emulando Passeando
pelos corredores infinitos por Luiz Soares Júnior
Quando tinha 14, 15 anos, eu não podia pegar livros na
Biblioteca da Universidade, por não ser aluno dela. Vivenciava então a Biblioteca
como um espaço essencialmente impenetrável, e mágico, apenas sob uma condição:
a Biblioteca era um catálogo de todas as possibilidades de vida (e de morte) que,
eu, adolescente melancólico e retraído, me permitia espreitar. Não era uma vivência
plena, visto que eu não podia levar os livros para casa, mas apenas folheá-los,
manuseando a sua matéria sob o espectro da luz que escoava das janelas. Era uma
vivência, portanto, neurótica e insatisfatória – tanto quanto um precoce encontro
erótico.Mas
o que tornava aquelas tardes ainda mais desesperadoras era a fantasmagoria daqueles
corredores, experiência continuada de um mauvais infini: o fato de reconhecer
as possibilidades de saber infinitas e o meu acesso a elas de uma infinita impossibilidade,
que projetava sobre os corredores as luzes e sombras de uma aparição. Eu entendia
perfeitamente o halo de misticismo que exalava da Biblioteca de Babel de Borges:
como era possível a um pobre ser finito, ansioso por uma identificação plena com
a Divindade (a Infinitude que a Biblioteca representa) suportar a consciência
desta impossibilidade? Proust recorre à memória como um elemento
deflagrador de associações sensoriais, de configurações temporais, como a rota
de acesso a arquétipos constantemente presentes, sob as camadas reconfortantes
do hábito e do conformismo. Geralmente, o signo que permite o acesso a essa instância
mítica e diferencial é menos que um signo, é um rastro que não encontra no mapeamento
cognitivo convencional nenhum equivalente; a sua plataforma são vivências infinitesimais,
cristalizadas em correspondências ínfimas, deduções arbitrárias e bruscas, geralmente
guiadas pelos sentidos. O corpo é o grande campo desta dinâmica simbiótica de
tempos e espaços, que redimensiona o intelecto em um horizonte originário, o único
capaz de fecundá-lo: o imaginário. Ora, ao pesquisar outro
dia no Emule, me veio um clic que me pareceu o correspondente ao eco proustiano
da madeleine. A mesma sensação negativa diante da Biblioteca inacessível
e da sua infinitude me retém e lacera novamente, diante da página de pesquisas
do Emule: é impossível não se angustiar diante do horizonte de possibilidades
apresentado, não se sentir sempre e ainda uma vez aquém de seus próprios passos,
girando em círculos sob a égide de um tempo e uma vivência malditas: ao pobre
mortal, o desejo de Infinito (o Cinema como um espectro em constante retração
e fuga) configura uma nova temporalidade. Ao tempo plano e reto da Infinitude,
substitui-se o tempo precário e circular de um travesti de infinitude, de uma
finitude que não ousa dizer o nome. Paradoxo típico de nossa
época, orgíaca na oferta de informação e de estímulos: como adestrar o homem para
fazê-lo estar à altura dessa avalanche sempre constante e diferencial? Uma
nova percepção, como a que se apresenta hoje, implica necessariamente em um novo
receptor, em novos critérios e diapasões de assimilação, compreensão e resposta.
O Emule nos coloca novamente diante da nossa pequenez, e reanima em nós esse terror
fascinado dos primitivos diante de forças cuja origem e natureza desconheciam,
signos da Impossibilidade do homem de se apropriar do mundo Absolutamente. Depois
da Queda (que nada mais é do que a perda da integração com o mundo, do homem natural),
essa tem sido nossa maior ambição. Bem, é preciso uma boa
dose de paranóia e umas cachaças pra se sentir intimidado dessa forma diante de
uma máquina tão maravilhosa de fabricar sonhos. Mas às vezes é preciso pegar pesado
na metáfora pra que a gente se dê conta de possibilidades encobertas por uma série
de operações habituais, mecanizadas que nos interditam o acesso a uma experiência
mais autêntica, uma experiência que eu possa chamar minha (embora eu tenha a tendência
a encarar o Eu como um labirinto bem mais suspeito do que nos sugere o reconfortante
pronome). Essa questão é ampla e espinhosa demais pra caber
num texto introdutório, mas o que me interessa aqui é que, ao mesmo tempo em que
me sinto reconfortado com as possibilidades de controle e estimulação do meu erotismo
cinéfilo com uma “ferramenta” como o Emule (tentáculo gigantesco e maleável, a
partir do qual eu detenho um certo domínio do mundo, do meu mundo, da torre do
meu panóptico caseiro), a experiência complementar do Casanova se impõe: Casanova
é o arquétipo do homem que busca na satisfação erótica – e heróica – um domínio
completo do mundo e, consequentemente, do Eu que se situa nesse mundo. Ora,
essa síndrome de totalidade, do controle completo dos estímulos do mundo, da subsunção
do mundo à esfera do meu Eu, acompanha-se quase sempre da consciência da natureza
caduca, precária deste domínio; toda tentativa de domínio do mundo denuncia a
natureza dependente, submissa de meu Eu a este mesmo mundo, a supremacia do mundo
e a situação do meu ego neste mundo irredutível. Quanto maior a sanha do poder,
maior a “bandeira”: o que estou querendo provar? Portanto,
a satisfação erótica deste domínio absoluto do mundo (do mundo do amor, ou do
mundo do cinema), em um mesmo movimento denuncia nossa debilidade, nossa absoluta
situação neste mundo ao qual aspiramos possuir. Navegar
pelo Emule é um orgasmo e uma brochada, é a consciência atormentada de que há
um mundo de cineastas que ainda não conheço e que provavelmente nunca conhecerei
a fundo, um mundo de filmes que ainda não possuo (e toda possessão só se completa
ao fim de um processo temporal que não se conclui apenas com o fim do download),
um horizonte de conceitos e condições que me são necessários inventar e reinventar
para estar à altura desta série convulsa, diferencial de microscosmos em rotação,
colisão, disjunção. De estar à altura deste novo mauvais infini que o mundo
nos impõe. Espero não ter neurotizado e assustado os possíveis
leitores desta coluna com esse texto esquizóide, mas achei que valia a pena encarecer
o “lado negro da força”, pois pelo menos pra mim essa experiência permanece como
um pano de fundo, fantasmagórico e fecundo, da minha relação com a tecnologia.
Sim, pois o cara que acessa o Emule à procura de pérolas que não encontra em nenhum
outro lugar não é só o cinéfilo nerd, como habitualmente estamos acostumados a
encará-lo: nessa vivência, considerada tão parcial e específica, mobilizam-se
forças e representações que nada tem a ver com Emule, com cinefilia – e que nos
podem esclarecer sobre a relação do homem com a técnica e com o mundo. editoria@revistacinetica.com.br
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