in loco - cobertura dos festivais
Elena, de Andrei Zvyagintsev (Rússia, 2011)
por Pedro Henrique Ferreira

Pais e filhos

Quem vem acompanhando a carreira de Zvyagintsev não irá se surpreender com o ritmo lento em quadros predominantemente fixos em cinemascope, a baixa temperatura de cor das imagens e as referências a temas pictóricos-bíblicos que povoam Elena. Os recursos, já notáveis em seus dois primeiros longas-metragens, servem novamente para abordar relações complexas de paternidade e conflitos de gerações que espelham condições universais em narrativas de três atos clássicos. Motivado pelo convite do produtor britânico Oliver Dungey a dirigir com uma verba de U$ 8 milhões um longa-metragem sobre o apocalipse, Zvyagintsev verteu o tema para que se encaixasse naquilo que vem fazendo sequencialmente desde sua estreia com O Retorno - isto é, uma fábula sobre a decadência moral na Rússia.

Assim como no longa-metragem de estréia, a trama de Elena se compõe nos meandros de um único gesto: matar uma figura paterna repressora, cheia de verdades morais, que exige dos outros uma conduta baseada em valores como dignidade, submissão e esforço. Estaríamos diante de uma narrativa tradicional sobre a substituição do poder, não fosse o quadro mais complexo que Zvyagintsev montou para dar conta do recado, um em que o gesto executado pela figura central (Nadezhda Markina) adquire um sentido que é o completo oposto – o de uma traição. Pelo que estava escrito no testamento, a herança iria para a filha, uma mulher distante do pai. De atitudes anarquistas e cínicas, não quer dar continuidade a uma genealogia, e acredita que o mundo está vivendo um apocalipse. Todavia, após um diálogo de reconciliação, o pai confia a ela a herança. Com medo que seu neto fique sem faculdade, a segunda esposa deste homem, protagonista que dá título à obra, queima os documentos de modo que a herança passa a ir para seu filho Sergey (Aleksey Rozin). Em oposição à herdeira original, Sergey é um sujeito desleixado e preguiçoso que procriou muitos filhos sem nunca ter o mínimo senso da responsabilidade que é colocar um ser humano no mundo.

Elena acontece na configuração de seu clímax, a cena do assassinato, e numa tensão silenciosa que envolve o evento, das suas causas a seus desdobramentos. Como numa fábula moral, a narrativa extrai metáforas políticas pela caracterização desta gama de personagens. Vladimir é o símbolo de um governo totalitário, o pai que impõe códigos morais por atos repressores, mas que se preocupa com a evolução da espécie. Sua filha é uma forma de anarquismo que diverge da geração paternal, mas que se desmembra naturalmente dela, numa guinada rumo à tomada de consciência por parte da civilização. Sergey, por sua vez, representa o produto do liberalismo, um homem preguiçoso que valida o vandalismo e a falta de compromisso moral de seu filho alienado. E não à toa, a imagem final é a da família reunida em frente a uma televisão, vendo um show de auditório.

No interior desta tríade que remete à esfera política, Zvyagintsev tece uma trama sobre as transformações na Rússia contemporânea. É a primeira vez que o diretor trabalha com locações geograficamente definidas e nomes típicos na cultura de seu país, enquanto seus dois filmes anteriores acontecem em lugares ermos que não denunciam com convicção nem a nacionalidade, nem a época. Neste olhar duro e incisivo que Elena põe em jogo, o gesto de matar a figura paterna não é uma dialética, mas uma traição. A traição que teria desviado a progressão natural da sociedade rumo ao liberalismo e criado um monstro sem valores morais – o habitante perfeito do Apocalipse que já vivemos.

Outubro de 2012

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