Elvis e Madona, de Marcelo Laffitte (Brasil, 2009)
por Fábio Andrade

Um passeio marginal

Elvis e Madona
investe sobre um universo pop bastante presente na cultura brasileira, mas que ainda parece até certo ponto interdito a muito do cinema recente, seja por um certo temor antropológico ou pela busca convencional de uma beleza acadêmica. Em questões de universo, é possível aproximá-lo de alguns filmes de Pedro Almodóvar (pensemos na palheta de cores de Kika ou Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos), mas também da vital abordagem transsexual do cinema de João Pedro Rodrigues.

Mas, passadas as primeiras camadas de aparência, é perceptível a diferença. Assim como na investigação do brega por Miguel Gomes em Aquele Querido Mês de Agosto, João Pedro Rodrigues parte de uma atitude de afirmação de identidade, que nasce em Portugal com João César Monteiro: não somos mais o povo de Eça de Queiroz, mas sim o de “quero cheirar teu bacalhau, Maria” (como dizia uma das canções de Recordações da Casa Amarela). O “bacalhau” pode ser bacana, rico e belo à sua maneira, mas é preciso que ele seja olhado com honestidade e frontalidade dentro da criação artística. É preciso, como faz Miguel Gomes com a canção popular, descobrir em que lugar essa visão de mundo ainda faz sentido, para então poder encená-la com propriedade. Elvis e Madona não faz isso, e tampouco usa a negação de qualquer aderência como conflito para um impulso criativo. Resta apenas o faz de conta, a aproximação diagonal, a cordialidade e o deboche; resta apenas o kitsch, a banalização, o estapafúrdio feito classe média.

Afinal, estamos diante de um filme sobre dois homossexuais (Elvis – Simone Spoladore – e Madona – Igor Cotrim), reconvertidos em uma relação heterossexual, onde a vivência gay é vista como manancial de tiradas do humor próximo ao de um Casseta & Planeta, e o fascínio da ambiguidade travesti é feito novamente normatizado, estéril, conformado. Onde deveria haver pulsão estética, há apenas reafirmação de preconceitos, padronização das diferenças (há algo mais reacionário e míope do que um romance entre uma lésbica e um travesti?), demarcação de distâncias, e um interesse maior por uma idéia pré-concebida daquele universo do que por qualquer coisa que possa vir a emanar dele. Elvis e Madona é um pouco como um A Grande Família que troca o subúrbio carioca pelas boates gays de Copacabana, e que só consegue se aproximar desse universo deixando que as noções pré-concebidas sobre o “outro” falem mais alto do que ele mesmo.

É um filme conservador, pois não se deixa afetar, não quer ser afetado, e tem como único objetivo moldar o outro até torná-lo mais confortável, mais simétrico, mais parecido com o desejo de quem filma. Nesse sentido, é bom lembrarmos de um belíssimo curta pernambucano recente, sobre universo igualmente marginal, chamado Faço de Mim o que Quero, de Sergio Oliveira e Petronio Lorena. Pois Faço de Mim o que Quero se aproxima da indústria tecnobrega do Recife decidido a incorporar seus valores, e deixar que eles também incorporem o filme. Como bem salientou Francis Vogner dos Reis em seu texto na cobertura do Festival de Brasília, esse sentimento fica especialmente claro nos créditos finais, onde os nomes da equipe e o título do filme aparecem literalmente pintados na pele das personagens, fazendo diegético o não-diegético, se deixando contaminar ou, mais do que isso, percebendo que o filme também é incorporado por quem é filmado. Falta a Elvis e Madona essa disposição “de pele” que é primeira, é pré-filme, é pactual. Não há relação exógena possível quando ela não se dá dentro da tela.

Janeiro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta