in loco - cobertura dos festivais
Lições Particulares (Élève
libre), de Joachim Lafosse (Bélgica/França, 2008) por
Eduardo Valente Em
busca dos limites
A dedicatória inicial de Lições
Particulares funciona mais como uma epígrafe: “aos nossos limites”, diz a
frase que pode ser lida com várias entonações e sentidos distintos. De que limites
se fala afinal: daqueles que nossa vocação nos impõe ou os da moral? Logo veremos
que o jogo que Joachim Lafosse propõe é exatamente o de opor estas duas dimensões
e provocar no espectador um curto-circuito entre uns e outros. Cinema de ficção
como exploração de tese, personagens como exemplos de casos. Se o leitor pensa
no cinema de Michael Haneke, não estará errado: Lafosse (cujo anterior Propriedade
Privada já tinha muito em comum com o cinema do austríaco, mas era bastante
inferior a este) se propõe como um mastermind que manipula as peças de
um jogo com muita clareza e segurança. Jonas
é um jovem com dificuldades no colégio, ansioso por perder a virgindade e promissor
aluno de tênis. Desde o começo, entendemos que o corpo de Jonas é um corpo em
formação, em processo de treinamento: o apanhamos no momento em que exercita o
tênis, com talento, mas especialmente com uma entrega emocional que impressiona
(as duas cenas de tênis do filme estão entre as mais bem filmadas). Jonas surge
como uma presença de tela desconcertante, entre a beleza quase idealizada do seu
rosto, e a vivacidade e desconforto de seu olhar. Jonas procura um encaminhamento,
algo que certamente não encontra nem nos seus pais nem no seu irmão, figuras que
aparecem na tela como distantes, ainda que não totalmente desconectadas. Caberá,
então, a três outros adultos (cuja relação com Jonas nunca fica clara, para além
de serem amigos de sua mãe), Pierre, Didier e Nathalie, servir como fontes de
saber para o jovem. Neste momento em que os dilemas do mundo parecem se somar
e complicar, em que passar de ano, ser um bom amante para sua namorada e tornar-se
um tenista melhor se revezam como prioridade a cada momento, qualquer tipo de
ajuda é bem vindo, e as figuras fascinantes destes três surgem como as pessoas
exatas que Jonas buscava – em especial, Pierre, que parece encontrar no trabalho
de “moldar uma jovem mente” um prazer sem paralelo em sua (também não explicada)
rotina de vida. Voltamos, portanto, aos limites lá da epígrafe: desde a primeira
cena entre eles, sentimos algum desconforto na relação de Jonas com seus 3 “guias”,
e na medida em que a relação vai se estreitando, sentimos que perdemos completamente
o sentido de onde foi que alguma fronteira foi quebrada – se é que isso realmente
aconteceu. Lafosse
filma isso tudo com muita inteligência e real domínio sensorial. É onde ultrapassa
o próprio modelo hanekeano: ajudado por interpretações absolutamente inspiradas
de Jonas Bloquet e Jonathan Zaccaï, ele permite que seus personagens respirem
pro si mesmos, que estejam vivos na tela para além de suas funções primordiais.
Jonas é a cobaia, mas percebemos que ele entende o jogo bem melhor do que parece;
Pierre é o manipulador, mas também revela sua fragilidade; Nathalie e Didier não
agüentam o próprio jogo proposto. Ao final, num irônico happy end, só Jonas
parece atingir seu objetivo – mas cabe a nós decidir se este final é happy,
afinal. Lafosse, se tem sua própria resposta, não a impõe ao filme ou ao espectador,
simplesmente porque isso faz parte do seu jogo. Num determinado
momento dos ensinamentos de Pierre a Jonas, ele cita Albert Camus no seu estudo
do mito de Don Juan, onde ele afirma que “deixa para o leitor decidir” o que pensar
do personagem. Fica bem claro que o diálogo é mais do que apenas mais um momento
na tutela do homem com o jovem, e que através do personagem Lafosse fala diretamente
sobre os interesses de seu filme: expor com o máximo de clareza e frontalidade
os fatos sobre um grupo de personagens, e permitir que o espectador julgue por
si mesmo as implicações dos atos (inclusive as suas próprias reações a eles).
Manipulador, sem dúvida, mas expondo suas regras o tempo todo. Outubro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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