sessão cinética
A Encruzilhada das Bestas Humanas (Wildwechsel),
de Rainer Werner Fassbinder (Alemanha, 1973)
por Fábio Andrade

A morte do erotismo

Há um momento específico de A Encruzilhada das Bestas Humanas que resume perfeitamente aquilo que talvez o cinema de Rainer Werner Fassbinder tenha de mais interessante: Hanni (Eva Mattes) vai para a cama com Franz (Harry Bear), e Fassbinder corta do prenúncio do ato sexual para um abatedouro de galinhas em pleno funcionamento. A expressividade do corte – a rigor, de efeito absolutamente clássico em sua justaposição, mas de sentido bastante transgressor na associação proposta – ecoa dois textos clássicos de André Bazin (Morte Todas as Tardes, de 1951; e À Margem de O Erotismo no Cinema, de 1957 – ambos publicados no Brasil na coletânea A Experiência do Cinema, organizada por Ismail Xavier), em que ele define o ato sexual e a morte como pontos críticos da representação cinematográfica. Com o corte, Fassbinder estabelece uma relação direta e essencialmente cristã (imaginário que o filme adota abertamente, mesmo que somente até certo ponto, nas imagens e crucifixos que povoam as cenas, ou nos cenários que evocam alegorias bíblicas) entre as duas crises apontadas por Bazin: a virgindade é algo que se perde, uma espécie de morte, um derramamento de sangue. Essa constatação será reforçada não só por Franz trabalhar no abatedouro, mas também por o travelling lateral das galinhas reparecer pouco depois, levando as meninas que saem do colégio ao abate do olhar de Franz.

Apesar de sua reputação transgressora, Fassbinder não filmará um ato sexual sequer ao longo de todo o filme; tampouco mostrará o assassinato das galinhas, relegado às profundezas de uma máquina que despersonaliza por completo a relação com os animais e esconde o ato fora do quadro. À tal justaposição clássica, que sublinha as moçoilas como frangos condenados ao abate, Fassbinder adicionará um tratamento classicista que talvez esconda a verdadeira perversão de seu cinema: associar o engajamento do melodrama clássico-narrativo a situações que desestabilizam a pronta-entrega garantida pela sua estrutura. Em A Encruzilhada das Bestas Humanas, esse encontro se dá sem rodeios: Fassbinder filma um suposto caso de pedofilia como uma “inquestionável” história de amor. O diretor confrontará o pesado drama familiar – com direito a menções saudosas a Hitler que deixam muito claro quem é o algoz – à leveza rohmeriana das cenas do casal tomando sol à beira do rio, ou deixando que seus sentimentos sejam completados pela canção de Paul Anka que toca na jukebox. A pedofilia judicial se esconde atrás do engajamento natural dos espectadores com uma das histórias mais atemporais da dramaturgia mundial: o casal que tem seu amor tolhido pela incompreensão generalizada de todos ao redor.

Ao menos, é isso que nos parece acontecer. Pois Fassbinder usará seu domínio pleno do clássico-narrativo para fazer, do espectador, cúmplice inevitável não só de um caso de pedofilia (no qual se destacam a maturidade e a segurança erótica da performance de Eva Mattes), mas também de um homicídio. Cúmplice, de fato, pois, citando À Margem de O Erotismo no Cinema, de Bazin, “diferentemente do teatro – lugar concreto de uma representação fundada na consciência e na oposição –, o cinema desenrola-se num espaço imaginário que demanda a participação e a identificação. Conquistando a mulher, o ator me satisfaz por procuração. Sua sedução, sua beleza, sua audácia não entram em concorrência com os meus desejos, mas os realizam”. 

Essa cumplicidade tem um sentido político bastante eloquente: se, ao longo do filme, não repudiamos o que a dizemos entender como pedofilia, é porque há algo de errado com um dos lados da compreensão – ou o do espectador diante do filme, ou o da sociedade na formulação de suas leis. Fassbinder, artífice exímio e grande conhecedor da dramaturgia cinematográfica clássica, usa todas as armações do melodrama com absoluta consciência de sua eficiência junto ao espectador, para com isso produzir uma espécie de implosão semântica em sua consciência. É justamente aí que seus filmes – aparentemente clássicos, sem a estridência típica dos cinemas novos – se tornam tão inegavelmente modernos. Pois enquanto muito do cinema moderno aprofundava interesse em revelar ao espectador as armações da construção artística, Fassbinder se aproveitava da transparência absoluta para abalar o espectador de sua posição no mundo (e não só no cinema), obrigando-a questionar parâmetros de julgamento que norteiam a convivência em sociedade – quem é a vítima e quem é o algoz; o que é desejo e o que é amor; quem é o adulto e quem é a criança; quem usa e quem é usado; quem fere e quem é ferido.

Setembro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta