in loco - cobertura dos festivais
Em Busca de um Lugar Comum,
de Felippe Schultz Mussel (Brasil, 2012)
por Fábio Andrade
A
encruzilhada do presente
Em Busca de um Lugar Comum embarca em diversos city
tours pela Rocinha, promovidos por agências de turismo
quase exclusivamente para estrangeiros. O filme nasce do tranco
- se não do choque - de levar olhos locais para o que é
normalmente reservado a estrangeiros - estrangeiros não
só de outro país, mas também os próprios
moradores locais, em geral indetermináveis no cotidiano
da cidade baixa carioca, de onde (como as subidas deixam claro)
vem o olhar do próprio filme. Esse primeiro gesto já
revela um senso de oportunidade admirável do documentarista,
que percebe um espaço até certo ponto ainda inexplorado,
ainda virgem aos olhos do cinema, a despeito da profusão
absoluta de câmeras estrangeiras por ali.
Há, portanto, uma cena pronta, e essa percepção
de que um cena já existe e espera, pacientemente, a chegada
do cinema é ponto de partida para vários dos melhores
documentários - ao menos os que mais tradicionalmente definem/dialogam
com o cânone, a tradição do documentário,
que estabelece sua diferença para a reportagem. Uma vez
detectada a vigência dessa cena, basta atenção
e paciência para que os personagens, os conflitos e as contradições
cheguem à superfície e se ofereçam ontologicamente
à organização da montagem. Ao cinema cabe
a responsabilidade do registro e organização da
História, mas o cinema brasileiro permanece (menos do que
antes, mas ainda sim) insuficiente para os processos pelos quais
passa o país. Em Busca de um Lugar, nesse sentido,
é um filme que precisava ser feito - evidência que
fica patente nesta "cena" que espera para ser filmada.
A palavra "cena" é importante, e aqui ganha
um sentido perversamente auto-consciente, pois é assim
que as agências de turismo montam esses passeios: dos jipes
camuflados que sobem o morro ao discurso piedoso pelos nativos
"regenerados", percebe-se a extrema consciência
de todos os atores - turistas, guias e moradores - no engajamento
em uma proto-ficção, um engodo que sacia uma mesma
sede que busca diferentes sabores, seja o da impressão
de realidade (o inevitável subtexto de guerrilha urbana
quando se adentra um labirinto desconhecido - os passeios não
são muito diferentes de um safari ou de uma partida de
paint ball), o da narrativa de redenção (os
artistas que vendem "artesanato" - aquela velha palavrinha
burguesa que baixa o preço das obras de arte que eles desejam
comprar), o do testemunho da pureza (as crianças que batucam
em baldes vazios) ou o do conhecimento sociológico
in loco. Vendidas em um mesmo pacote, são, todas elas,
ficções forjadas pela lógica do consumo,
do sujeito que paga um preço para receber um determinado
estímulo e se sente lesado se essa promessa não
for cumprida. É, portanto, uma cena que pode ser qualquer
coisa, menos uma cena de cinema.
O que difere a câmera de Mussel, indistinta
entre todas aquelas outras câmeras e igualmente obediente
em desviar os olhos se calhar de passar por ali um rapaz com um
fuzil nas mãos, não é somente a sensibilidade
que codifica esse olhar. Em Busca de um Lugar Comum é
um filme irmão de Pacific, de Marcelo Pedroso
(não à toa, um dos montadores do filme), por reconhecer
tanto a cena já construída, seja ela na favela ou
em um cruzeiro de navio, quanto a autonomia de mise en scène
que se apresenta hoje também no olhar comum, presente
aqui nas fotos e vídeos feitos pelos próprios turistas
e incorporados à montagem. O que justifica essa outra câmera,
esse olhar que podemos dizer ser o do filme (e que, como prova
Pacific, a rigor sequer precisaria de uma câmera
para existir, podendo simplesmente se apropriar e contaminar imagens
alheias) é justamente não compactuar com esse engodo
do consumo. O gesto cinematográfico em Em Busca do
Lugar Comum está em não entregar o que dele
se espera.
Mas o que, de fato, o filme entrega? Quando chegamos à pergunta de ouro, o texto - assim como o filme - se vê em uma encruzilhada. Por um lado, há a necessidade do artifício, a percepção bastante equivocada de que esse lugar comum só é possível em um momento dó de peito em que o filme deixará de olhar, de mostrar, e oferecerá ao espectador também a sua própria ficção: as várias fotos dos turistas estrangeiros se fundem em um mesmo plano, coabitando os limites de uma mesma tela, com línguas diferentes que giram em surround. Em Busca de um Lugar Comum traz dois ou três pequenos espetáculos feito este, e nesses momentos fica a impressão de que o pacto de ficção que o filme acredita ser capaz de oferecer é, provavelmente, mais cego à realidade que nos mostra do que o engodo entre agências, comunidades e turistas. Em primeiro lugar, por o artifício auto-suficiente lembrar muito mais o episódio de Alejandro Gonzáles Iñárritu em 11 de Setembro do que qualquer coisa que se pareça remotamente com bom cinema (para me poupar o atrevimento de tocar no nome de Chris Marker); mas, principalmente, por a necessidade do artifício obrigar o crítico a repensar os três primeiros parágrafos que o filme o entusiasmou a escrever... pois se é preciso recorrer ao artifício, no fim das contas é porque não há a percepção de que esse lugar comum já existe - de que aquelas pessoas reunidas sob uma mesma laje, mirando uma mesma vista, já encontraram e habitam esse espaço comum, e que ele se concretiza para o espectador na simples presença da câmera de Mussel ali. Estaria, o filme, buscando tão obsessivamente construir uma cena que acabou não percebendo que ela já estava pronta, à sua frente? Não é possível compactuar com essa breve decepção sem relevar todo o resto do filme, mas é fato que Em Busca de um Lugar Comum é um título que só funciona se carregado de ironia.
Pois
há, também, a potência inexorável e
preciosa do desconforto proposto por todo aquele material: as
crianças da comunidade pacificada, sentadas lado a lado
no meio fio, cantando louros à PM; o discurso pronto generalizado
(novamente, a fidelidade à cena, a um roteiro) que faz
com que os lobos em pele de cordeiro sejam, também, cordeiros
em pele de lobo; os pacotes de turismo alternativo criados pelos
próprios moradores e que trazem dados e fuzis que as agências
de turismo, a UPP e o Estado do Rio (que, muito ironicamente,
é o principal provedor do filme) escondem atrás
das fachadas coloridas dos barracos que margeiam as ruas das favelas,
etc. Há uma riqueza neste material e uma precisão
nesta organização que rendem não só
registros notáveis, mas também fortes momentos de
cinema.
Não entregar o produto que se espera é,
na verdade, uma forma de crítica. Se rimos do jovem de
dreadlocks quando ele conta das crianças que tocam
berimbau para avisar aos traficantes que a polícia está
chegando, esse riso recai sobre todo pacto de ficção,
todo engodo necessário para que uma sociedade tão
complexa quanto a carioca siga existindo em aparente harmonia.
São engodos - crenças, se preferirem - necessários
também ao filme, que tem que escolher onde colocar a câmera,
e ao crítico, igualmente ciente da necessidade de se escolher
um caminho, uma proposição de mundo, quando sabe
que o filme, também, em toda sua "busca", encontrou
de fato um lugar justo para se colocar naquele último plano
em que a câmera pára, e observa um comandante da
UPP se afastar com o dono de uma agência de turismo. Se
há, de fato, uma busca, ela começa não pela
definição de para onde se vai, mas de com quem não
iremos. Neste momento, se reafirma a impressão de que o
cinema brasileiro contemporâneo parece mais marcado pelo
que não filma, pelo que se nega a filmar, do que pelo que
de fato filma. Em uma vivência saturada de imagens, o artista
deixa de ser criador e se torna curador. Seu gesto se resume ao
rigor de sua seleção. Talvez o filme realmente necessário
começasse ali, naquela encruzilhada, mas talvez também
esse filme ainda não seja possível. Em Busca
de um Lugar Comum é o filme possível neste
momento, como esta é a crítica possível,
estas são as políticas possíveis, esta é
a cidade possível, estes são os encontros possíveis,
este é o presente possível. E o possível
é algo que ainda desconhecemos por completo.
Dezembro de 2012
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