Balanços e resoluções
por Fábio Andrade

Todo mundo conhece alguém (que conhece alguém) que, no começo de cada ano, anota suas resoluções para os doze meses porvir, para, ao final deste novo ciclo, conferir quantos desses planos realmente foram realizados. No nosso caso, como revista que tem em seu próprio ofício a fixidez em palavras, não precisamos sequer guardar os papeizinhos: bastou voltar ao editorial de um ano atrás para reafirmar que, mesmo para os anti-ritualistas que vêem neste momento do ano apenas um marco astronômico, a virada de Dezembro para Janeiro serve a um propósito bastante prático e concreto de olhar para o que se fez com uma sensação de distância adquirida (mesmo que, na prática, pouco tempo tenha se passado), e ao mesmo tempo encarar o presente imediato com a possibilidade de frescor. É a chance de ver o que deu certo, o que deu errado, o que não deu, e “começar tudo de novo”.

Olhar para o próprio passado nem sempre é experiência das mais agradáveis, mas por vezes ela pode guardar boas surpresas. Um ano atrás, escrevia aqui sobre o discurso em loop quanto à decadência do cinema, e insistia que havia obras – não muitas, talvez, mas certamente suficientes – que jogavam mais água nesse já aguado decadentismo. Mal sabia eu, àquela altura, que 2012 seria um ano tão avassalador não só em filmes de interesse no circuito brasileiro, mas também em obras que hoje parecem fundamentais para se pensar o cinema daqui por diante. Não precisamos sequer entrar na esfera dos festivais, mostras especiais ou retrospectivas - reduto de necessárias esperanças mesmo na insuficiência dos piores anos. Uma breve passada de olho pela listas de lançamentos em território brasileiro fala por si: tivemos a chance de ver num mesmo ano Caminho para o Nada, de Monte Hellman; Um Alguém Apaixonado, de Abbas Kiarostami; L’Apollonide, de Bertrand Bonello; Habemus Papam, de Nanni Moretti; Moonrise Kingdom, de Wes Anderson; uma poderosa dupla de filmes de Cronenberg (Um Método Periogoso/Cosmópolis);Memórias de Xangai, de Jia Zhang-ke; Um Verão Escaldante, de Philippe Garrel; Para Roma com Amor, de Woody Allen; Fausto, de Sokurov. Tivemos também os primeiros lançamentos em circuito de diretores essenciais, que seguiam inéditos fora do circuito de festivais brasileiros, como Hahaha, de Hong Sang-soo; os dois últimos filmes de Mia Hansen-Løve; 13 Assassinos, de Takashi Miike; e As Quatro Voltas, grande filme de Michelangelo Frammartino. E apenas quem mora em São Paulo teve chance de ver ao menos dois outros títulos especialíssimos: Essential Killing, de Jerzy Skolimowski, e Mistérios de Lisboa, de Raul Ruiz. Além de ainda termos visto um ano de filmes "médios" bastante acima da média (Polanski, Wenders, Burton, etc). A maior parte desses filmes teve o destaque merecido na revista - ainda que alguns títulos essenciais nos passaram por debaixo das pernas e por isso não nos perdoamos, prometendo, custe o que custar, contatos mais detidos no futuro (caso principalmente de L’Apollonide e 13 Assassinos, mas não só). Tudo isso apenas dentro do escopo restrito do circuito comercial de salas .

Se os bons títulos são sempre bem vindos, o que parece ter marcado este ano foi a reunião de um número bastante incomum de filmes fortemente ancorados no presente, que dificilmente poderiam ter sido feitos em outros momentos da história. Esse sempre pareceu o ponto ignorado pelos críticos decadentistas: há filmes que não poderiam ter sido feitos em outros momentos da História, e enquanto isso acontecer fica difícil sustentar qualquer previsão de esgotamento da arte cinematográfica. Como já escrevi por aqui em ocasiões passadas, são filmes que de certa maneira encaram este momento de transição do 35mm para o vídeo – mudança mais do que sensível, se pensarmos como o cinema se transformou com a chegada do filme pancromático, do ortocromático, da película em cores em suas diversas variações, etc. Esses filmes compartilham a imposição ontológica de se voltar ao princípio do cinema com um punhado de perguntas essenciais que, talvez, tenham se perdido ao longo dos anos: para que serve? De que maneira se usa? O que ele significava no princípio e o que ele pode significar hoje, depois de já ter sido tanta coisa? É o caso, certamente, de Caminho para o Nada, dos últimos filmes de Kiarostami, de L’Apollonide, de Crazy Horse (filme de Frederick Wiseman - outro cineasta inédito no circuito brasileiro, e que teve lançamento adiado diversas vezes ao longo do ano, ficando agora como promessa para 2013)... mas, de maneira mais incontornável e aguda, é o caso de Holy Motors, retorno mais que bem vindo de Leos Carax ao longa-metragem, que fecha essa lista de notáveis lançamentos de 2012 e que ganha nosso destaque absoluto nesta última edição do ano.

Essa consciência firme e absoluta de se estar diante de um filme essencial para o presente que, ao mesmo tempo, não poderia ter sido feito em outros momentos (ou seja: um filme que o presente necessitava com urgência), é ainda o que nos move no trabalho cotidiano da revista. Permanece, é claro, a dúvida de o quanto essa necessidade sobreviverá ao tempo – dúvida que só poderá ser respondida com alguma distância, e cuja resposta inevitavelmente mudará (talvez várias vezes) ao longo dos anos. O que pode ser feito no presente é o reconhecimento da importância de um determinado filme agora, e esperamos ter conseguido nos aproximar disso com a série de quatro artigos/críticas/ensaios sobre o filme.

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Se até agora estas linhas se ocuparam do cinema internacional, é também com entusiasmo que percebemos o momento especial que vive, hoje, o cinema brasileiro. Nos últimos anos, a Cinética tem se dedicado com alguma detenção a dar conta do que de mais interessante foi feito por aqui – mesmo que diversos filmes nos interessassem mais como problemas, ou como promessas, do que como fatos artísticos. Pois do final de 2011 até agora, uma safra bastante impressionante nos trouxe títulos como O Homem que não Dormia, de Edgard Navarro; Doméstica, de Gabriel Mascaro; O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho; O Que se Move, de Caetano Gotardo; Esse Amor que nos Consome, de Allan Ribeiro; Girimunho, de Clarissa Campolina e Helvécio Marins, e diversos outros sobre os quais nos debruçamos com interesse e satisfação. É como parte desse movimento que colocamos no ar, com certo atraso mas a devida atenção, a cobertura de mais uma edição da Semana dos Realizadores (que, inclusive, realizou as primeiras sessões de alguns desses filmes no Rio e, posteriormente, em São Paulo, em uma retrospectiva no CCBB). E aproveitamos a oportunidade para publicar, ainda, um artigo sobre Djalioh, filme de Ricardo Miranda que acabou lamentavelmente ausente de nossas cobertura da Semana no ano passado e de Tiradentes em 2012 - e que está temporariamente disponível na íntegra no site da Alumbramento, produtora de Fortaleza.

Fecha a edição um ensaio a partir da retrospectiva realizada pelo Cine BH (e pouco depois repetida no Rio, no Instituto Moreira Salles) dos dez primeiros anos de produção da Teia, produtora de Belo Horizonte que teve papel decisivo em alguns dos rumos tomados pelo cinema brasileiro nos últimos anos. Este ensaio é uma forma não só de perceber os paradigmas internos ao trabalho da produtora, e como ele reflete (n)o conjunto da produção brasileira, mas também suas transformações internas ao longo do período.

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Mas a passagem de ano é não só momento de balanço, mas também de resoluções. Há muito uma necessidade de mudança vem se manifestando internamente (e até publicamente – principalmente pelos editoriais) na revista. Com a troca quase integral do corpo de redação ao longo dos mais de seis anos de sua existência, e a certeza de que a revista que de fato existe hoje tomou alguns caminhos imprevistos naquele primeiro projeto colocado ao ar em 2006, aproveitamos o impulso da virada para colocar em prática uma série de mudanças. Se os deuses da prática não intervirem no sentido contrário, voltaremos na primeira edição de 2013 com uma revista efetivamente nova, que melhor estampe e potencialize o que ela vem se tornando. Que a publicação deste plano, neste último parágrafo, sirva como o papelzinho dobrado que carregaremos no bolso pelas próximas semanas, e que, ao final do ano que vem – cruzemos os dedos – ele não nos pese as toneladas das promessas não cumpridas.

Dezembro de 2012

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