ensaios Entre
a precisão e o controle por Cléber
Eduardo Há
uma tendência em se ver em termos de temperatura as opções estéticas de Nicolas
Klotz em A Questão Humana. Suas imagens seriam frias. Pensemos pois em
uma outra forma de se relacionar com essas imagens: não pela temperatura, mas
pela precisão do controle de seus personagens no espaço. Nesse outro sentido,
as imagens não seriam frias, como se a questão central fosse a luz, mas organizadas
com opções cirúrgicas. Cirúrgicas e controladoras. Ao operar uma investigação
cujo processo evidencia as estratégias de uma empresa aos olhos de um psicólogo
do RH, certamente se está a fazer um movimento cirúrgico no interior de um organismo
corporativo. As opções cirúrgicas de distribuição dos corpos nos ambientes e de
escolhas dos ângulos da câmera expressam na própria organização visual o processo
de procura do tumor. Uma cirurgia em que, na verdade, para acabar com o tumor,
é preciso extrair o corpo.
Não estaria o cineasta
com isso, com essa maneira rigorosa e clínica de colocar seus personagens em quadro,
também os enquadrando? No sentido policial, mesmo, operação de controle. Controle
de corpos? Os corpos quase sempre estão imóveis, sentados em geral, ou parados
quando de pé, e tendem a terminar caídos quando em movimento. Os corpos estão
formalmente dispostos em espaços sociais. Quando ameaçam se encontrar, chocam-se,
entram em atrito ou se separam, como vemos nas aproximações e recuos do protagonista
com as mulheres. A câmera no tripé e o rigor do quadro é uma forma cinematográfica
de limitar a ação e a liberdade desses corpos. Não como significado, mas como
operação. Esses corpos estão imobilizados porque atendem a uma regulação empresarial
segunda a qual o limite de ação física não permite gestos largos e intensos. Mas
também porque uma forma de filmá-los os aprisiona. O diretor
escolhe por modo de filmar, portanto, a mesma regra reguladora da empresa: a limitação
da ação dos corpos, no caso, pelo enquadramento preciso que os impede de se expandir,
que está sempre a comprimi-los, a exercer pressão sobre suas presenças. Estaria
a instância autoral do filme, reguladora do estilo do mesmo, a reproduzir a estratégia
empresarial? Ou justamente essa composição cênica cirúrgica é sim a linguagem
do protagonista, assim como da empresa com ele, e expressa esteticamente a linguagem
desse personagem, como se ele fosse o regente da instância autoral (e, portanto,
quando ele muda de olhar, o filme altera o seu)? Não parece
haver dúvida sobre quem é o protagonista de A Questão Humana. Quem nos
conduzirá pelo mundo a ser descoberto pelo filme é um psicólogo, profissional
sem escrúpulos, mas com critérios, no momento de decidir quem sobrevive a um corte
de funcionários. Esse
funcionário padrão é um dos motores da gestão enxuta e eficiente, que coloca lucro
e eficiência acima da vida, mas, ao tocar uma missão destinada a dar um golpe
no presidente da empresa, que anda com comportamento estranho, essa figura-chave
no funcionamento da máquina corporativa descobre seu lugar nos procedimentos formatadores
de sua percepção. Estamos em uma narrativa, portanto, de um cordeiro com poder
(e do poder), que vive uma mudança de consciência, não sem antes passar pelo momento
da consciência em crise. E parece ser para expressar essa consciência do protagonista,
a consciência da psicologia submissa à empresa e em processo de emancipação dela,
que se procura primeiro expressar o controle nos planos e, quando o protagonista
encara sua tarefa menos como cumprimento de dever e mais como questão de sua consciência,
essa imagem se liberta do tripé e abre mão de exercer pressão sobre o personagem
em quadro. Essa utilização da linguagem como forma de expressar
o personagem, seus valores e sua sensibilidade, poderia nos levar à imagens bastante
distintas em suas dinâmicas, como as de Terra em Transe, de Glauber Rocha
ou Memórias do Subdesenvolvimento, de Tomas Gutierrez Alea, filmes que
parecem filmados pela consciência de seus protagonistas. Não é diferente em A
Questão Humana. O diretor/autor do filme se manifesta apenas na abertura de
possibilidade para a transformação de um olhar (o do protagonista)? A gravidade
estilística de Klotz, para ser rigoroso, é de poderoso efeito estético. Suas cenas
nos deixam com a sensação segura de estarmos diante de um cineasta com olho e
noção de espaço, um cultor das formas bem acabadas, dos atores com lugar certo
para ficar, do lugar preciso onde deve estar a câmera. Podemos chegar a dizer
que chama atenção por seu controle das cenas. Pois é justamente
essa mesma capacidade, colocada em discussão no filme, que faz ele amalgamar-se
com seu universo, sem chegar a aprová-lo na lógica das situações, mas reproduzindo
uma estética do controle. É também por conta dessa simbiose entre forma e personagem,
com suas implicações incontroláveis, que A Questão Humana é nesse primeiro
turno da temporada de lançamentos o filme de maior impacto sobre a redação de
Cinética. Um filme no poder privado, com a linguagem formal do poder, revirando-o
por dentro, sem deixar de respirá-lo. Um filme com poder.
Julho de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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