in loco - cobertura do 45o festival de brasília
Elena, de Petra Costa
por Fábio Andrade
As formas da morte
Em Diário de uma Busca, Flávia Castro
faz uma radiografia de como sua vida foi diretamente afetada pelo
envolvimento de seu pai com as guerrilhas políticas latino-americanas
a partir da década de 1960. A guerrilha, esse desdobramento
ativo de um posicionamento ideológico e do abraço
a uma utopia, era a malaise daquele momento histórico,
o leviatã que engolia jovens cheios de vida e potência
– e é raro encontrarmos filmes que voltam a esse
momento sem o justo lamento pelas vidas interrompidas. Elena,
de Petra Costa, parte desse mesmo estado de coisas, apresentando
os pais neste mesmo contexto, para dizer que Elena, à época
no ventre da mãe da diretora, evitou que os pais fossem
sacrificados a caminho do exílio. Como um filme biográfico
a ponto de carregar um nome no título, é claro que
a guerrilha é colocada como dado contextualizante que,
no fim das contas, serve para dar a dimensão do gesto da
personagem principal: alguém que salva a vida dos próprios
pais. Mas justamente por ser colocada à margem, quase como
ato falho, a guerrilha é o ponto de partida de um dos dados
mais interessantes deste Elena: a radiografia das transformações
desta malaise em nossa História recente.
Pois Elena, a irmã da diretora, sucumbe ao mal de seu próprio
tempo: no auge da juventude, vai a Nova York buscar a formação
para uma vida artística mais promissora e, pouco a pouco,
é devorada pela depressão. Um novo exílio,
uma nova doença, um novo sacrifício; mudam as utopias,
mas permanece a imposição que se morra por elas.
Mas há, ainda, um terceiro passo nessa linha do tempo.
Pois Elena, o filme, é também doente do
espírito. Temos, aqui, uma outra encarnação
dessa mesma malaise que marca os dias de hoje: a vontade
de se anular em ficção. No começo, um texto
em voice over lido pela diretora diz que, aos poucos,
foi se percebendo cada vez mais parecida com a irmã: em
dado momento, decidiu também ir para Nova York, estudar
para ser atriz, exatamente como fez Elena. Quando vemos uma mulher
andando pelas ruas desfocadas de Nova York, é a própria
Petra Costa quem encarna a imagem espectral de sua irmã.
A voz da diretora ocupa a banda sonora com uma moleza perturbadora.
Seu tom, de leveza quase jocosa (leve como uma pluma, não
como um pássaro – para invertermos a proposição
de Ítalo Calvino), contrasta com a doença que toma
o corpo da irmã a cada nova fala.
Toda a representação aqui tende ao espectral, mas
a cada imagem em VHS que retorna, com a fantasmagoria acentuada
dos formatos de imagem descontinuados, temos uma certeza: Elena
era real, demasiado real. Deseja o cinema, mas seu palco era o
teatro e a dança – as artes da carne. Seus sonhos
são concretos, sua dor tem manifestação física.
E, claro, sua presença pós-morte se tornou residual
- mas é sintomático que, no momento em que Petra
Costa foge dos desfoques e assume a área visível
da cena, sua presença representada pareça tão
pouco à vontade com a gestualidade de suas ações,
a carnalidade inevitável que vem com a consciência
cênica do próprio corpo. A malaise que,
antes, interrompia o corpo com as dores do mundo e no momento
seguinte manifesta no corpo as doenças do espírito,
hoje nega o mundo e corpo, pois seu desejo é justamente
o da perda de gravidade (os vários corpos femininos que
bóiam rio abaixo), o de anular tudo que é concreto
nos espectros da ficção. Do avesso de sua vontade,
Elena é um dos primeiros filme a registrar essa
malaise como algo mais do que uma simples manifestação.
Por outro lado, é justamente esse desejo que rende cenas
preciosas como as em que a diretora interage com a mãe.
Preciosas pois dotadas de uma crueldade extremamente necessária
quando o desejo é usar o cinema para se comunicar com os
mortos. Ao lado da diretora, a mãe refaz os últimos
passos da filha mais velha, obrigada a relembrar cada detalhe
daqueles últimos dias, como o laudo legista relata cada
marca encontrada nos órgãos retirados do corpo sem
vida. Se afirmávamos há
pouco (sobre Otto, de Cao Guimarães) que um
filme familiar só pode existir quando há disposição
para matar a família, Elena só é
possível pois há uma morte original, um corpo extremamente
concreto que já não está mais lá.
Pois é necessário estar em paz com a idéia
de que uma morte real será tratada, pela estrutura, como
um filme de suspense, e que há uma narrativa subterrânea
que se impõe ao desejo agridoce da narração.
Uma vez projetada, essa morte real se tornará uma morte
de cinema. E por mais que o desejo de poesia se esforce por negar
essa concretude, as imagens permanecem ali, aterrorizantes, como
máscara mortuária do que só pode ter sido
concreto. Todo documentário hoje parece desejar a ficção,
mas a ficção é uma manifestação
de outra ordem do documentário. A auto-ficção
em Elena é a somatização da dor
em sua própria negação.
Setembro de 2012
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