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Passado (El Pasado), de Hector Babenco (Brasil/Argentina,
2007) por Paulo Santos Lima O
passado é uma página colada
O Passado é,
talvez, o filme mais “religioso” de Hector Babenco. Por um lado porque apresenta
a principal personagem feminina, Sofia (Analía Couceyro), como um Deus feminino:
onipotente, cultuada por vários e censora das andanças do protagonista Rímini
(Gael García Bernal) pelo mundo. Sofia usa como dogma o passado dela como ex-mulher
de Rimini: uma série de experiências vividas por 12 anos que não pode ser jogada
fora, segundo ela. E a “bíblia” na qual estão escritos os mandamentos é uma caixa
com fotografias. Rímini, a pedido da ex, tem de fazer a partilha dessas memórias
– mas ele é contra, pois acha que não se pode dividi-las; ou seja, mesmo dando
as costas à sua história pretérita, ainda assim esta se faz fisicamente presente
(seja um porta-retrato no qual ele estica a carreira de coca que vai aspirar,
seja a lembrança que os familiares têm dela, ela de corpo em cena etc). O passado,
esse dado onipresente, determina, portanto, a trajetória dos seres neste O
Passado. Há um outro sentido religioso, católico mesmo,
em funcionamento no filme de Babenco – e que cria uma curiosa proximidade entre
sua visão de mundo e a de Alejandro González Iñarritu (pelo menos nos que Guillermo
Arriaga roteirizou). Enquanto os personagens do diretor mexicano têm de demover
a morte de seus traumas colossais, os homens e mulheres das fitas de Babenco precisam
exorcizar o fantasma do passado. Em ambos os casos, parece haver um Deus, localizado
sobretudo na instância narradora: um mecanismo superior que rege o andamento das
coisas. Ainda que nos dois casos os personagens não parem de fazer coisas, sejam
bastante ativos, suas ações não parecem determinantes pois eles estão sob rédeas
de alguém maior, absoluto: têm de ficar um tempo na cruz, queiram ou não (Lúcio
Flávio é o melhor exemplo dessa abnegação). Este, aliás,
não é o único eco da obra anterior de Babenco: o assombro de Sofia, mostrada a
meio caminho entre o charme e a esquisitice pelo filme, não é muito diferente
do assombro do mendigo Phelan (Jack Nicholson) em Ironweed, que, bêbado,
deixou seu bebê cair do colo e matou acidentalmente um grevista – dois eventos
que tanto o romperam com a família como lançaram-no à mendicância. Neste filme
de 1987, Babenco fazia questão de nos mostrar literalmente os fantasmas que tumultuavam
a paz daquele triste homem. Agora os fantasmas estão por dentro do corpo de Sofia:
ela remete à fantasmagoria mais por sua onipresença e ruído nas relações de Rímini,
que acaba tendo seu casamento e paternidade desmoronados graças à ação desta mulher
do passado. Ironweed
talvez tenha sido um momento de mudança conteudística (e um tanto formal) na obra
de Babenco, que vinha do “realismo” (ainda que estetizadíssimo, sempre) de Lúcio
Flávio, o Passageiro da Agonia e Pixote – A Lei do Mais Fraco, e rumava
para algo mais etéreo, espiritual, como nas figuras meio iconográficas de Brincando
nos Campos do Senhor e o delirante Coração Iluminado (grande filme,
aliás). E embora a comparação com este último (o outro “filme argentino” de Babenco)
seja fácil, O Passado parece bem mais comportado que Coração Iluminado
naquilo que este propunha ao sobrepor experiências internas do protagonista: lembranças
curtocircuitadas por uma busca, embaralhando uma organização mais literal dos
acontecimentos. Agora as coisas estão aparentemente mais límpidas, no que Babenco
sinaliza quase um retorno a um cinema de realismo diegético, do “juro que é a
vida como ela é”. Teria sido Carandiru o indício de uma nova guinada “naturalista”?
A “espiritualidade”, que se faz notar e não necessariamente
mostrar em O Passado (algo, aliás, bem interessante), é bem coerente ao
trabalho de câmera na mão suave, à fotografia quase monocromática (bem “contemporânea”,
bem plugada com o estilo do cinema latino atual), à decupagem bem resolvida. Babenco
segue a gramática da segurança aqui, mas há um punhado de passagens que parecem
somas de elementos para assegurar o discurso temático do filme: o ciúme idiota
da modelo, por exemplo; a loucura à la Howard Hughes no apartamento doado pelo
pai; a passagem por São Paulo, que mais parece protocolo da co-produção. A experiência
penosa de Rímini, nessa prisão uterina, torna-se rarefeita, vácua. O
Passado cria ainda uma ambigüidade acerca da figura de Sofia, dando valor,
confirmando-a como algo determinante na vida do protagonista (que a horas tantas
dará o devido valor à tal caixa de fotos cultuada pela ex-esposa), mas também
mantendo-se bastante machão a respeito da personagem (e de outras tantas outras
loucas mulheres que se perturbam após o rompimento marital). A caracterização
caricatural de Sofia, e da casa que ela abre para abrigar as mulheres que perderam
seus maridos (com direito à encenação in loco de A História de Adèle
H., de Victor Hugo), faz de todas as presenças fêmeas no filme momentos do
mais puro terror (exceto as outras três mulheres com que Rímini se relaciona). Esse
olhar um tanto sacro, de missionário, talvez explique por que o corpo, e sua função
mais interessante na Terra (o sexo), sejam elementos incômodos nos filmes de Babenco.
Há a prostituta em Pixote, a complicação existencial-sexual dos colegas
de cárcere de O Beijo da Mulher Aranha, o modo combalido com que Meryl
Streep entrega-se a Jack Nicholson em Ironweed, a nudez histérica de Kathy
Bates em Brincando nos Campos do Senhor, os belíssimos vales carnais de
Maria Luisa Mendonça configurando o que há de mais desestabilizador para o rapaz
de Coração Iluminado, e, agora, Rímini transando de forma bastante esquisita
com suas mulheres, um quase “pensou, gozou” bem estranho, mecânico. Nesse sentido,
é curioso notar que o cartaz do filme antes mostrava o seio esquerdo de Analía
Couceyro, numa belíssima imagem do casal, e agora deu lugar a um outro – onde
o título do filme acoberta a área antes revelada. Outubro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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