ensaio
Integridade ou revisionismo? por Francis Vogner
dos Reis Cinturão
Vermelho, de David Mamet (foto ao lado), é aparentemente
uma ficção modesta. Uma leitura simples de sua trama não tem muito oferecer. Estrutura
clássica, sucessão contínua e linear dos acontecimentos. Podemos ficar na ascese
do herói e ponto final: temos aí um filme narrativo que não tem muito a dizer
ou mesmo um trabalho francamente reacionário. Por outro lado, é possível vislumbrar
um trabalho “bem narrado”, um artesanato competente. O perigo eminente é o discurso
vago, portanto. Já A Questão Humana, de Nicolas Klotz, não possui uma sucessão
contínua dos acontecimentos, mas disposição dos fatos. Crise. Tudo o que se convencionou
chamar de “moderno”. No filme, o trabalho como regime autoritário consentido.
Nazismo. Pode-se se falar longamente das suas questões – inclusive das “conceituais”
-, sem se chegar, efetivamente, ao filme em si, às suas especificidades, apesar
de tudo. Pode ser uma armadilha do “qual repertório conceitual pode se lançar
mão pra conferir qualidade ao filme?”.
Ambos engendram
os personagens em (micro) sistemas autoritários e concebem seus universos como
uma estrutura normalizadora e normalizante que trabalha em uma lógica de inversão:
quanto mais se afirma a supremacia do indivíduo, mais ele é despersonalizado.
Em Cinturão Vermelho, a moral do herói ante a mentira generalizada financiada
pelo espetáculo; em A Questão Humana, uma ponte entre o mundo coorporativo
e o nazismo. A “questão humana” que prevalece nos dois filmes é a indagação: é
possível que, em um tempo cínico, unilateral, utilitarista, sem resistência e
sem memória, um indivíduo tenha autonomia para sabotar o jogo? É ainda possível
a honra, a escolha moral e a beleza? Tanto o filme de Mamet quanto o de Klotz
fazem essas perguntas. Poderia-se então, a partir disso, discutir essas problemáticas
usando os filmes como ponto de partida e base. Uma imagem,
uma fissura Talvez esse movimento resulte injusto com
o filme de Mamet que, submetido a um exame desse tipo (que às vezes na crítica
de cinema tende a reduzir tudo a uma busca exaustiva de sintomas) pouco teria
a dar, pois suas idéias estão em outro campo que não o da conotação explícita.
Em Cinturão Vermelho, Mike Terry (Chiwetel Ejiofor), um lutador e mestre
de jiu-jitsu se recusa a participar de campeonatos promovidos pela família de
sua esposa brasileira Sondra (Alice Braga). Para ele o campeonato fere os princípios
da sua arte marcial ao transformar uma filosofia de disciplina física e moral
em encenação e lucro. Da
lei e do espetáculo: o mundo em Cinturão Vermelho é regido pela vigilância
caolha da legalidade e pela sombra do simulacro, como se as relações e as normas
sociais fossem contaminadas pelo princípio da mentira. A lei não é justa e as
relações sociais não são autênticas, portanto, para o herói, a justiça deve estar
acima da lei e a honra acima das necessidades. Para Mamet o gosto pela ficção
é acreditar que uma narrativa pode fazer algo mais do que contar uma historinha.
Para ele a narrativa vive sob uma regra muito dura: o filme é fechado, quem decide
e orienta o direcionamento das coisas é o cineasta. Todas
as regras da dramaturgia, chamada de “clássica”, estão ali: o destino, a importância
do acaso, o condensamento da ação, etc. Uma série de regrinhas que podem muito
bem sufocar um filme, e não raro, o fazem. Mas como bem notou Inácio Araújo em
crítica na Folha de S. Paulo, Mamet relega um olhar autoritário (logo, clássico)
à sua dramaturgia. Uma opção irrevogável (arriscada e corajosa) da maneira, talvez
a única, em que ele acredita que as coisas devam ser ditas, devam ser mostradas.
Esse cinema do enxugamento e do direcionamento do olhar. Mas
nesse classicismo seco, econômico e americano, Mamet comete uma subversão sutil,
quase imperceptível – coisa de escritor. Ele arruína no curso da rota a mitologização
do herói e a certeza da clareza narrativa. A última sequência é tão somente a
ruína da crença de que uma narrativa esgote as entrelinhas, que ela em si seja
impermeável a posições ambíguas. Se instaura um sentimento de contradição, uma
fissura em sua catarse: não será que toda a estrutura contra a qual Terry lutou
não cooptou, involuntariamente, sua honra e seu heroísmo autênticos? Ele luta
na periferia do ginásio uma luta não oficial, as câmeras se viram pra ele, ele
derrota o principal lutador da noite em um corredor. Sob os olhares do público
e das câmeras de TV ele recebe o cinturão do atual campeão mundial e, quando sobe
ao tatame para denunciar a farsa das lutas arranjadas, ganha, de supetão o cinturão
vermelho do velho mestre que o viu derrotar Silva, protagonista da principal luta
da noite. O filme termina ai. Sabe-se que o diretor fala
da promiscuidade do sistema capitalista e de suas estruturas, de flexibilidade
dinâmica e perversa, e esse desfecho nos leva a questionar: o que vimos? O que
se realizou? Ele arruinou todo jogo ou o seu azar foi sua condição (um lutador
sob os holofotes) que o fez trair, contra sua própria vontade, seus princípios?
Não é cínico, não é alienado (essa não é bem uma questão para Mamet), nem indiferente.
O protagonista não vive um mal estar da “responsabilidade” contemporânea, ou o
sentimento de culpa. O herói, no contexto em que vive, não é um pária, mas é visto
pelo seus pares como um simplório patético. O filme vê alguma beleza nessa inocência
reativa. Mas sinaliza: será que é efetiva? Será que a pureza e a ingenuidade do
herói não é cooptada (vampirizada) pelas estruturas involuntariamente? Mamet
é um escritor, um dramaturgo. Sabe o valor do dito, do não dito, das entrelinhas.
Só que ele, substituindo a palavra pela imagem, instaura essa fissura, essa dúvida,
essa ambiguidade, se perguntando até que ponto o esforço de Terry não teve o efeito
inverso, algo que inclusive acontece durante todo o filme e o desfecho não parece
diferente. Sua crença (às vezes um tanto triste) na ficção não permite que ele
deixe essa pergunta de lado. Ele crê que narrativa não só conta objetivamente
algo, mas, coloca sempre na encruzilhada a dúvida “o que vimos?”. É a velha fórmula:
com minhas certezas (com minha mise-en-scène direta e objetiva) eu desestabilizo
as suas. A imagem é um dado real: ela existe. Mas dar a ver nem sempre uma atitude
conciliatória, até mesmo porque se a inocência e a ignorância perante as imagens
(daí a suspeita da representação) perante as imagens era uma questão no passado,
hoje talvez seja o do cinismo perante elas, seja a mera representação, seja a
que revela o dispositivo. Apesar da fórmula não ser nova, Mamet sabe que que a
clareza não é esgotamento. A questão não está a cerca de seu classicismo ou de
sua modernidade, mas de sua atualidade. Da ordenação funcional Em
A Questão Humana, de Nicolas Klotz, Simon (Mathieu Amalric), um psicólogo
do RH de uma petroquímica alemã é o responsável por estimular e padronizar os
funcionários segundo as exigências da empresa e é encarregado de investigar a
saúde mental de um dos diretores, que segundo consta, passou a ter atitudes estranhas
e atrapalhar o rendimento da empresa. O trabalho como pátria, o padrão como doutrina:
a perversão da moderna concepção e da compreensão (também moderna) do homem como
máquina, passível de ser estudado, compreendido, uniformizado, categorizado, despersonalizado
e exaurido em favor de uma ordem. Nesse contexto a questão humana propriamente
dita é um espaço vazio, já que entre outras coisas, ela não é mensurável. Resta
saber onde (e como) se coloca “a questão humana” em um universo robótico e utilitarista,
da lei do quantificável. Parte-se
dos ambientes, dos espaços em que os homens estão dispostos – às vezes geometricamente
- em ordem, quase como uma organização de produção fabril. A busca do psicólogo
Simon é a de uma imagem ausente. Temos Mathias Jüst que foi acusado de desequilíbrio
emocional, um extinto e obscuro quarteto musical formado na empresa e uma tal
Ordem Negra, que seria herdeira dos intentos nazistas e que criaram crianças “especiais”,
entre elas Karl Rose, chefe da empresa que pede a investigação de Simon. Todas
essas idéias e hipóteses são um tanto inacessíveis e delas só existem depoimentos,
versões, mas nenhuma confirmação. O que se tem de visível e palpável é algo resultante
de todas essas hipóteses (tudo o que se vê no filme) e que de alguma maneira chega
a confirmá-las, não como fato, mas como estado de espírito. Uma
ordem de tal gravidade que transforma raves em playground de domesticação
das emoções e um caso amoroso em relacionamento ao mesmo tempo conciliado e frustrado,
que fala da beleza (“você canta pra mim?”), mas incapaz de produzir sua própria
beleza. Tudo é impermeável à beleza, tanto que os momentos mais “humanos” estão
na sequência em que um homem canta uma música flamenca e outro canta um fado.
