in loco - cobertura dos festivais

El Otro (idem), de Ariel Rotter (Argentina, 2007)
por Eduardo Valente

Fascínio do escuro

Curioso ver este O Outro sob a luz de O Guardião, filme argentino lançado nos cinemas brasileiros em 2007. Afinal, ambos são protagonizados pelo mesmo grande ator (Julio Chávez), em papéis onde aposta-se acima de tudo na opacidade do personagem: acompanhamos nos filmes cada passo de ambos os protagonistas, a partir da fé de que os olhos e a expressão corporal de Chávez contruirão tudo aquilo que é do terreno do não-dito. No entanto, mesmo com as semelhanças, podemos de fato afirmar que O Outro é o exato oposto de O Guardião, pois onde este era todo predeterminação disfarçada de mergulho no escuro, o filme de Ariel Rotter realmente aposta suas fichas no tal escuro.

O Outro se estrutura como uma narrativa em abismo, onde não acompanhamos exatamente uma trama, mas muito mais um desmonte, uma desconstrução. Começamos o filme com um criativo uso narrativo dos créditos, que vão se transformando em matéria diegética a partir de um exame de vista. Juan, o personagem de Chávez (que logo descobrimos ser um advogado um tanto comum), precisa de óculos novos – no que está longe de ser uma metáfora das mais complexas: trata-se de um homem que, simplesmente, perdeu o foco. Não é, diga-se, a única das metáforas simples usadas pelo filme: há uma série de planos dele se olhando no espelho (num filme cujo tema é a identidade), mais à frente ele se hospedará no Hotel Pasajeros (piscada de olho ao filme de Antonioni, com o qual este aqui tem mais do que uma mera semelhança), até que finalmente o personagem literalmente sairá da estrada mais à frente. Parecem, e até certo ponto são, imagens fáceis – mas também são imagens que o diretor filma com grande entrega.

Sim, porque esta é a grande vantagem de O Outro sobre O Guardião: Rotter parece realmente filmar ao lado de seu personagem, acreditar profundamente num certo “tudo pode acontecer” quando ele decide se perder de si mesmo após ver um homem morrer ao seu lado numa viagem de ônibus (enquanto O Guardião aposta numa pretensa dinâmica do não-acontecimento, quando na verdade apenas predetermina o choque, a explosão psicótica). Juan decide que quer ser outras pessoas, quer deixar de ser ele mesmo – e a partir desta decisão, claro, se envolverá com uma série de personagens (notadamente uma misteriosa e bela mulher), em cenas filmadas sempre com a câmera fixa, em enquadramentos sóbrios, mas nada frios.

Nunca conseguiremos saber (e esta opacidade dá força ao filme) o que leva Juan a decisão de deambular, de sair de si mesmo. Temos como evidência apenas os seus olhos e corpo cansados: vemos que ele tem uma mulher com quem vive uma relação estável (mas sem sinais particulares de infelicidade), um emprego, um pai doente (mas de quem trata com carinho e sem rancor). Trata-se, tudo indica, de um homem comum. E talvez essa sua dimensão banal seja o que provoque o impulso da ida ao desconhecido. Ida esta que, em mais uma imagem bem clara, assim como começa com uma morte, terminará com uma ressurreição – numa cena particularmente bonita, estranha. Só que para Juan a ressurreição não tem exatamente a força de uma iluminação, de uma novidade: pelo contrário, ela marcará sua volta ao que tinha antes. Um homem melhor ou pior, isso não importa – e o filme não tenta dar conta. Trata-se apenas de um homem comum, que volta após deixar-se “perder por aí”. O mesmo homem - mas, ainda assim, um "outro".

Outubro de 2007

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta