ensaios
Relatório sobre uma rocha no fim da Europa
É na Terra, Não é na Lua, de Gonçalo Tocha
por Filipe Furtado

Já no começo de É na Terra, Não é na Lua, Gonçalo Tocha explicita seu desejo: ir até a ilha do Corvo, a menor do arquipélago dos Açores, e nela tudo filmar. Todos os lugares, todas as pessoas (são apenas 440 habitantes), todos os costumes. O projeto de Tocha não podia ser mais direto e claro: um documentário descritivo que busca uma consciência quase divina do universo que descreve. O prazer e o charme de É na Terra, Não é na Lua deriva desta ambição, deste desejo de se propor como um filme total. É uma ambição desenfreada, que o filme nunca consegue cumprir de todo - o que não deixa de ser inevitável -, mas que ele preenche por vezes com tanta força que suas pontas menos bem resolvidas se tornam detalhe.

Há duas estratégias documentais em conflito constante aqui: de um lado, o apego completo a esta ideia de descrição que busca olhar costumes, faces, espaços e tentar incluí-los da forma mais direta possível dentro do filme; do outro, o desejo organizador de tudo registrar pela acumulação de elementos díspares, a busca grandiloquente por ser um documentário total sobre o seu espaço. É na Terra, Não é na Lua sugere uma lógica minimalista para suas sequências individuais, e outra grandiosa para sua construção geral. O mínimo e o máximo convivendo entre cada corte. Muito da força do filme brota justamente da montagem, que retira muito do significado do filme deste eco constante entre momentos e o todo.

Haverá algumas concessões à estrutura narrativa (o retorno constante à senhora que prepara um gorro para o cineasta, por exemplo) e um tom relaxado e convidativo na sua estrutura que deixa clara a influência da metade documental de Aquele Querido Mês de Agosto (outro filme de uma invasão da comunidade por parte de uma equipe, muito maior, de filmagem), assim como ecos do entrecho dos arquipélagos do Caro Diário, de Nanni Moretti. Tocha não esconde em momento algum que seu filme busca um diálogo constante com os setores mais extremos de cinema contemporâneo, que existem entre a autoficção e documentário etnográfico (de Alonso a Sniadecki, de Castain-Taylor a Dvortsevoy). Nos seus piores momentos, É na Terra, Não é na Lua não esconde um excesso de cálculo, seja nas reações para com o espaço, seja no uso de uma gramática já manjada na cinematografia contemporânea. Nos seus melhores, reverte esta mesma gramática numa perplexidade muito própria, que pertence a um olhar do cineasta e somente dele.

É na Terra, Não é na Lua sugere uma aprazível decantação épica lusitana de algumas ideias muito em voga no cinema de arte contemporâneo. A principio, sua grande contribuição é justamente detectar certo elemento de absurdo que a Ilha do Corvo empresta à câmera descritiva. Se muito desses filmes sugerem a busca por uma comunidade essencial, um desejo político de uma retomada do comunitário e de uma outra sociedade marginalizada e esquecida, Tocha por vezes busca quase o oposto disso. A Ilha do Corvo fascina, mas não deixa de sugerir o sentimento muito português de ser um espaço naufragado na história. Essa ilha se afirma como um espaço que existe à parte, mas o cineasta e sua equipe (que não à toa surgem no filme como verdadeiros turistas) menos se entregam a este ambiente do que seguem constantemente removidos dele.

Aos poucos, o filme constrói toda uma relação com seu espaço, sobretudo na forma como abarca toda uma ideia de história presente naquela lugar. Menos a exploração/construção de um mundo típica do documentário de lugar, e mais a localização de um sentimento na história, a ideia de que o espaço que o filme apresenta é a extensão de algo muito maior, perdido no tempo. É bastante simbólica a escolha do Corvo que, por ser a última ilha dos Açores, é também o ponto final do continente europeu. Os Açores são, afinal, o ponto de partida do processo colonialista, e por consequência também o eventual momento final do Eurocentrismo. Seu espaço geográfico não deixa de ser seu espaço histórico, e o filme permite que ele ressoe com muita força em vários momentos. Não surpreende que É na Terra, Não é na Lua seja no fundo um filme sobre seu próprio fracasso do desejo de tudo filmar: todo seu principio organizador propõe como um curto na tradição que ele próprio procura abarcar. Menos a história de uma comunidade, do que um relatório sobre uma rocha a flutuar no Atlântico. Como Portugal, ao mesmo tempo na vanguarda e perdido na sua história.

Junho de 2012

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