história(s) do cinema brasileiro
Em busca do futuro
Veredas cinematográficas brasileiras
por Hernani Heffner (colaboração especial)

Dentre todas as manifestações artísticas brasileiras o cinema poderia ser considerada uma das mais jovens e uma das mais pontualmente impactantes. Seu percurso, no entanto, está quase sempre dissociado das grandes linhas de desenvolvimento da cultura brasileira. Não esteve presente, por exemplo, à Semana de Arte Moderna de 1922, marco de um posicionamento e de uma formulação quanto à natureza da cultura brasileira, assumindo esta herança em momento tardio de seu desenvolvimento. Por outro lado, em sua sempre discutida precariedade, dependência, marginalidade, mimetismo e performance, descortina-se um rico e complexo panorama da expressão artística brasileira, instaurado quase sempre a partir de uma perspectiva popular e por um certo desejo de país.

Sem o lastro das artes oriundas dos tempos coloniais e imperiais, sem o respaldo das elites sociais, econômicas e intelectuais, e apresentando-se sobretudo como lazer imediato e descompromissado, o cinema brasileiro ao mesmo tempo confunde-se e confronta-se com o período e o projeto republicanos. O imperativo de consolidar e transformar a nação continental em uma sociedade desenvolvida concentrou-se na solução industrial. Os grandes saltos na história brasileira recente associam-se a esta premissa – a própria República instaurada em 1889, a Revolução de 1930, a criação da siderúrgica de Volta Redonda em 1942, a consolidação do maior pólo industrial do país, o chamado ABC, no final dos anos 1950, a retomada do crescimento econômico a partir da formulação de uma indústria exportadora em fins do século passado.

Concebida de forma mais orgânica a partir da ambição do meio cinematográfico de se tornar uma indústria, a prática fílmica brasileira enfrentará as contradições econômicas, políticas e ideológicas advindas desta escolha, no fundo sempre desconfiando desta futura sociedade industrial e do seu elogio. Um cinema mais valorizado esteticamente e aqui comentado, mostra-se quase sempre em aparente descompasso com a roda da história brasileira. Repetindo o diagnóstico de um dos grandes pensadores da brasilidade, o sociólogo Gilberto Freyre, um renitente hedonismo e uma persistente rebeldia macunaímicas parecem enformar a rejeição do melhor do cinema brasileiro ao destino inevitável. Para complicar, acrescente-se a ambigüidade de seus discursos públicos em defesa de uma política cinematográfica de feição fabril.

Assim, os filmes associam-se a este movimento da história, por vezes o apresentam, por vezes o revêem, quase sempre evidenciam uma consciência impressionística do processo e se posicionam veladamente contra ele. Talvez por isso subsista uma valorização do rural, do arcaico, no cinema e na cultura brasileira, entendido este refúgio interiorano como a própria reserva definidora do ser brasileiro. O Brasil era o país do futuro, uma sempre adiada decolagem rumo à supermodernidade, que afinal chegou de alguma forma neste início de século XXI, quando não somos mais um país pobre, envergonhado de si mesmo, subdesenvolvido, do “terceiro mundo”, mas uma nação emergente no novo cenário internacional, um integrante do G-20, do BRIC, da nova elite mundial.

Uma mesma clivagem, ruptura, separação, parece opor em cinema esse passado e o atual presente. A tradição formada a duras penas ao longo do século XX cedeu vez à desconfiança para com ela, com os cineastas mais velhos mergulhando na negação, na nostalgia, no niilismo; e os mais novos demarcando bem a fronteira entre antigas formas e idéias e a experimentação de algo diferente. Não se trata mais, como nos tempos pioneiros, de buscar um caminho, quer fosse o do país oligárquico e agrário, elogiado em sua aparente candura, singeleza e fotogenia por um Humberto Mauro, quer fosse o da paisagem urbano industrial, ansiada oniricamente pelas então famigeradas chanchadas e por alguns gigantismos delirantes de passageiros grandes estúdios das décadas de 30, 40 e 50. No momento seguinte, mais amadurecido, instaura-se um olhar crítico e uma desenvoltura estética que não altera tão significativamente assim o salto do sertão para a favela. O Cinema Novo retoma e complexifica o projeto fundador do Brasil moderno, mas não o supera, antes o sustenta. Após o desencanto e a recaída, durante o último momento do século, a tarefa fica para a virada do milênio e para os recém chegados à arena.

Os jovens cineastas de agora não aderem, porém, a um elogio calculado e triunfante dos novos tempos. Fazem deslocamentos, perguntas e performances. Diferentemente de um Humberto Mauro, que concebe a era industrial como inevitável, desestabilizadora e violenta, em filmes como Sangue Mineiro, Ganga Bruta, Argila e Engenhos e Usinas, ou de um Mário Peixoto, que igualmente desenha uma paisagem natural violentada pelo artefato moderno (incluindo aí a própria câmara cinematográfica), como no famoso Limite, ou ainda de um Paulo César Saraceni ou de um Glauber Rocha, que fabulam um país antecipatoriamente pós-industrial e retumbantemente derrotado em seu projeto de nação desenvolvida, em filmes como Porto das Caixas e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, os diretores do século XXI concebem a vida em sua imediaticidade e tentam se distanciar de camisas de força de outrora.

Muito PrazerHá uma revisitação intensa de momentos anteriores da história brasileira, como em Lavoura Arcaica, Madame Satã, Cidade de Deus, Cinema, Aspirinas e Urubus, Diário de Sintra, O Fim e o Princípio e Serras da Desordem (foto). Não interessa mais, porém, a denúncia da opressão político-econômica, do colonialismo, do autoritarismo, por exemplo. O eixo desloca-se da luta coletiva para a afirmação individual pelo desejo, pela sexualidade e pela criatividade. Subsiste o horror da História, explorado em alegorias de gênero e em aparentemente plácidos retratos urbanos como Encarnação do Demônio, Vinil Verde, Mangue Negro, Durval Discos, Edifício Master, As Corujas, A Casa de Alice, Os Residentes, Flash Happy Society, Corpo Presente, Trabalhar Cansa, Mens Sana in Corpore Sano, Strovengah e Pacific. No horizonte de uma nova classe média, a irreversibilidade, a finitude, o vazio.

Muito PrazerNão espanta assim que tantos filmes novos peguem a estrada em um movimento de mão dupla: ida e retorno, atração e repulsa, mergulho e ascenção, morte e ressureição. Em lugares sempre distantes do epicentro do país revelam-se os verdadeiros dramas, as escolhas necessárias. Nunca o pôr-se em movimento foi tão vital e tão doloroso como em O Céu de Suely, Man. Road. River, Estrada para Ythaca, A Fuga da Mulher Gorila, Estradeiros e Girimunho. Nestes filmes chega-se a uma como que supressão da História, ou de outra forma, a um encerramento e a uma abertura, mantendo-se sempre a supressão do tempo em qualquer das suas modalidades mais definidas. As épocas misturam-se, o campo e a cidade comportam-se como extensões um do outro, a aridez e o esplendor são redefinidos a partir do interior do sujeito. O caminho em direção ao concreto da civilização, como em Insolação, pode transmutar-se no mergulho nas franjas da Natureza, como em A Alegria. Quem são os sujeitos que interessam? Não os das centenas de biografias mergulhadas na História, mas os que saltam para fora dela em um movimento de reinvenção permanente, como em Pan Cinema Permanente (foto).

Muito PrazerA primeira década do século XXI se iniciou com os duros e dilacerados diagnósticos de cineastas como Rogério Sganzerla e Júlio Bressane. Aquele acusa o esgotamento de uma síntese de Brasil, antes calcada na recusa do nacionalismo radical, no elogio da criatividade e resistência populares e na defesa da liberdade da arte. Em O Signo do Caos, a violência do poder torna-se incontornável e o país submerge na complacência, na mentira e na mediocridade. O desencanto prossegue em Filme de Amor e Cleópatra. A utopia possível não passou de sonho, agora, descarnado, envelhecido, perdido. A rainha egípcia não escapa ao devir histórico, que poderia concretizar-se de forma redentora, mas redunda em um pastiche circense (ou televisivo). Ataque semelhante encontra-se em Um Dia na Vida, retrato dramático da suposta falta de opção daqueles segmentos que teriam se prendido ao simulacro de país, vendido para consumo repetidamente por todos os meios audiovisuais da atualidade. No entanto, personagens como Bastu e Maria do Boi, não se deixam prender ao Girimunho (foto), antes enfrentam e atravessam a escuridão sabendo que ela faz parte do mundo. São a síntese de uma nova postura, de uma nova compreensão, de uma nova atitude frente ao devir insondável.

O Cinema Brasileiro Contemporâneo vive um momento de transição. O país mudou e assustou uma velha tradição cinematográfica que quase sempre desconfiava dele e punha em relevo suas deficiências e limitações, de acordo com um projeto civilizatório (ou desenvolvimentista) gestado há mais de um século. Esta lógica - a do consumo, do conforto, da abundância, da felicidade, do êxtase orgiástico – vem sendo denunciada pelos novos filmes, mais e menos empenhados esteticamente, não em sua insuficiência ou desvio, mas em sua inadequação. Os mais criativos abrem espaço, tempo, para o delicado mistério das verdadeiras aspirações, seus entraves e contradições, e a quase sempre adiada realização. A ambição agora é pelo simples, pelo básico, pelo humano, sem preconceitos ou profissões de fé. O país é pano de fundo, palco, cenário, mal entrevisto, pouco percebido. Deixou de ser signo construído metaforicamente. Não tem mais função de objetivo abstrato. À saturação da paisagem, opõe-se a aridez natural da vida.

Julho de 2012

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