individualismo, uma divisão e uma solidão enormes. Todo mundo quer ser o pioneiro, quer se achar o maior. Falta um espírito de corpo. Minha geração não vingou em parte por conta disso. Passei por isso também, por essa autofagia. Já a geração seguinte, e posso estar errado nisso, não tem consciência política da cidade. Eles são mais pragmáticos como grupo, mas não têm visão do que é e do que pode ser Brasília, um lugar funcional, mas também um lugar extremamente singular. Não vejo essa consciência nos filmes de agora. Eles querem fazer filmes à la algum diretor estrangeiro para mostrar como sabem fazer. É uma geração “à la”. Eles estão mais preocupados em saber fazer que em mostrar algo com essa competência. Falta ter o que dizer de fato. Os filmes deles podem se passar em qualquer canto. Não têm ligação com o espaço.

Cinética: Te conheci em um Festival de Cinema de Brasília de 1994, quando você estava com Três e André Luiz da Cunha com Áporo, e te perguntei na última noite do festival, no Conic, quando sua geração faria um longa em Brasília e sobre Brasília. Você disse: “Eu vou fazer”.

Belmonte (gargalhada): Eu lembro disso!

São Paulo, fevereiro de 2007.


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