O espanhol e o português: duas línguas que não conseguem “ser” sem emoção. No
contra-plano, os personagens, entre eles o psicólogo Simon e sua namorada. Ele
impassível, ela tentando tatear alguma emoção. Nesse
emaranhado de situações e espaços controlados, se configura um painel que lida
com a “ausência”, seja de explicação, seja de uma oposição a esse contexto, seja
se sentimentos francamente espontâneos, seja de luz, seja a ausência da memória,
ou mesmo de um extracampo. Tudo é homogêneo. Muitas coisas existem, mas absolutamente
vazias, técnicas, funcionais - do vocabulário às próprias pessoas. Uma relação
amorosa, uma banda musical e o assassinato como trabalho podem ser igualmente
funcionais. Podem partilhar de uma mesma lógica. Perante
uma imagem ausente O diálogo de Simon com o personagem
Arie Newmann (Lou Castel) não é só sobre o luto do nazismo e a analogia do regime
nazista com o regime coorporativo contemporâneo, mas também (e principalmente)
sobre o asco da instrumentalização da palavra, da imagem. Desse modo, temos por
fim a preparação de um concerto no campo e uma narração que não se revela sonho
ou memória, que se finaliza com um poema-obtuário em uma tela escura. É a construção
algo antes ausente. De um relato livre, fora do protocolo. Revisionismo?
Não exatamente. É claro que é sabido que entre as muitas questões do cinema moderno,
uma das principais é a preocupação dos cineastas com o irrepresentável (o cinema
não poderia ser mais o mesmo depois de Auschwitz) e essa questão se tornou, talvez,
o principal tabu do cinema moderno. Tanto que, no repertório de estudiosos e na
postura de alguns cineastas, o “não mostrar”, o “não representar”, a “revelação
do dispositivo” virou uma camisa de força, um dogma, um clichê retrô, muitas vezes
com o sentido deslocado do seu real contexto. A
Questão Humana retoma de alguma forma os campos de concentração, a “imagem
que falta”, mas a partir de uma premissa contemporânea que reflete não a potência
negativa ou positiva da representação (a imagem como verdade), mas a própria funcionalidade
da imagem que, se no passado serviu aos regimes autoritários – seja do Estado
ou de Hollywood -, hoje se coloca como parte integrante de um processo que domestica
e até exalta o dispositivo. A imagem como dado técnico e funcional em que se domestica
tudo, até mesmo o discurso “humanitário”. A questão para Straub e Godard era o
anti-espetáculo, o cinema como anti-propaganda. Hoje se coloca a funcionalidade:
toda e qualquer imagem, por mais pérfida que seja, se torna prosaica. Caché,
de Michel Haneke e demonlover, de Olivier Assayas, à maneira deles, não
seriam também filmes sobre isso? Klotz mira o mesmo alvo,
mas vai por outro caminho. O diretor coloca “a questão humana” no centro de tudo,
sem humanismo de divã ou de sacristia, porque sabe que a questão hoje não é mais
exatamente a distinção entre o que é legítimo mostrar ou não, mas sim do que se
pode apreender das poucas imagens que se têm. Ele abre mão de falar da máquina
e prefere falar do homem como máquina ou animal adestrado, não a produção da imagem,
mas a busca da imagem que falta, mesmo que ela seja só memória: memória é resistência,
e certamente gerará outras imagens, talvez mais livres. Julho
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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