sessão cinética
Eleição - O Submundo do Poder (Hak se wui),
de Johnnie To (Hong Kong, 2005)
por Fábio Andrade

AcossadoO nascimento do caos

Gilles Deleuze, pensador impreciso mas bom frasista, partia de Lacan para dizer que o estilo não seria mais que a diferença subordinada ao idêntico. Poucos cineastas ilustram tão bem esse conceito como Johnnie To, sujeito que foi, sem cerimônia, das comédias aos filmes de ação, de romances fantasmas a tiroteios que transformam as ruas de Hong Kong em palco (ou picadeiro) de western. Embora Eleição não seja o melhor dos filmes recentes de Johnnie To (a despeito de estar facilmente entre os melhores de sua carreira), ele talvez seja um dos guias mais precisos para se compreender o trabalho de maturidade do diretor, e os rumos de seu olhar.

Ativo no cinema de Hong Kong desde 1979, incluindo uma pausa de sete anos após seu primeiro longa metragem, e progressivamente responsável por um cruzamento bastante peculiar entre o cinema industrial - realizando uma média de dois filmes por ano, cruzando uma série de estilos, e com uma variação sensível de qualidade - e o reconhecimento artístico, Johnnie To tem como traço de sua fase mais recente a dedicação frontal e quase exclusiva (à exceção de equívocos como Linger, de 2007) à potencialização barroca do estilo. Seja pelo universo dos mafiosos de Hong Kong, como em Eleição; os bastidores do telejornalismo, como em Breaking News; ou o (parco) funcionamento da instituição policial, em PTU e Mad Detective, Johnny To cada vez mais transforma seus trabalhos de gênero em esforços rigorosos (e muitas vezes descerebrados) de exacerbação estilística.

AcossadoPara quem chega a Eleição já familiar à coreografia exagerada dos filmes posteriores, talvez este lhe pareça surpreendentemente contido em seu ritmo até certo ponto tradicional, seus contrastes intensos, sua trama em carrosel e seu peso político. Mas Eleição é um filme essencial justamente por testemunhar o começo do desbunde: como é viver em um mundo onde não há mais regras? É exatamente aí que são colocadas as personagens da trilogia de Eleição (completada por Eleição 2 e Exilados), entre os escombros da tradição e da ética.

Eleição
filma esse progressivo desmantelamento e, à medida em que ele avança, os punhos da atmosfera se cerram com maior força em nosso pescoço: quando não há mais regras, tudo é possível. Todo carro que se move é uma ameaça, toda sombra (e há toneladas delas) pode esconder um confronto com a morte, todo encontro pode ser preparação para um banho de sangue. Neste ponto, Johnnie To realiza um espelhamento bastante surpreendente. Pois, assim como o submundo do crime, o cinema de gênero - lugar mais que propício para que a diferença seja subordinada ao idêntico- também tem suas regras. Mas se as regras já não servem para nada dentro do filme, é preciso que elas sejam também abolidas pelo filme. O que aflora em Eleição (embora já estivesse presente em momentos de filmes anteriores do diretor) é justamente essa encenação do apocalipse ético, em que tudo é permitido desde que seu efeito - como no faroeste spaghetti - seja absolutamente espetacular. Essa transformação pode ir do exagero farsesco da sequência da casa de espelhos em Mad Detective, ao sangue em pó que brota a cada tiro em Exilados: não há mais compromisso possível a não ser com a orquestração desse caos auto-gerido e auto-gerado.

Eleição começa justamente com essa ruptura. Big D (Tony Leung Ka fai) e Lok (Simon Yan) disputam a eleição para a presidência da Tríade, organização mafiosa que domina grande parte do crime de Hong Kong. Assim que Big D desrespeita as regras do jogo político, a Tríade se despedaça, e o filme se transforma em um duelo em loop pelas ferramentas do poder. Não é à toa que Big D, o subversivo, seja o único a negar o capuz oferecido pelos policiais quando é preso. Ele pára do lado de fora da prisão e pede que as pessoas tirem sua foto, eternizem seu rosto congelado naquele momento. Big D é justamente o sujeito a fazer a passagem da tradição - do universo “documental” que funciona de acordo com, e pela manutenção de, certas regras de convívio – para o barroco, a performance pura que se exibe como tal, trocando a ética pelo carisma. É por isso, inclusive, que as sequências de ação se tornam cada vez mais rebuscadas no avançar da trilogia, chegando à apoteótica carnificina que é Exilados. Não importa que Big D seja morto, pois até a necessidade de sua morte é um reconhecimento de o quão fatal é sua ruptura, de o quão perturbadora e irreversível é a sua presença.

AcossadoEleição não é, portanto, tão pirotécnico quanto os filmes seguintes, pois aqui a ética ainda se arrasta como um cadáver insepulcro, cadenciada no andar paquidérmico dos veteranos, conservada nos restos de respeito que os mais jovens ainda carregam pela tradição. O filme, porém, é cuidadosamente arquitetado para espremer cada uma dessas últimas gotas, tornando-se cada vez mais sufocante e rarefeito, armando um cerco que se fecha ao redor do espectador à medida em que o confronto se torna mais e mais inevitável. Uma vez cooptados pela precisão da mise en scène de Johnnie To, estamos todos em suas mãos. E quando o único compromisso possível é com a experiência física do espetáculo (do amor ou do horror, pouco importa - nada mais importa), seus delírios e perversões são de uma energia e vibração que encontra raríssimos paralelos no cinema contemporâneo.

Junho de 2011

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